sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Bálsamo


Imagine a vida sem desconforto. A vida sem sol demais, sem calor, sem suor grudando na pele, sem pelos colados no corpo. Sem frio, sem blusas de lã que incomodam, sem o ar congelante que irrita o nariz. Sem secura demais, sem umidade sufocante, um ar condicionado perfeitamente regulado à volta de si o tempo todo.
Imagine a vida sem cansaço. Sem costas doloridas ao fim do dia, sem as pontadas no peito que você sentiu ao correr atrás do ônibus. Imagine a vida sem correr atrás do ônibus. A vida sem ônibus, sem jamais ter que pegar ônibus, sem ter que suar o suor alheio, a promiscuidade imunda dos ônibus.
Imagine a vida sem dor - sem tropeçar na calçada, bater o dedinho, perder a unha. A vida sem nunca esfolar os joelhos quando criança, sem cair de cara e perder dois dentinhos de leite. Imagine a vida sem jamais ter quebrado o braço, sem ter o gesso (quente, coçando) assinado pelos colegas de classe. A vida sem uma nota baixa, sem reprovação no vestibular, sem esperar inutilmente pela resposta de uma entrevista de emprego. Viver sem ter que bater ponto.
Imagine a vida sem resfriados. A vida da varíola erradicada, do sarampo quase extinto, uma vida sem viroses enigmáticas, sem conjuntivites purulentas. A vida sem diagnósticos de câncer, sem doenças sem cura, sem agonias prolongadas ou súbitas demais. Imagine a vida sem jamais perder quem se ama antes do tempo.
Imagine a vida sem decepção, sem frustração, sem desilusão, sem dor. Imagine a vida sem amor.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Os olhos (uma história de natal)


 Barata. As mãozinhas de plástico cheias de rebarbas, que na certa vão machucar a pele fina das mãozinhas que brincarão com ela. Os olhos vítreos, azuis, não se mexiam, e nem mesmo um fio de cabelo de náilon loiro ela podia ter. Mas era uma boneca numa caixa, e foi isso, afinal, o que a menininha pediu.
A menininha em questão era a neta da senhora que vinha toda sexta buscar o lixo seco para reciclar. Tinha uns quatro anos e olhos grandes, marrons e redondos. O cabelo armadinho preso num pompom atrás, e chumaços dele vazando pela frente, à guisa de franja. Bochechas redondas e dentes branquinhos, pequenos, de leite. Roupas de malha rosa, meio puídas, mas muito limpas, estampadas com algum desses personagens que as meninas gostam, a Barbie, a Mônica, as princesas da Disney. Vinha de mãos com a avó, uma velha magra de dentes ruins. Ela perguntou, por perguntar, o que a menininha queria ganhar de natal. “Uma boneca numa caixa”, foi a resposta.
Deu um sorriso e passou a mão nos seus cabelos fofos. A senhora dos recicláveis sorriu amarelo de volta. Até semana que vem, ela se despediu, Deus lhe abençoe, a velha respondeu. Uma boneca numa caixa. A fantasia, talvez, de ganhar um presente numa caixa bonita com laço de fita, como se vê na tevê, em vez de pacotes disformes de papel estampado.
No dia seguinte, passeando no shopping depois do cinema, a vista da vitrine de uma loja de brinquedos a levou de volta mais de vinte anos, ao grande quintal de terra da casa de uma amiga, ali no seu velho bairro, quando ainda havia quintais de terra naquele bairro. Porque quintais civilizados, aplainados e cimentados, eram uma prova de riqueza de gente que tinha tão pouco a ostentar. O quintal da colega era inteiro de terra, mas um caminho de cascalho mantinha a gente sem lama até chegar à casinha de tijolos no fundo. Caiada. Três cômodos cobertos com brasilit, goteiras aparadas por latas e panelas. Num dia de chuva assim não se tinha muito o que fazer além de brincar de qualquer coisa lá dentro.
Ela adorava o sofá daquela casa, um carmim hollywoodiano, ainda que desbotado. Em dias de chuva assim ela gostava mesmo de jogar ludo no tabuleiro de papel cartão, mas a amiga queria brincar de casinha, então brincariam de casinha. Afastaram o sofá da parede delimitando o pequeno cômodo inexistente com um muro carmim, e os dois muros caiados, da sala real, e a porta, que era só um vazio. Caixas de sapatos eram os móveis, fogão. Ela era o papai, a amiguinha a mamãe. Os filhos, um urso encardido e descosturado, as tripas de enchimento mal presas por uma cicatriz de pontos visíveis em linha grossa; uma solitária boneca, talvez mais velha que as duas meninas, que havia sido de alguém; isso era denunciado por seu cabelo loiro emaranhado e o vestidinho costurado à mão, mas muito limpo, de tecido rosa.

A mãe trabalhava. A menininha era cuidada pela avó porque não conseguiram vaga na creche municipal. Moravam, as três e um avô, numa casa sem reboco num terreninho de fundos cedido de favor. O velho tinha a profissão de engraxate, mas ao que parece saía de casa apenas para beber, sob o pretexto de ir trabalhar. O dinheiro não chegava para brinquedos e roupas novas; tudo o que a menininha tinha era usado, comprado nos bazares da igreja ou recebido de conhecidos, esmola disfarçada de presente.
Às vezes, nos recicláveis, talvez surgisse uma caixa cor de rosa amassada, da boneca nova de alguém. A avó separaria o plástico que servia de vitrine e desmontava o resto para a pilha de papelão. Nunca uma caixa rosa, fechada e nova, brilhante, com uma boneca presa nos arames lá dentro, como as que luziam na vitrine da loja iluminada. Prateleiras e prateleiras cobertas de cor-de-rosa, pequenas vitrines exibindo manequins em forma de bebês ou miniaturas de mulheres adultas, de olhos grandes e vítreos, cabelos de náilon loiros, luzidios. Bochechas redondas e lábios meio abertos, meio sorrindo, braços plásticos terminando em mãos gorduchas, roupinhas em tons pastéis. Um cartaz amarelo anunciava uma bonequinha muito simples, muito limpa, sem sapatos nem mamadeira, um vestidinho que não era mais que dois pedaços de pano franzido. Barata. Olhos luzidios de azul olhavam para ela sem piscar, sem pedir nada. Olhavam, só. Pegou, passou no caixa, sem nem pensar. Barata. Uma boneca numa caixa.
Colocou o brinquedo em sua caixa rosa aos pés da árvore de natal, seus olhos azuis brilhando com as luzinhas de enfeite. Pelo menos um presente, novinho, só dela, a menininha teria. Teve muito orgulho de sua atitude, afinal o mundo seria um lugar melhor de se viver se todos fizessem sua parte, os que têm partilhando com os que não têm, etc. etc.
Os olhos azuis da boneca refletiam o brilho multicor da árvore e do presépio. Uma miríade de cores luminosas dançava no fundo da lapinha de fibra ótica, iluminando o menininho Jesus em sua manjedoura. Pobrezinho, nasceu em Belém. E pobrezinho assim ainda ganhou presentes, mesmo que com um pouco de atraso, presentes de ouro, incenso e mirra. O que era uma bonequinha barata comparada o ouro, incenso e mirra? Mas pensando bem, o que é que uma menininha de quatro anos vai fazer com ouro, incenso e mirra? E continuou tomando seu café da manhã de domingo.
Segunda, cansada como as segundas. A boneca a recebeu com seu meio sorriso, os olhos lânguidos espelhando a luz multicor do presépio. Cara de sonsa, ela pensou, sem se dar conta. Fez um chá para si e voltou para a sala, e a boneca ainda lá, olhando. Sentou-se em outro lugar, outro ângulo, de onde não poderia ser vista.
No dia seguinte, tentando jantar, teve a sensação de estar num restaurante de grandes janelas, repleto de meninos de rua do lado de fora. A comida, lasanha congelada, nem era muito de se cobiçar, mas ainda assim se sentia observada. O garfo parava no meio do caminho; a comida fazia força para descer. Mas estava ruim mesmo, insossa. Uma refeição de dez reais, assim, sem sabor; se ela tivesse feito arroz com ovo estaria melhor, e muito mais barato. Certeza.
O que a menininha estaria comendo agora?
Talvez ela pudesse – devesse – dar alguma coisinha a mais para a família da menina. Talvez um franguinho, para eles assarem, um panetone. Talvez até uma bonequinha melhor. Uma caixinha. Não, a caixinha é melhor não. Se o avô achar o dinheirinho delas vai beber tudo.
Na quarta era dia de rodízio, e ela voltava de ônibus. Uma chuva dessas mitológicas, de dezembro, travava o trânsito ainda mais do que o normal. Estava esperando terminar as prestações do carro novo para comprar um de reserva, que fosse um fusquinha velho, até para não pagar IPVA. Lembrou do primeiro carro do pai: um fusca verde bandeira, já muito velho quando ela ainda era nova, mas o pai o guiava com o orgulho de um rolls royce. Seu próprio primeiro carro tinha sido um chevetinho prata, ancião, mas ela batalhou muito e foi trocando, até enfim conseguir comprar um zero. Alguns anos de prestações, mas valia a pena. IPVA e seguro, mas valia a pena. A mensalidade abusiva do estacionamento perto do escritório, um roubo, mas um roubo que valia a pena. O que não valia a pena era ficar aqui, presa nesse ar viciado, repleto de gente suada, barulhenta.
Sentou a seu lado uma mãe, um bebê de colo, outra criança. Ajeitou a mais velha de pé, entre o encosto da frente e suas próprias pernas, para que ela não caísse nem fosse esmagada pela massa do corredor. O ônibus sacolejava, a turba balançava junto para lá, para cá, como um pasto de capim alto ao vento. A menina balançava, quase caía, se apoiava nela; o bebê não parava de chorar. “Quietinha”, dizia a mãe, “quietinha, senão a moça vai achar ruim”. Ela balançava a cabeça num sorriso condescendente: “Tudo bem”. Não estava tudo bem, mas tudo bem. Tudo bem.
Em casa a boneca a recebeu com seus olhos de sempre, o mesmo meio sorriso de escárnio. “Você queria que eu fizesse o quê?” Se assustou ao ouvir a própria voz, e alta.
Falando sozinha. Estava ficando maluca. É o cansaço, pensou, trabalho demais, mas logo teria uns dias de recesso para descansar. Praia. Sol. Fazer nada, pensar em nada. Paz.
Dormiu pouco e mal naquela noite. Gritou com o estagiário e destratou a mocinha da faxina, no dia seguinte. Pediu desculpas aos dois, mas o escritório inteiro já havia espalhado que ela estava “naqueles dias”.
Na volta, passou no mercado. Não um supermercado. Um hipermercado, desses enormes, imensos, na marginal. Lembrava dos grandes magazines da sua infância, onde era fácil demais se perder nos corredores de balas e brinquedos e encontrar a mãe desesperada procurando entre as araras de roupas infantis. A luz fria inexorável contrastava com o lusco-fusco lá fora; lá dentro, fileiras e fileiras coloridas de embalagens plásticas padronizadas seguiam em sequência, como as fileiras de uma legião romana. Uma seção de roupas, de eletrônicos, de jardinagem, até de brinquedos.
Caixas e mais caixas de papelão brilhante, cor de rosa, estampado; dentro, centenas, milhares talvez, de cabeleiras louras e dedos gorduchos de plástico, meios sorrisos entreabertos e vestidinhos em tons pastéis. E olhos, uma infinitude de olhos azuis, fazendo o que olhos fazem: olhando.
Uma criança pequena, desgarrada da mãe, levava uma grande caixa rosa no colo. Uma boneca loura, meiga, a boca entreaberta em meio sorriso, os enormes olhos redondos. Azuis. Vinha em sua direção.
Virou o carrinho, quase correndo, no rumo dos congelados. Um frango, não, um chester. Um peru, colossal, daqueles que alimentam cinco famílias; a ave devia pesar mais que o menino jesus aos dois anos. Mamíferos também: um pernil gordo, gigantesco, um tender, o maior que encontrou. Frutas secas, cristalizadas, carameladas de açúcar brilhante; cerejas vermelhas como uma bola de vidro espelhado. Panetones de todos os tipos, todos os recheios possíveis, alguns improváveis; farofa e salpicão da rotisseria. No caixa, a conta, um polpudo valor de três dígitos, pago à vista.
“Os natalinos a gente parcela em três vezes.”
“Não, não, mocinha. À vista.”

Fileiras e fileiras de caixas cor de rosa, empilhadas. Uma escada para o céu de prateleiras, repletas de caixas brilhantes. A de baixo avançava alguns centímetros; a imediatamente superior descia e tomava o seu lugar. Então avançava também, tomando o lugar da primeira, que já estava à frente, seguindo e formando as filas de um exército, uma organizada centúria de bonecas louras e meigas. Liderando a tropa, aquela: a bonequinha barata, sem cabelos louros, a boca entreaberta num esgar de escárnio, os olhos fixos, azuis, mortais. As mãozinhas de plástico barato, cheias de rebarbas, machucaram bem mais que o necessário quando a boneca arrancou os olhos dela.

As luzes coloridas no pinheirinho plástico dançavam sua dança costumeira. Longe, na rua, uma motocicleta ruge. Sente um frio molhado em suas costas. Acorda. Vê.
As compras em sacolas brancas farfalhantes jazem, silenciosamente, no chão. As carnes lentamente descongelam, encharcando o tapete onde ela está deitada. A caixa cor de rosa da boneca jaz, caída ao lado da árvore; ela não vê os seus olhos. Duas da manhã. Vai dormir.
A velha vem buscar o lixo, como sempre, a menininha grudada em sua mão. O cabelo fofo, os olhos redondos, bonitos, marrons.
"A gente não vem semana que vem, nem na outra."
"Ah, vocês vão viajar?"
A avó cora sob a pele ocre. "Não", começa a dizer sem jeito, "é que o ferro velho não abre... Só em janeiro, agora".
"Ah..."
Saem sem saber de nenhum presente. Nem uma caixinha, nada. O saco preto reluzente, no entanto, segue cheio e pesado no carrinho como poucas vezes. Em casa, no quintal, a separar, a primeira coisa que a avó vê é a grande caixa cor de rosa. Mas não está vazia.
Dentro, as mãozinhas gorduchas de plástico barato têm rebarbas feias, que machucam. Um vestidinho rosa, bem limpo, e a cabeça emborrachada sem cabelos. A boca, rosada, estava entreaberta num meio sorriso doce. E no lugar em que estariam os olhos, tudo o que havia eram dois grãos de treva.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Meninos


 A carne é rígida e frágil. Uma esponja, uma esponja repleta, sólida de sangue; corpo cavernoso, eles chamam, estranho nome subterrâneo para o corpo orgulhoso que aponta para o céu. A pele é lisa, tesa, envolta de veias azuis ou verdes, saltadas ou não, como as trepadeiras que cingem a única árvore que se ergue soberba no centro de um jardim.
Mas frágil; minutos de movimento e ele se dissolve num buquê de flores brancas, que se espalham, se desfazem; o corpo se retrai e se esconde sob seu véu humilde e amarrotado. Torna-se um potencial, apenas, um pedacinho de pele pendurada. Vacilante. Pequeno. Que pode falhar numa próxima vez, e às vezes falha.
O medo eterno de falhar acompanha vocês para sempre, ainda que nunca se tenha falhado, ainda que nunca se falhe. A defesa de vocês contra esse medo é essa eterna superafirmação de seu poder, que todos os meninos, em todas as culturas, têm. Vocês compram carros potentes, relógios enormes, contam histórias da carochinha tendo a si próprios como protagonistas. Constroem imensas pirâmides, obeliscos, arranha-céus, castelos no ar.
Meninos. A gente tem que amar os seus disfarces.
Nenhum de vocês se ilude quanto ao próprio poder – pelo contrário, muitos acham que podem menos do que realmente são capazes. Alguns ainda acreditam que conseguem nos enganar; outros já perderam essa ilusão há muito tempo, mas muitos ainda tentam, por que é seu instinto. Algumas de nós talvez ainda caiam na conversa – as mais novas, ingênuas, as bobas. Talvez por isso alguns de vocês prefiram as jovenzinhas.
Mas mesmo nós que não nos enganamos mais, nós amamos o seu teatrinho, meninos. Amamos cada coisa que vocês fazem pela gente.
Claro, há exceções. Os que não são capazes sequer dos castelos no ar se afirmarão pela violência: a força dos braços, o tom da voz que levanta, numa tentativa de fazer parecer que tudo em vocês é maior. Nós não somos fortes como vocês. Algumas de nós conseguirão fugir, outras se submeterão, e então vocês vencem. E vocês terão para si uma mulher incompleta, que só permanece a seu lado pelo medo – o medo de ficar sozinha, de ser incapaz, o puro e simples medo físico. E essa é a única submissão imperdoável.
Aceitamos muita coisa por vocês. Toleramos muita coisa. Perdoamos até mesmo uma língua que não nos representa, em que apenas um átomo de presença masculina muda nosso gênero. Relevamos palavras que quase nos humilham; engolimos nosso próprio orgulho em benefício do seu. Por que para nós é bobagem. Para vocês é importante.
Na má literatura, o homem possui, a mulher se entrega. Na vulgaridade, ele come, ela dá; na vida, dançam. Conduzem, cada um a seu tempo, mãos que levam, pernas que embalam, línguas trançando-se tolas, olhos que fecham, que abrem, penumbra, a umbra, o jogo. Ninguém ganha. Ninguém deve ganhar. Ninguém perde, tampouco. A luz - o estrondo, o clarão - um holofote entre nuvens, pairando longos segundos, ou o raio, colosso, tonitruante e breve - a luz há de vir. Há de vir para os dois. Vem uma vez ou mais, em separado ou juntos, ápice de cada dança, mas há de vir. Ao menos é assim que deve ser.

O nascimento de Vênus


Imposto sobre o beijo. Já tem.
Você pode pagar numa conta com franquia mensal, com a quantidade de beijos que acha que vai dar no mês (o excedente sai bem mais caro, evidente), ou comprar fichas de beijo pré-pagas nas lotéricas. O controle dos beijos do cidadão, eles dizem, é em prol da família brasileira, uma benesse, eles dizem, não um encargo. A esposa zelosa compara seu extrato de beijos com o do marido; o marido infiel compra fichas pré-pagas para suas escapadas. No fim do ano fiscal, na hora da prestação de contas, o esperto marido manda a de ambos para um discreto contador, de total confiança.
Aos pobres, mesmo os dez centavos de uma fichinha da lotérica fazem falta. Alguns casais acabam cortando o beijo do orçamento doméstico, nem tem mesmo tempo para isso, é tanta coisa, criança, dois empregos, conta pra pagar. Outros, que ainda não se apagaram, fazem as fichas durarem com beijos longos, profundos, de novela, de cinema.
Eles já faziam isso com o imposto do sexo, que veio antes. Como é bem difícil, às vezes, saber quando começa e quando terminou, o governo cobra por orgasmo, de cada indivíduo em separado. Em parte é uma medida de controle de natalidade também. Daí que os pobres se tornaram praticamente especialistas em tantra – nos salões de beleza as mulheres trocam dicas, aberta e escandalosamente, nos bares, os homens conspiram na surdina, e se ensinam maneiras de segurar ao máximo, de fazer durar, de gozar depois de uma, duas, três horas de prazer ininterrupto.
Mães e pais ciosos recebem chocados a correspondência de cobrança das atividades dos filhos. “A gente precisa ter uma conversa séria”, todos dizem, às vezes em tom de bronca, às vezes de condescendência. Às vezes, a conversa séria é só sobre dinheiro mesmo; castigos e mesadas cortadas até que a enorme conta seja paga. Alguns recorrem, como se recorre à multas. Poucos ganham. Sempre há provas.
Um jovem casal, na praia. Eles são belos e tem em si a paixão furiosa, o desejo sem comportas de uma tempestade. Os corpos grudam de sal, de areia. Eles entram no mar de mãos dadas e vão se afastando, para longe dos pais, da sociedade, das câmeras, dos controles. Vão sem medo.
O mar já está na altura de seus quadris, que mãos sôfregas agarram. Puxam seus corpos de encontro um ao outro; mãos se entrelaçam nas costas, onde as ondas batem, amalgamando troncos; as bocas engolem uma à outra. O sal do suor já é o mesmo sal do mar; as pernas dela enlaçam as dele; sexos se soltam, se tocam.
“Vem”, ela diz. A água já cobre suas cabeças, os cabelos flutuando como águas-vivas em meio à espuma do mar, ao caldo primordial, à própria origem da vida.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Um catador


 Um catador. Franzino e triste, sentado numa marquise, espera a chuva passar. As pernas, magriças, se cruzam na altura da canela; uma das mãos repousa sobre o colo, a outra cai, de lado, como a de um paciente terminal num hospital orwelliano. A carrocinha de tração humana descansava, canga para cima; seu cão, quase um pastor, dormitava embaixo, na calçada, na paz de quem se deita num leito de seda e jasmim.
A cara do homem, da mesma cor que a do cão, tinha a barba crescida, grisalha, três dias. Na expressão repleta de linhas - leitos de ribeirões já secos - a melancolia de um palhaço infeliz, a boca curvada para baixo, a fronte em ponta para cima. A figura era coroada por um insólito chapéu, tipo panamá, cor de camelo, em surpreendente bom estado comparado às suas roupas, cinzentas e rotas.
Cinzento e roto era o céu, passada a treva da chuva, cinzento e roto o asfalto. Cinzenta e rota a marquise do edifício onde o catador, com seu empoeirado traje e sua barba gris, se mescla e se mimetiza às cinzas da cidade.