Esses apartamentinhos novos, a gente mal tinha espaço para se mexer,
especialmente no quarto das crianças. Ela penteava o cabelo do mais
velho, de cinco anos, enquanto o de três pulava de uma cama à
outra, perseguindo bandidos malvados por sobre os prédios de Gotham
City.
- Eu sou o Batman!
- E eu sou o Wolverine! - O garoto posa, fugindo do pente e cruzando
os punhos; a gente quase pode ver as lâminas e a máscara de amarelo
e azul. - E você, mãe, você vai ser quem?
- Eu sou a mãe de vocês, caramba. Fica quietinho pra eu poder te
pentear.
- Mas você tem que ser alguém!
- Tá legal, tá legal, eu sou a Bela Adormecida, mas sossega.
O telefone toca na sala; a mãe corre para atender, mas a voz na
linha demora a chegar. É uma mensagem pré-gravada, de
telemarketing, pedindo que Anderson dos Reis entre em contato
urgentemente. Obviamente ela não conhecia nenhum Anderson dos
Reis, mas antes que pudesse digitar a opção apropriada, ouve
barulhos no quarto. Um baque macio, um pacotinho de uns quinze quilos
caindo no chão, um choro de criança. Ela corre e encontra Batman
caído, enquanto o Wolverine pula em círculos pelo exíguo
espaço erguendo as mãos e gritando “Eu venci! Eu
venci!”.
O cachorro assiste à cena, protegido sob uma das camas, observando,
desconfiado. Era um labrador de apartamento, conformado, cor de
chocolate, chamado Humbert Humbert. Na intimidade, para os da casa,
era só cachorro.
A mãe suspira. Por meio segundo pensa em como teria sido a sua vida
se continuasse solteira, viagens, unhas feitas, sucesso profissional.
Mas logo assume o papel que se espera dela, abraça o pequeno, dá
bronca no maior, enxota o cachorro. O dia nem começou.
- Eu sou a Bela Adormecida, e você?
- Fica quietinha pra eu poder te pentear, pode ser?
- Mas você vai ser quem? Eu quero ser a Bela Adormecida, quem você
quer ser?
- Sou a rainha Cleópatra, tá bom? Fica quietinha agora senão vou acabar te machucando.
A mãe da mãe sempre puxava a escova com força demais e fazia o seu
coque tão apertado e rente que dava até dor de cabeça. Mas o
cabelo nunca soltava no meio do balé, sem precisar de grampos, de
gel, nem de nada. Voltava da escola, almoçava, assistia um pouco de
TV e se arrumava para ir. Sua mãe ia buscá-la de ônibus, segurava
sua mão, ajudava a passar por baixo da catraca - quando ia com o pai
ele a pegava no colo e a fazia pular por cima. Terminava a lição de
casa na mesa da cozinha, enquanto a mãe preparava o jantar, e seu
cabelo ficava sempre cheirando a bife. Ela já tomava banho sozinha e
lavava a cabeça todos os dias, esfregando o couro cabeludo,
emplastando com Neutrox, e enxaguando bem. Desembaraçava com um
pente largo. Gostava de ver seu cabelo molhado no espelho por que
ficava bem liso, como o das princesas.
O balé teve que parar quando a mãe faleceu, muito jovem, de um
câncer de mama; foi logo depois que eles compraram o videocassete. O
pai cortava um dobrado para tomar conta sozinho da menina única, com
a ajuda que fosse possível das tias, da avó.
- Se o rei do Egito é Faraó como é que chamava a rainha, pai?
- Não sei, filha.
- Era Faraá? Tinha que ser Faraá.
- Eu acho que era só rainha mesmo.
Fazia mais ou menos um ano da morte da mãe. O pai havia alugado o
VHS duplo de Cleópatra, a linda
Elizabeth Taylor de olhos violeta na capa, olhando para ninguém. A
exótica corte oriental, os brilhos dourados, as cores primárias do
techinocolor; escravos carregando a liteira da bela dama nos ombros,
pompas, plumas, reis romanos a seus pés - a garotinha assistia ao
filme de olhos vidrados, impressionada, o pai dormindo a seu lado.
Trocou sozinha a segunda fita, mas não rebobinou; tiveram que pagar
multa na locadora depois. Ela achava a Elizabeth Taylor a cara da sua mãe, que tinha olhos pretos. O pai balançava a cabeça,
concordando, sem prestar muita atenção.
E era muita sorte ter casado com alguém que ganhava tão bem. Ela
não precisaria trabalhar enquanto o filho fosse tão pequeno, e
teria o privilégio de acompanhar seu desenvolvimento, presenciar
suas primeiras palavras, trocar suas fraldas. Quando percebeu, já
estava grávida de novo, e ficou muito feliz porque tinha a certeza
que era uma menina. O marido nem percebeu a sua decepção com o
resultado do ultrassom; achou até bom, porque não teriam que mudar
para um apartamento de três quartos tão cedo. E de repente a ideia de passar pelo menos mais dois anos trancada em casa começava a
parecer insuportável.
Mas não valia a pena arranjar um emprego, valia? Eles eram pequenos
demais para a escolinha – e aquele monte de criança junta, e as
professoras que não dão atenção, e os piolhos. Avó, tias, nem
pensar – os parentes do pai moravam em outro estado, os dela eram
poucos e velhinhos, e moravam longe também. Uma babá? Botar uma
estranha dentro de casa para olhar os nossos filhos? Ele não queria,
de jeito nenhum. Mas os dois anos a mais já eram três, e no total
mais de cinco, um branco intolerável no currículo, muito mal
disfarçado com trabalhos autônomos aqui e ali.
E é quase hora do jantar, e um desses trabalhos tem que ser entregue
hoje ainda, ou pelo menos estar no e-mail do contratante amanhã,
antes do horário comercial. Tem a entrevista, também - ela
precisa separar a roupa, fazer as unhas, imprimir coisas para
mostrar. As crianças estão com o marido na sala, o cachorro
abanando o rabo, a tevê. Risadas, pés pulando descalços, uma
bolinha voando entre um sofá e outro, entre o pai e o mais velho, o
cão e o pequenininho correndo atrás. O rebuliço de sempre que era
a paz familiar do apartamentinho de dois dormitórios, móveis
planejados, o sofá de couro, uma vaga própria e outra alugada, e o
piso frio.
E o estrondo! – dezenas de objetos chegando ao chão quase ao mesmo
tempo, o ruído seco de livros, um vaso de vidro espatifando, a
própria estante, enorme, bam! O cachorro entra correndo pela
cozinha, se esconde na área de serviço, não olha para trás. O
pequeno chora. O que é que aconteceu, meu Deus?
- Não fui eu! Foi o Batman!
- Ele tentou subir para pegar a bolinha lá em cima, amor – O pai
estava sentado, no sofá, o pequeno chorando em seu colo.
- Mas você não tinha que estar tomando conta deles, meu Deus? Esses
dois se matam se a gente deixar que eles brinquem sozinhos!
- Eu nem vi, meu amor! Juro! Pisquei o olho um segundo e ele já
estava lá!
- Cristo... leva esses dois lá pro quarto, por favor, enquanto eu
arrumo isso aqui. Como é que ele tá? Machucou?
- Não caiu nada em cima dele, não, foi só o susto.
- Deixa eu ver.
O menino mostrou as mãos, um pouquinho esfoladas de aparar a queda.
No joelho um vermelhinho que ia virar hematoma também, se não
fizessem alguma coisa.
- Pega o gelo. Não, lava as mãos dele, eu pego o gelo. Assim não,
espera... Pega o gelo você. Leva os livrinhos de colorir pra eles e
vem me ajudar aqui. Não, fica lá com eles. Ou melhor, você
esquenta o arroz? É só botar no micro-ondas. Na panela não, Deus
do céu, bota num prato, num tupperware. Deixa que eu faço, vai
varrer a sala. Não joga os cacos no lixo! Não, amor, não, tem que
colocar num jornal primeiro. Olha aqui embaixo, tá cheio de caco.
Põe a mesa por favor? O cachorro passa aqui, os meninos descalços,
olha o perigo. Aqueles dois estão muito quietos, não estão? Vai lá
ver o que eles estão aprontando. Não, deixa que eu vou. Põe esse
prato aí.
E a louça, e terminar de arrumar a sala, e o banho dos meninos,
colocá-los na cama, e o texto para entregar! O pequeno, ainda
acordado, percebendo a luz acesa, foi para a sala.
- Posso ficar com você?
- Não, carinho, a mamãe tem que trabalhar e você tem que dormir.
Vai pro quarto, tá bom?
- Mas eu não consigo dormir. E você não trabalha!
Um emprego de verdade, meu Deus. Carteira assinada, férias, amigo
secreto, um panetone no fim do ano. O salário quase todo ia pagar a
babá – o resto seria gasto com roupas para trabalhar, gasolina
para trabalhar, manicure. Mas esse era o preço da liberdade, e tinha
que dar certo, Jesus, tinha! O marido ainda relutava com a parte de
botar uma estranha dentro de casa (“mas nem é para dormir, ela só
precisa ficar aqui durante o dia – a gente nem tem espaço para ela
dormir”). Mas lembrava que em algum momento as crianças iriam para
a escola, os gastos aumentariam e era bom ter mais uma fonte de renda
na casa. Guardar dinheiro para uma casa de verdade, com quintal, um
apartamento na praia; quem sabe trocar de carro a cada dois anos,
pelo menos o dele.
Desligou o computador. O cachorro dormia deitado de lado, ao pé do
sofá; o peito levantava, abaixava. Levantava. Abaixava. Inspirava,
expirava, roncando baixo e ritmadamente, devagar. As luzes da casa
quase todas apagadas, exceto a pequena luz noturna do Homem-Aranha,
pregada na tomada do quarto das crianças. O marido deitado de lado,
encolhido, meio descoberto; ajeitou o edredom sobre ele, conferiu o
despertador e deitou a seu lado. Silêncio.
- Bela Adormecida, Bela Adormecida!
- Mmm?
- Mãe! Manhê!
- Que é, filho?
- O Batman tá vomitando o quarto inteiro.
Olhou para o lado. O marido dormia a sono solto – e ele iria
trabalhar no dia seguinte, afinal. Ela se levantou e aceitou a sua
sina.
Limpar e arrumar o pequeno. Limpar o quarto. Pronto-socorro,
medicação. Limpar o carro. Botar o menino para dormir no quarto
vazio; encontrar o outro garoto, e o cachorro, e o marido, deitados
na sua cama. Por dois segundos achou que era vantagem deixar tudo
como estava e dormir na caminha do mais velho, mas não; carregou o
filho até o quarto dele, enxotou o cachorro e se deitou. Tinha uma
hora e meia de sono ainda antes de acordar para preparar o café.
Porque a vida é assim, não é mesmo?
A vida é ter torradeira elétrica, cafeteira, aspirador de pó. A
vida é olhar um prato girando num micro-ondas. A vida é pagar IPVA,
IPTU, IR, INSS, depois sacar o FGTS e se aposentar, e passar o dia
todo a olhar os pratos girando no micro-ondas.
A vida é deixar os filhos na vizinha viúva de 70 anos,
só-por-umas-horinhas, imagina-não-incomoda-adoro-criança, é sair
escondido para que o menorzinho não veja e não chore. É perceber,
já dentro do carro e quase atrasada, que as unhas estão em petição
de miséria. É parar numa farmácia e comprar algodão e um vidro de
acetona, e tirar o esmalte descascado no meio do trânsito.
E na freada de parar no farol, é claro que o vidro de acetona cai e
se espalha todo pelo carro. Evaporando, deixa as manchas brancas de
solvente em tudo o que toca, nos bancos de couro sintético, no
plástico do console, nos tapetes, espalha o cheiro intoxicante no ar
climatizado da bolha fechada. Ela abre a janela sem olhar para fora,
o tempo exato de um pivete chegar, estender a mão e pedir um
trocado.
- Não tenho.
Abre o farol. É um garoto magro, cor de terra, uns oito anos. A face
brilhante de óleo e suor, de gente labutadora, as roupas sujas. Ela
acelera e avança; Deus sabe o que impediu esse moleque de apontar
uma faca para ela. Vê as olheiras cinzentas de corretivo no espelho
do elevador, antes da entrevista; talvez tenha sido essa cara de
bruxa malvada da Branca de Neve. Talvez ele nem tivesse uma faca,
afinal. Era só um menino sem mãe.
Procura no bolso, na bolsa, na bolsinha de dentro da bolsa e encontra
uma moeda novinha de um real. Linda, brilhante, a efígie fria da
república com seus olhos cegos de prata, olhando o nada, ninguém.
Deixa ali, equilibrada no painel no lugar em que estava a acetona, a
borda dourada, bonita, coruscando ao sol. Volta pelo mesmo farol, e
procura o garoto.
Ele não está mais lá. Em seu lugar, uma mulher com seu filho
pequeno, uma moça, uma menina. Duas linhas brancas de secreção
seca descem das narinas largas do bebê, a face da cor da terra
brilhando de óleo e suor sob o sol. A moeda, a essa altura, já foi
derrubada do painel pela freada: o rosto branco da república não vê
o chão, os pedais, o tapete escuro. Ela fecha a janela e esconde sua
bolsa por baixo do banco; só Deus sabe o que essa gente é capaz de
fazer.