sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Batman, Wolverine e a Bela Adormecida


Esses apartamentinhos novos, a gente mal tinha espaço para se mexer, especialmente no quarto das crianças. Ela penteava o cabelo do mais velho, de cinco anos, enquanto o de três pulava de uma cama à outra, perseguindo bandidos malvados por sobre os prédios de Gotham City.
- Eu sou o Batman!
- E eu sou o Wolverine! - O garoto posa, fugindo do pente e cruzando os punhos; a gente quase pode ver as lâminas e a máscara de amarelo e azul. - E você, mãe, você vai ser quem?
- Eu sou a mãe de vocês, caramba. Fica quietinho pra eu poder te pentear.
- Mas você tem que ser alguém!
- Tá legal, tá legal, eu sou a Bela Adormecida, mas sossega.
O telefone toca na sala; a mãe corre para atender, mas a voz na linha demora a chegar. É uma mensagem pré-gravada, de telemarketing, pedindo que Anderson dos Reis entre em contato urgentemente. Obviamente ela não conhecia nenhum Anderson dos Reis, mas antes que pudesse digitar a opção apropriada, ouve barulhos no quarto. Um baque macio, um pacotinho de uns quinze quilos caindo no chão, um choro de criança. Ela corre e encontra Batman caído, enquanto o Wolverine pula em círculos pelo exíguo espaço erguendo as mãos e gritando “Eu venci! Eu venci!”.
O cachorro assiste à cena, protegido sob uma das camas, observando, desconfiado. Era um labrador de apartamento, conformado, cor de chocolate, chamado Humbert Humbert. Na intimidade, para os da casa, era só cachorro.
A mãe suspira. Por meio segundo pensa em como teria sido a sua vida se continuasse solteira, viagens, unhas feitas, sucesso profissional. Mas logo assume o papel que se espera dela, abraça o pequeno, dá bronca no maior, enxota o cachorro. O dia nem começou.

- Eu sou a Bela Adormecida, e você?
- Fica quietinha pra eu poder te pentear, pode ser?
- Mas você vai ser quem? Eu quero ser a Bela Adormecida, quem você quer ser?
- Sou a rainha Cleópatra, tá bom? Fica quietinha agora senão vou acabar te machucando.
A mãe da mãe sempre puxava a escova com força demais e fazia o seu coque tão apertado e rente que dava até dor de cabeça. Mas o cabelo nunca soltava no meio do balé, sem precisar de grampos, de gel, nem de nada. Voltava da escola, almoçava, assistia um pouco de TV e se arrumava para ir. Sua mãe ia buscá-la de ônibus, segurava sua mão, ajudava a passar por baixo da catraca - quando ia com o pai ele a pegava no colo e a fazia pular por cima. Terminava a lição de casa na mesa da cozinha, enquanto a mãe preparava o jantar, e seu cabelo ficava sempre cheirando a bife. Ela já tomava banho sozinha e lavava a cabeça todos os dias, esfregando o couro cabeludo, emplastando com Neutrox, e enxaguando bem. Desembaraçava com um pente largo. Gostava de ver seu cabelo molhado no espelho por que ficava bem liso, como o das princesas.
O balé teve que parar quando a mãe faleceu, muito jovem, de um câncer de mama; foi logo depois que eles compraram o videocassete. O pai cortava um dobrado para tomar conta sozinho da menina única, com a ajuda que fosse possível das tias, da avó.
- Se o rei do Egito é Faraó como é que chamava a rainha, pai?
- Não sei, filha.
- Era Faraá? Tinha que ser Faraá.
- Eu acho que era só rainha mesmo.
Fazia mais ou menos um ano da morte da mãe. O pai havia alugado o VHS duplo de Cleópatra, a linda Elizabeth Taylor de olhos violeta na capa, olhando para ninguém. A exótica corte oriental, os brilhos dourados, as cores primárias do techinocolor; escravos carregando a liteira da bela dama nos ombros, pompas, plumas, reis romanos a seus pés - a garotinha assistia ao filme de olhos vidrados, impressionada, o pai dormindo a seu lado. Trocou sozinha a segunda fita, mas não rebobinou; tiveram que pagar multa na locadora depois. Ela achava a Elizabeth Taylor a cara da sua mãe, que tinha olhos pretos. O pai balançava a cabeça, concordando, sem prestar muita atenção.

E era muita sorte ter casado com alguém que ganhava tão bem. Ela não precisaria trabalhar enquanto o filho fosse tão pequeno, e teria o privilégio de acompanhar seu desenvolvimento, presenciar suas primeiras palavras, trocar suas fraldas. Quando percebeu, já estava grávida de novo, e ficou muito feliz porque tinha a certeza que era uma menina. O marido nem percebeu a sua decepção com o resultado do ultrassom; achou até bom, porque não teriam que mudar para um apartamento de três quartos tão cedo. E de repente a ideia de passar pelo menos mais dois anos trancada em casa começava a parecer insuportável.
Mas não valia a pena arranjar um emprego, valia? Eles eram pequenos demais para a escolinha – e aquele monte de criança junta, e as professoras que não dão atenção, e os piolhos. Avó, tias, nem pensar – os parentes do pai moravam em outro estado, os dela eram poucos e velhinhos, e moravam longe também. Uma babá? Botar uma estranha dentro de casa para olhar os nossos filhos? Ele não queria, de jeito nenhum. Mas os dois anos a mais já eram três, e no total mais de cinco, um branco intolerável no currículo, muito mal disfarçado com trabalhos autônomos aqui e ali.
E é quase hora do jantar, e um desses trabalhos tem que ser entregue hoje ainda, ou pelo menos estar no e-mail do contratante amanhã, antes do horário comercial. Tem a entrevista, também - ela precisa separar a roupa, fazer as unhas, imprimir coisas para mostrar. As crianças estão com o marido na sala, o cachorro abanando o rabo, a tevê. Risadas, pés pulando descalços, uma bolinha voando entre um sofá e outro, entre o pai e o mais velho, o cão e o pequenininho correndo atrás. O rebuliço de sempre que era a paz familiar do apartamentinho de dois dormitórios, móveis planejados, o sofá de couro, uma vaga própria e outra alugada, e o piso frio.
E o estrondo! – dezenas de objetos chegando ao chão quase ao mesmo tempo, o ruído seco de livros, um vaso de vidro espatifando, a própria estante, enorme, bam! O cachorro entra correndo pela cozinha, se esconde na área de serviço, não olha para trás. O pequeno chora. O que é que aconteceu, meu Deus?
- Não fui eu! Foi o Batman!
- Ele tentou subir para pegar a bolinha lá em cima, amor – O pai estava sentado, no sofá, o pequeno chorando em seu colo.
- Mas você não tinha que estar tomando conta deles, meu Deus? Esses dois se matam se a gente deixar que eles brinquem sozinhos!
- Eu nem vi, meu amor! Juro! Pisquei o olho um segundo e ele já estava lá!
- Cristo... leva esses dois lá pro quarto, por favor, enquanto eu arrumo isso aqui. Como é que ele tá? Machucou?
- Não caiu nada em cima dele, não, foi só o susto.
- Deixa eu ver.
O menino mostrou as mãos, um pouquinho esfoladas de aparar a queda. No joelho um vermelhinho que ia virar hematoma também, se não fizessem alguma coisa.
- Pega o gelo. Não, lava as mãos dele, eu pego o gelo. Assim não, espera... Pega o gelo você. Leva os livrinhos de colorir pra eles e vem me ajudar aqui. Não, fica lá com eles. Ou melhor, você esquenta o arroz? É só botar no micro-ondas. Na panela não, Deus do céu, bota num prato, num tupperware. Deixa que eu faço, vai varrer a sala. Não joga os cacos no lixo! Não, amor, não, tem que colocar num jornal primeiro. Olha aqui embaixo, tá cheio de caco. Põe a mesa por favor? O cachorro passa aqui, os meninos descalços, olha o perigo. Aqueles dois estão muito quietos, não estão? Vai lá ver o que eles estão aprontando. Não, deixa que eu vou. Põe esse prato aí.
E a louça, e terminar de arrumar a sala, e o banho dos meninos, colocá-los na cama, e o texto para entregar! O pequeno, ainda acordado, percebendo a luz acesa, foi para a sala.
- Posso ficar com você?
- Não, carinho, a mamãe tem que trabalhar e você tem que dormir. Vai pro quarto, tá bom?
- Mas eu não consigo dormir. E você não trabalha!
Um emprego de verdade, meu Deus. Carteira assinada, férias, amigo secreto, um panetone no fim do ano. O salário quase todo ia pagar a babá – o resto seria gasto com roupas para trabalhar, gasolina para trabalhar, manicure. Mas esse era o preço da liberdade, e tinha que dar certo, Jesus, tinha! O marido ainda relutava com a parte de botar uma estranha dentro de casa (“mas nem é para dormir, ela só precisa ficar aqui durante o dia – a gente nem tem espaço para ela dormir”). Mas lembrava que em algum momento as crianças iriam para a escola, os gastos aumentariam e era bom ter mais uma fonte de renda na casa. Guardar dinheiro para uma casa de verdade, com quintal, um apartamento na praia; quem sabe trocar de carro a cada dois anos, pelo menos o dele.
Desligou o computador. O cachorro dormia deitado de lado, ao pé do sofá; o peito levantava, abaixava. Levantava. Abaixava. Inspirava, expirava, roncando baixo e ritmadamente, devagar. As luzes da casa quase todas apagadas, exceto a pequena luz noturna do Homem-Aranha, pregada na tomada do quarto das crianças. O marido deitado de lado, encolhido, meio descoberto; ajeitou o edredom sobre ele, conferiu o despertador e deitou a seu lado. Silêncio.

- Bela Adormecida, Bela Adormecida!
- Mmm?
- Mãe! Manhê!
- Que é, filho?
- O Batman tá vomitando o quarto inteiro.
Olhou para o lado. O marido dormia a sono solto – e ele iria trabalhar no dia seguinte, afinal. Ela se levantou e aceitou a sua sina.
Limpar e arrumar o pequeno. Limpar o quarto. Pronto-socorro, medicação. Limpar o carro. Botar o menino para dormir no quarto vazio; encontrar o outro garoto, e o cachorro, e o marido, deitados na sua cama. Por dois segundos achou que era vantagem deixar tudo como estava e dormir na caminha do mais velho, mas não; carregou o filho até o quarto dele, enxotou o cachorro e se deitou. Tinha uma hora e meia de sono ainda antes de acordar para preparar o café.
Porque a vida é assim, não é mesmo?
A vida é ter torradeira elétrica, cafeteira, aspirador de pó. A vida é olhar um prato girando num micro-ondas. A vida é pagar IPVA, IPTU, IR, INSS, depois sacar o FGTS e se aposentar, e passar o dia todo a olhar os pratos girando no micro-ondas.
A vida é deixar os filhos na vizinha viúva de 70 anos, só-por-umas-horinhas, imagina-não-incomoda-adoro-criança, é sair escondido para que o menorzinho não veja e não chore. É perceber, já dentro do carro e quase atrasada, que as unhas estão em petição de miséria. É parar numa farmácia e comprar algodão e um vidro de acetona, e tirar o esmalte descascado no meio do trânsito.
E na freada de parar no farol, é claro que o vidro de acetona cai e se espalha todo pelo carro. Evaporando, deixa as manchas brancas de solvente em tudo o que toca, nos bancos de couro sintético, no plástico do console, nos tapetes, espalha o cheiro intoxicante no ar climatizado da bolha fechada. Ela abre a janela sem olhar para fora, o tempo exato de um pivete chegar, estender a mão e pedir um trocado.
- Não tenho.
Abre o farol. É um garoto magro, cor de terra, uns oito anos. A face brilhante de óleo e suor, de gente labutadora, as roupas sujas. Ela acelera e avança; Deus sabe o que impediu esse moleque de apontar uma faca para ela. Vê as olheiras cinzentas de corretivo no espelho do elevador, antes da entrevista; talvez tenha sido essa cara de bruxa malvada da Branca de Neve. Talvez ele nem tivesse uma faca, afinal. Era só um menino sem mãe.
Procura no bolso, na bolsa, na bolsinha de dentro da bolsa e encontra uma moeda novinha de um real. Linda, brilhante, a efígie fria da república com seus olhos cegos de prata, olhando o nada, ninguém. Deixa ali, equilibrada no painel no lugar em que estava a acetona, a borda dourada, bonita, coruscando ao sol. Volta pelo mesmo farol, e procura o garoto.
Ele não está mais lá. Em seu lugar, uma mulher com seu filho pequeno, uma moça, uma menina. Duas linhas brancas de secreção seca descem das narinas largas do bebê, a face da cor da terra brilhando de óleo e suor sob o sol. A moeda, a essa altura, já foi derrubada do painel pela freada: o rosto branco da república não vê o chão, os pedais, o tapete escuro. Ela fecha a janela e esconde sua bolsa por baixo do banco; só Deus sabe o que essa gente é capaz de fazer.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Céu


O céu de São Paulo não é cinza como vocês gostam de pensar. O céu de São Paulo é branco, vazio, é nada. Exceto no inverno, quando é de um azul cegante e seco, saturado, cruel. Um azul que sangra pelas narinas. No resto do ano é só vagamente azul, desbotado até o limite da cor. As nuvens quase não se contrastam, roupas brancas flutuando em água de anil, umas gotas poucas de anil – ninguém mais lava roupa com anil, em São Paulo
O céu se reflete no azul dos edifícios espelhados, mais azul do que o próprio céu. Grandes nuvens, lânguidas, navios derivando devagar, recortadas no quadriculado de esquadrias. Suspenso num par de cordas, um destemido lava cada fração do xadrez da fachada, esfregando o reflexo de um avião, até sumir.
Do alto do branco implacável, o sol em ápice projeta sombras duras no chão. A linha reta de uma marquise; os braços em movimento de um transeunte sobre o asfalto severo; o negro rendilhado da mantilha de folhas de uma árvore solteira, singular, brotando tenaz do concreto esbranquiçado por onde passarinhos ciscam.
Vocês gostam de pensar que não, mas há pássaros aqui. Além dos pombos, imundos, há outros.
O sabiá canta a sua canção de melancolia, nas árvores mais baixas, no gramado; os pardais, magriços, disputam migalhas do chão. Um alarido de maritacas, em bandos muito menores que outrora, cruza o céu, de verde em verde. Os sanhaços, macios, feitos do mesmo tecido que o céu do pós-tempestade – cinzento das nuvens de chuva, a nesga de azul que ainda resta, indecisa; ora quer que se a veja, ora quer não.
O azul vem de vez depois do crepúsculo, uns poucos minutos de azul absoluto na luz vacilante de antes da noite. No cerrar das cortinas, a noite é marrom e suja, da exata cor do nosso rio, se o céu é nublado; se limpo, é de um negror sem piedade, de estrelas pálidas, poucas.
O azul do edifício refletirá o negro espelho da noite, que vai refletir de volta, eternamente. A luz piscante de um avião cortará o feitiço, por um momento, até desaparecer no horizonte vertical da fachada. E então o espelho de vidro na terra e o espelho em veludo no céu voltarão a brincar, a empurrar para o outro e puxar para si a mesma imagem, ao mesmo tempo, a mesma escuridão inexorável, que ninguém sabe mais de quem veio, se da terra, se do céu, até a curva do tempo, até o amanhecer.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

três haikus urbanos*

qual neve no outono
na brisa junto às buzinas
as folhas farfalham


do céu da cidade
macio cinza e de azul
passarinho morto



tempestade finda
no chão se espelha indeciso
o céu que é de cinza


*frescura minha escrever haiku e não haikai. mas é haiku em absolutamente todas as línguas, exceto na nossa.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O décimo terceiro andar


 O pessoal da firma era calado, quieto. Era bom-dia, boa-tarde, fassavor e obrigado, e olhe lá. O chefe, sisudo, seco. Mas o que mais me incomodava no serviço era a sensação constante de estar sendo observada.
Você sabe como é. Aquele tinido mudo de través na garganta, uma picadinha muito suave com o lado rombudo de uma agulha morna, na nuca, meio de lado; a gente se vira para olhar e não tem nada ali.
Vai ver eram os ratos olhando a gente.
Isso, e os furtos à geladeira; quase qualquer coisa que se esquecesse de um dia para o outro, sumia. O chefe dizia que as faxineiras tiravam para limpar, e descartavam o que quer que houvesse lá por ordem da empresa; os colegas tinham certeza que elas comiam, levavam para casa. Até das gavetas, às vezes, sumiam chocolates. A Socorro, no entanto, jurava que a ordem era limpar uma vez só nas sextas e descartar aos fins de semana, pra não correr o risco de estragar nada numa possível falta de luz e ficar ali largado, fedendo. Era avisado, inclusive, penduravam cartazinho e tudo. Do que sumia, não sabia dizer, só tirava o dela da reta: eu é que não fui.
Vai ver eram os ratos também.
Mas trabalhar era isso, né? A gente aceita quase qualquer coisa quando tem conta pra pagar, jura que vai procurar outro emprego melhor, mas acaba ficando. Aquele medo de trocar o certo pelo duvidoso, e há empregos bem piores, afinal. O bom de todo mundo ser fechadão e conversar pouco era que deixavam fazer meu trabalho em paz, e não rolava fofoca nem mexericagem. Não muita, pelo menos. A rádio-peão, como se diz, em qualquer lugar, sempre tem histórias para contar.
Um dos rumores mais estranhos ali da empresa era a respeito do meu predecessor, desaparecido havia coisa de um ano. Dizem que o fulano simplesmente sumiu após descobrirem uma mancada feia dele, que nem bateu o ponto de saída no dia fatídico, e que depois ninguém nunca mais o encontrou. Não atendia telefone, não tinha família que se conhecesse, não veio nem dar baixa na carteira. Fora tragado pela terra, ao que parecia. Havia até o boato, circulando entre os terceirizados, de que ele teria se enforcado com a própria gravata no armarinho de vassouras, e a empresa encobriu para não manchar a própria imagem. A tal da falha? Ninguém sabia ou queria me dizer. Por tudo o que eu pude apurar, ele teria escrito o nome do presidente da empresa, Dr. Mario Pinto Machado, como Dr. Caio Pinto Brochado, numa apresentação em PowerPoint exibida para grandes investidores numa reunião importantíssima. Dei um sorrisinho fingindo achar graça quando me contaram, sem acreditar, na certeza de que estavam mesmo era tirando um barato com a novata.
Nosso setor dividia o décimo segundo andar, o último, com a zeladoria. Os seguranças e o pessoal da limpeza eram mais amigáveis que os meus colegas, e, no almoço e pausas para o café, ali na copa, era com eles que eu conversava. A faxineira Socorro, mãe solteira de dois meninos, trinta anos, tinha vindo do Piauí havia dois e fazia curso de manicure, "pra melhorar de vida, né". Carlão, segurança, negão do tipo armário, falava grosso e metia medo em qualquer um, mas era mais crédulo que a minha avozinha. Era ele o mais fervoroso propagador do mito do suicídio do meu desaparecido colega, e jurava, pela alma de sua mãe mortinha, que o fantasma do fulano ainda pairava por ali. "Vocês não passam as madrugadas nessa firma, não sabem o que eu escuto. Os passos do cidadão parece que vêm do teto, ecoam pelo andar inteiro. Dá sempre a impressão de que tem alguém te vigiando. Eles falam que não aconteceu nada pra não sujar a imagem da firma, mas por que é que você acha que trocaram a equipe inteira da segurança naquela época? O pessoal sabia demais, certeza".
"Larga de ser frouxo", dizia a Socorro. "Esses barulhos que vocês escutam aí de madrugada é rato, isso aqui tá infestado. Ninguém faz nada, depois aparece um aí passeando em plena luz do dia e aí a culpa vai ser da faxineira que não tá limpando direito".
Eu honestamente não sei se rato chega a subir tão alto num prédio, mas vai saber. Sei nem se eles teriam o que comer ali, nunca encontramos papéis roídos nem nada, a não ser que eles tenham mesmo aprendido a abrir gavetas e geladeira. Que a gente escutava de vez em quando uns ruídos ali no teto, lá era verdade, mas eram sons pesados demais para passos de rato. Rangidos, baques, pancadas; da primeira vez fiquei assustadíssima, mas meu chefe e os colegas juraram que não ouviram nada. A minha teoria é de que era o barulho natural das placas do forro se expandindo e se ajeitando, como acontece em casas de madeira. Não que eu já tenha morando numa casa de madeira, mas ouvi dizer. Acho que foi no Mundo de Beakman.
A explicação me parecia perfeitamente racional até o dia em que eu tive que ficar até tarde na firma.
Precisava terminar uma apresentação até o dia seguinte sem falta, concentrada no computador com uma caneca de café e cacófatos involuntários surgindo à minha mente no meio da sonolência. Precisei escrever o nome do presidente da empresa e me lembrei da tal suposta mancada do meu "falecido" colega. Dr. Caio Pinto Brochado, haha. É besta, mas com o sono que eu estava e a falta de vontade de ficar ali trabalhando, poderia rir até do pior dos trocadilhos. Do nada, no entanto, aquela sensação de novo – a agulhadinha suave na base da nuca. Virei para ver. Ninguém.
Vai ver eram os ratos.
Tomei mais um gole de café e continuei com o serviço. Era o sono, devia ser. Não faltava muito para terminar, e logo eu estaria na minha cama quentinha, na minha casa, onde não há barulhos estranhos nem ratos, nem grandes executivos de nome engraçado, nem fantasmas.
Estava desligando o computador e guardando as minhas coisas, quando senti de novo a agulhada. Meu deus.
Olhei para cima. Um dos painéis do forro se moveu.
Um centímetro ou dois, fechando uma fresta. Mas se moveu. Eu vi.
Ratos não fazem isso.
Fui beber um gole d'água. Bobagem, eu estava cansada. Foi uma alucinação, causada pelo sono, só podia ser. Peguei a minha bolsa e estava quase saindo, quando me deu na telha subir na mesa de trás, onde eu havia visto o movimento, e dar uma olhadinha no forro mais de perto, só para garantir.
O painel parecia firme, não consegui mexer. O som, batendo com os nós dos dedos, era oco. Se havia alguma coisa, não estava mais lá, com certeza. Nem um rato. Besteira minha, mesmo.
No dia seguinte, antes de apertar o botão de "enviar" no email com a apresentação anexa, me ocorreu abrir o arquivo e dar uma revisada. Não custava nada, e o chefe não havia chegado ainda, mesmo.
Meu deus.
Meu coração pela boca quando percebi que o nome do presidente estava escrito errado, com aquele maldito trocadilho idiota.
Será que eu estava com tanto sono assim que escrevi aquilo sem querer? Será que um espírito de porco modificou o arquivo através da rede? Será que era uma maldita auto-correção do próprio programa, que talvez tenha sido a desgraça do meu predecessor? Revisei tudo vinte vezes, desativei as auto-correções e salvei uma cópia do arquivo numa pasta inacessível em minha própria máquina, e foi essa a cópia que enviei para o chefe. Aquele dia eu tive dor de cabeça pelo expediente quase todo, e só sosseguei quando o chefe voltou da reunião, sem falar nada, sem olhar feio, em silêncio. Graças a deus. Graças a deus.
Nem fiquei estressada quando percebi que os iogurtes que havia deixado na geladeira do dia anterior para esse haviam sumido. Os ratos também têm que se alimentar, afinal.
Estava fazendo um ano e um mês do desaparecimento daquele meu colega, o que nunca foi. A vida continuava como sempre. Meus companheiros calados, o chefe, rígido e sisudo, Carlão contando histórias, Socorro não acreditando. Dessa vez era o quartinho das vassouras, que amanhecera desarrumado, uma zona, tudo jogado no chão. Socorro havia tomado uma bronca enorme da sua supervisora e acusava Carlão, porque ele, de plantão, era a única pessoa na empresa que poderia ter feito aquilo. O segurança jurava que não, que ele nem tinha a chave do armarinho, afinal, que ouvira o barulho e correra para ver, mas não pode entrar, e que o culpado, claro, era o fantasma do falecido.
"Olha lá o banquinho caído no chão, o alçapão no forro aberto. Foi assim que ele se enforcou, amarrou a gravata no puxador e pulou do tamborete. Hoje é aniversário da morte dele, sabia?". Quis corrigir, eram treze meses na verdade. Mas achei melhor não me meter.
"Você que fez isso, seu espírito de porco, pra provar pra todo mundo a sua lorota. Minha chefe quis me matar hoje de manhã. Eu tenho dois filhos pra sustentar, seu desgraçado, sozinha, sabia? Eu pago aluguel, sabia?"
Se alguém havia morrido ali, se debateu muito antes de morrer. Só os ratos também não teriam sido capazes de fazer aquela baderna toda. Não era só o banquinho; a estante de metal com os produtos de limpeza estava caída, na diagonal, atravancando o pequeno cômodo inteiro; os produtos, espalhados pelo chão, enchendo o corredor com um pot-pourri de aromas químicos. A porta do alçapão aberta, balançando numa brisa inexistente, no movimento pendular que lembrava mesmo, um pouco, um corpo enforcado, pendurado.
Bobagem. Chega de maus agouros. Era meu último dia antes das minhas primeiras férias – por isso sabia que estava fazendo treze meses do desaparecimento lá do cara – e eu é que não ia me meter na briga. Cumprimentei os dois e voltei para o escritório, louca para resolver absolutamente tudo e amarrar qualquer ponta solta que se atrevesse a ficar pendurada, para que ninguém fosse me perturbar durante meu descanso.
Não tive tempo de relaxar um único músculo, no entanto. Já em casa, à noite, bem depois do fim do expediente, me dei conta que havia esquecido alguns documentos numa gaveta, numa bolsinha vermelha, e não poderia viajar sem eles. Foi fácil entrar na empresa, já que era o Carlos que estava de plantão, novamente. Difícil era subir doze andares com os elevadores desligados.
O edifício vazio de uma grande empresa era algo assustador. Não me surpreendia que o segurança insistisse naquela história de fantasmas. Mesmo nos momentos de maior silêncio ali dentro, durante o dia, havia sempre passos no corredor, alguém falando ao telefone, um celular tocando. Ali, no vácuo das paredes cor de gelo, apenas o ruído dos reatores das lâmpadas enchia o ar. Tive uma náusea quando olhei para o fundo do poço formado pelas espirais em retas das escadas; um grão de poeira, voando no ar naquele momento, teria um longo caminho a percorrer até o térreo.
Nunca tive vertigens de altura. Devia ser o cansaço, o sangue já faltando à cabeça. Eu ia ficar bem.
Meus próprios passos ecoam no corredor ermo, como se alguém me seguisse, quase em sincronia comigo. Paro e olho para trás; o barulho parece continuar ainda por uma fração de segundo, mas pára. Dou mais dois passos; o som suave como o pulsar do coração de um minúsculo animal, que cessa antes que meu próprio coração volte a bater. É claro que era o eco.
Por meio momento antes de acender a luz do escritório, tenho a impressão de ouvir o barulho distante de plásticos sendo amassados, baratas abrindo as asas, um rato roendo a roupa de um morto e enterrado rei de Roma em seu sepulcro. A sensação de mil agulhinhas mornas encostando seu lado rombudo por toda a minha coluna inteira. Há alguém ali.
Acende-se a luz. As janelas repousam, sem vista, cerradas. Os rodízios das cadeiras não rangem, não rolam. Os telefones não tocarão.
Mas a minha gaveta está aberta.
Eu me aproximo, devagar. Esbarro na correntinha de uma das persianas, que se move um mínimo, para lá e para cá, num movimento pendular que me lembra algo de que não quero lembrar. O zumbido silencioso das lâmpadas é perturbado pelo suave rumor que vem da minha gaveta. Me inclino.
Me inclino e ele se levanta, súbito, sopetão. Os olhos redondos rebrilham na luz fria, os dentes agudos levam um vermelho de sangue na boca. Um rato, uma ratazana enorme, imensa, do tamanho de um gato, de um cão, de um tiranossauro, carregando consigo minha bolsinha de documentos. Ele se aproveita da minha surpresa e salta; protejo meu rosto sem ver que não é um ataque, mas uma fuga. O animal escapa pela porta, levando na boca toda a minha existência legal. Não há tempo para ter nojo, eu tenho que correr.
No fim do corredor iluminado, uma fresta de escuro se abre; é o armarinho da limpeza, onde o rato se esconde. Me estranha estar aberto, mas corro até lá. Acendo a luz. Ele desapareceu.
Procuro. Não há nada lá além de vassouras, rodos, químicos, venenos, líquidos coloridos com cheiro de flores falsas em garrafas enfileiradas. Uma agulhada morna me faz olhar para cima; o alçapãozinho do forro está aberto.
Subo, não sem esforço, usando o tamborete do enforcado e as estantes de ferro como escada. Com meio corpo apoiado lá no alto, o único sentido que funciona, a princípio, é o olfato; poeira, bolor, o odor pungente de secreções corpóreas, de animal, de mamífero.
Usando o celular como lanterna, os olhos devagar devassam a escuridão. O forro tem a altura exata para que um ser humano se arraste, de gatinhas; as bolas fofas de poeira cinza dividem o espaço com a fiação e as teias penduradas de aranhas que já não habitam o lugar. Pedaços de plástico, talvez coloridos, amassados; levo muito tempo para discernir que são embalagens de doces, iogurtes, refrigerantes. De longe, algo reflete o brilho da mínima luz que trago: um par, dois pares, duas dúzias de minúsculas gemas em pares paralelos, pequenos olhos mirando de volta: ratos.
Toda uma família de ratos cinzentos, de mãozinhas cor de rosa e olhos brilhantes, olhando para mim.
Quase no topo do teto, a minha parca luz é refletida por um par de gemas um pouco maiores, coroadas por uma teia de cabelos desgrenhados, cinzentos de poeira. As roupas estão imundas, esfarrapadas, da cor da sujeira gris, mas no pescoço, atado num perfeito nó Windsor, brilha o tecido vermelho de uma gravata impecável. Magro, esquálido, mas muito vivo, com minha bolsinha de documentos na mão, o meu ex-colega me observa com seus olhinhos apertados de rato, e milhões de minúsculas agulhas mornas parecem espetar o meu corpo todo.