O
céu de São Paulo não é cinza como vocês gostam de pensar. O céu
de São Paulo é branco, vazio, é nada. Exceto no inverno, quando é
de um azul cegante e seco, saturado, cruel. Um azul que sangra pelas
narinas. No resto do ano é só vagamente azul, desbotado até o
limite da cor. As nuvens quase não se contrastam, roupas brancas
flutuando em água de anil, umas gotas poucas de anil – ninguém
mais lava roupa com anil, em São Paulo
O
céu se reflete no azul dos edifícios espelhados, mais azul do que o
próprio céu. Grandes nuvens, lânguidas, navios derivando devagar,
recortadas no quadriculado de esquadrias. Suspenso num par de cordas,
um destemido lava cada fração do xadrez da fachada, esfregando o
reflexo de um avião, até sumir.
Do
alto do branco implacável, o sol em ápice projeta sombras duras no
chão. A linha reta de uma marquise; os braços em movimento de um
transeunte sobre o asfalto severo; o negro rendilhado da mantilha de
folhas de uma árvore solteira, singular, brotando tenaz do concreto
esbranquiçado por onde passarinhos ciscam.
Vocês
gostam de pensar que não, mas há pássaros aqui. Além dos pombos,
imundos, há outros.
O
sabiá canta a sua canção de melancolia, nas árvores mais baixas,
no gramado; os pardais, magriços, disputam migalhas do chão. Um
alarido de maritacas, em bandos muito menores que outrora, cruza o
céu, de verde em verde. Os sanhaços, macios, feitos do mesmo tecido
que o céu do pós-tempestade – cinzento das nuvens de chuva, a
nesga de azul que ainda resta, indecisa; ora quer que se a veja, ora
quer não.
O
azul vem de vez depois do crepúsculo, uns poucos minutos de azul
absoluto na luz vacilante de antes da noite. No cerrar das cortinas,
a noite é marrom e suja, da exata cor do nosso rio, se o céu é
nublado; se limpo, é de um negror sem piedade, de estrelas pálidas,
poucas.
O
azul do edifício refletirá o negro espelho da noite, que vai
refletir de volta, eternamente. A luz piscante de um avião cortará
o feitiço, por um momento, até desaparecer no horizonte vertical da
fachada. E então o espelho de vidro na terra e o espelho em veludo
no céu voltarão a brincar, a empurrar para o outro e puxar para si
a mesma imagem, ao mesmo tempo, a mesma escuridão inexorável, que
ninguém sabe mais de quem veio, se da terra, se do céu, até a
curva do tempo, até o amanhecer.
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