terça-feira, 30 de outubro de 2012

Geografia

 Não era mais que um tapete de branco, de flocos brancos de nuvem, e sob as nuvens, mais nuvens. Por sobre as nuvens o azul indelével, o sol inflexível, mais nada. Foi só quando estávamos para chegar que o chão dos nefelibatas se abriu num rendilhado, mostrando o macio cinzento das colinas no solo.
O enrugado dos morros se enrodilhava em si, mostrando e escondendo os leitos cintilantes dos rios nos vales. Escuros de mato e claros de campo se enxadrezavam, mostrando lá e cá um quadrado de terra nua, de verdes diferentes, de cultivares. Um brilho maior aqui e ali, açude ou campo de arroz. Açude. Açude. Arroz. Açude. Arroz. Lantejoulas rebrilhando ao sol, cintilantes ou meio turvadas das plantinhas nascendo. Me pareciam tão grandes, comparados ao vermelho dos telhadinhos de cima, coroando os morros em seu brilho de joia, e aumentavam conforme o terreno se aplainava. Eram gargantuescos os campos de arroz no plano do pampa, brilhando metálicos no claro verde da planície.
A geografia se recortava no estuário do rio. Um imenso de água escura se abria, azulando no horizonte. O barroco das margens, a borda espinhenta das marinas e cais privados. Um barco, outro barco, um navio. O porto. A cidade. A capital do estado se abria colorida diante de nós.
Pousamos.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Boneca de papelão


 Só uns botões, um retrós de linha de costura, um novelo de bordar. Mais nada? Não, não, mais nada. E pra menina? Ela não faz anos agora semana que vem?
A menina olhava, fixa, a boneca prostrada na prateleira. Enorme. Imóvel. Escura, da cor do papelão natural, duro, moldado na forma do corpo de menininha. Os olhos pintados de cílios curvados, longilíneos, oblíquos, a boca pequena e vermelha de botão de rosa. Um vestidinho muito simples, de chita de estampa miúda.
– A mãe não tem dinheiro, filha.
– Só estava olhando.
– Não quer levar mesmo? A gente faz pro mês que vem, não tem problema.
– Não posso, moça.
Não podia. Faltava tudo naquela casa. O que o pai ganhava de meeiro no café vinha uma vez por ano, pagava a conta do caderninho da venda e só. Os bordados da mãe seguravam as despesas que não se podia fiar durante o resto do ano. O pão, pagavam à vista, porque o português roubava na conta. O leite, o moço tinha que cobrar todo mês, coitado, não era culpa dele. O turco dos armarinhos, sovina, não fiava de jeito nenhum, mas a mocinha que atendia era a nora dele, que cuidava da lojinha enquanto o turco e seu filho viajavam mascateando. Ela deixava às vezes passar uma ou outra conta pequena, tinha dó, mas não podia fazer fiado nas contas grandes. A mãe às vezes tinha que juntar dinheiro por vários meses quando precisava de uma peça de fazenda.
– Pode escolher um decalque do grande, meu anjo. Presente meu.
A moça estendeu o catálogo dos decalques, enorme na mão da pequena. Era tudo muito lindo e colorido, os amores-perfeitos, as margaridas, as rosas vermelhas, repolhudas. Enquanto a menina olhava, fascinada, a mãe perguntou em voz bem baixa o preço da boneca. Era tanto. Mas pra você fazemos por um quanto. Ainda era muito.
Voltaram para casa com seus botões, novelos e retrós, e o decalque de um buquê de flores de todas as cores do mundo. A menina ainda pensava na boneca, a mãe pensava no jantar, em batatas cozidas e repolho refogado e rosas repolhudas vermelhas e o vermelho da boca da boneca de papelão na prateleira da loja. A menina, sentada no tamborete perto da porta, olhava para fora, pensava longe. A mãe, descascando batatas na mesa, a chamou. Separou uma batata meio verde do saco, espetou quatro palitos pra fazer as patas, dois quebrados ao meio fazendo os chifres, e entregou para a pequena.
– Tá vendo o boizinho? Toma, vai brincar com ele lá fora.
O tempo se consumia de outra maneira, naquele tempo. Era muito o tempo que se gastava deixando o feijão de molho, a roupa quarando, a roça crescendo, o café brotando. O tempo de bordar, à mão, um enxoval. Mocinha séria bordava o próprio, no tempo certo, antes mesmo de ter noivo, mas as moças que não queriam ver seus dedos calejarem na agulha o encomendavam. Custava caro pra quem pagava, era dinheirinho pouco pra quem recebia; o tempo escoava nos dedos, no vaivém das agulhas, um ponto por vez, um dia por vez. A menina ia fazer anos na semana que vem.
A gente sabia mais do tempo, naquele tempo. O tempo era claro em julho, garoava em março, em janeiro, chovia. Os horizontes amplos deixavam ver a chuva à distância, e quase sempre dava tempo de tirar a roupa do varal antes que fosse tarde. A menina ajudava, segurando as roupas que a mãe recolhia, o cestinho dos pregadores. As gotas vinham, uma por vez, e no começo nem pintavam o pátio, porque a terra seca os bebia, gulosa. Mas elas eram insistentes, as gotas, e chamavam suas camaradas para a luta, e o pintalgado da terra molhada se tornava rápido a lama uniforme, macia, fértil. O pai aparecia à distância, pisando com cuidado no barro que lhe sujava as botas. Tinha a enxada ao ombro e seu chapéu pingava. Sentiu o cheiro da comida da porta. Sorriu para a menina, sorriu para a mulher.
Os dias gotejavam, um por vez, a semana fluía, líquida. Era o aniversário da menina. Não podiam fazer muita coisa, mas podiam matar uma galinha e fazer um bolo para a sobremesa. A cor bonita do frango cozido no colorau, a couve bem passada no alho, o arroz e o feijão cheirosos no prato. O bolo dourado de massa fofa e branquinha por dentro, doce como o sol de manhã cedo.
– Tem uma surpresa para você, a mãe disse. No quarto. Na sua cama.
Um interruptor pendurado no teto acendia a lâmpada elétrica. Paredes de tijolo caiado, um guarda-roupa sólido de madeira escura, a cama de molas cheia de decalcomanias floridas forrada com uma colcha caprichosa de retalhos coloridos. Por sob a colcha, um volume. Foi ver. Era a boneca.
– Eu posso brincar com ela?
– Claro. É sua.
O primeiro olhar foi de espanto, fluindo através da dúvida e enfim felicidade, a mais ensolarada felicidade. Abraçou a boneca como quem se agarra à própria vida, abraçou a mãe e o pai, agradecida. Ele passou a mão nos cabelos da pequena e perguntou, baixinho:
– Foi muito caro?
– Mais ou menos. A moça fez um preço bom. Semana que vem vou receber de um enxoval e acerto.
Era linda, linda, linda, linda, linda como o céu sem nuvens. Não tinha pele clara nem cabelo como as bonecas de louça das meninas ricas, mas era grande pra abraçar, e sua, tão sua. Dormiu com ela, a sua própria menina, dormiu sonhando com sua filha, sua companheirinha, que em sonho podia mexer os braços e abraçá-la também.
Comeu pouco no café e no almoço, oferecendo um pouquinho de tudo à boneca e fingindo que ela comia, tem que comer tudo pra ficar forte, grande, bonita. Mostrou para as primas que só tinham bonequinhas de trapo de olhos de botão; seus olhos, os das meninas, dardejavam de inveja. Mostrou às galinhas, ao cachorro, à ameixeira do quintal. Brincou o dia todo no pátio de terra, fazendo a filha dormir, acordar, comer, arrotar.
O vento mudou de lado, mais forte, balançando as cortinas. A mãe chamou para ajudar a recolher a roupa. A menina deitou a boneca no berço, que era a raiz da árvore, e foi.
E a chuva veio. As gotas gordas pintalgavam o pátio, a água se juntava à terra, formando lama. O pai vinha à distância, as botas sujas, chapéu pingando. Sentiu o cheiro da comida da porta. Sorriu para a menina, sorriu para a mulher.
Acordou no primeiro raio de sol da fresta da janela no dia seguinte. A boneca! Esquecera completamente dela. Correu à raiz da árvore e encontrou, molhado ainda, o vestidinho de chita, de estampa miúda, sujo de lama. De lama e dos restos do papelão, molhado e desfeito, dilacerado pelo abraço da chuva.
A mãe, quando viu, gritou. Era tão caro, a gente faz tanto sacrifício, e nem estava pago ainda. Ameaçou bater. O pai a acalmou. A menina já estava sofrendo o castigo dela, chorando ao pé da árvore, um choro sentido, convulso, choro de quem perde um filho.
– Eu nunca mais te compro nada, ouviu bem? Nunca mais.
E não comprou.
Passou muito tempo. A mãe se havia finado, de uma pneumonia, de pegar friagem recolhendo roupa na chuva um dia, fazia mais de um ano, mas a menina era triste sempre. Faz falta um irmão, pensava a tia. Achou um presente para ela: uma boneca de louça, dada por sua patroa, que as filhas não queriam mais. A cara meio trincada e descascada, mas tão bonita no seu vestido de cambraia branca. A menina tentou abraçar a sua boneca nova. Era pequena demais, e seu rosto era frio.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

NaNoWriMo - National Novel Writing Month

Queridos,
Estarei participando do NaNoWriMo (National Novel Writing Month) esse ano, e achei que podia ser bacana falar um pouco do projeto. Quem sabe alguns de vocês se animam, e a gente entra nessa juntos.
O NaNoWriMo, que acontece todo novembro desde 1999, é um evento em que milhares de pessoas ao redor do mundo todo piram e decidem escrever um romance de 50.000 palavras (coisa de 100 páginas) em um mês. Parece difícil, parece até meio bobo, mas quando você (como eu) está adiando escrever seu livro há tempos e já inventou todas as desculpas possíveis, ter esse estímulo de ser parte de um movimento mundial, ter uma meta pra cumprir e, às vezes, até amigos participando, pode ser o empurrão que você precisava pra correr atrás do sonho de ser escritor “de verdade”.
Como funciona: durante outubro inteiro você se empolga, bola a premissa, faz um esquema, planeja, e durante novembro inteiro você se mata de escrever. Sem revisar, sem se preocupar, apenas joga palavras no papel. No fim do mês, se nada der errado, você vai ter um bom e parrudo rascunho, que pode ser revisado e virar um romance completo, ou pelo menos um bom começo, um estímulo a produzir.
Até o fim de outubro eu postarei semanalmente aqui sobre os meus preparativos pessoais pro NaNoWriMo, e vou dar dicas de técnicas e ferramentas que for descobrindo. Se de repente vocês se empolgaram também, postem nos comentários e deixem um contato, quem sabe a gente não se organiza em um grupo.
Bora?