sábado, 14 de janeiro de 2012

Taturana


 Não era nada, era o quê? Dois, três pelinhos a mais ali no meio? Mas parece que a mãe dela não deixava tirar, e o pessoal não perdoava. Às vezes era Jeca Tatu, de outras era Lobisomem, mas quase sempre era só Taturana mesmo. Lobisomem a gente achava cruel, os meninos não tinham noção. Taturana era até carinhoso, pensávamos. Acho que até as serventes da faxina a chamavam de Taturana.
Mas sobrancelhas grossas eram a moda da época, e eu até invejava um pouco, sabe? A minha era cheia de falhas, minha mãe não deixava pintar, e pra Taturana bastava tirar aqueles pelinhos. A gente já raspava a axila, também as pernas, a Taturana ainda não. A gente usava sutiã, mesmo que não precisasse, a Taturana ainda não. A gente combinava as mentiras quando o pai não deixava ir na danceteria, a Taturana nunca.
Quando a gente saía, a Taturana não usava minissaia nem vestidinho de viscose, e não era nem por não se depilar: é que qualquer saia lhe dava uma terrível sensação de escancaramento. As duas pernas cobertas pelas pernas da calça eram uma segurança frente à liberdade de uma saia soltinha, por mais comprida que fosse. Ela usava o cabelo sempre preso num rabo de cavalo alto, a camiseta do uniforme solta, pra fora da calça, e uma mochila azul que a gente sabia que era a mochila velha do seu irmão mais velho, já no colegial. Costumava ser a última a ser escolhida na educação física, antes da menina vesga e do garoto fanho entrarem na escola. Não era gorda nem magra, inteligente nem burra, e na verdade a única coisa por que ela se fazia notar era mesmo a taturana.
Outra que tinha as sobrancelhas grossas, fortes, lindas, era a professora Soraya, de português Tinha o cabelo preto bem preto de libanesa, armado, enorme, caindo em cachos nas costas, e um sorriso eterno de vendedora no rosto. Usava um batom vermelho trazido dos anos 80 e uma colônia da Avon que faziam parte da sua figura, a gente jamais a imaginaria sem. Tinha seus trinta e tantos anos e uns peitos, uma bunda enorme, um pouco de barriga também, mas pros meninos que nunca tinham visto um decote na vida aquilo era pura fartura. Entrava na sala e a preenchia inteira, cada átomo do ar entre nós era dela, sua risada ressoava pelos corredores. Era uma dessas baixinhas que parecia ter dois metros de altura, só pela presença. Todas nós eramos completamente apaixonadas por ela. Todas nós.
A Taturana passava os intervalos do recreio lendo, sozinha, na biblioteca. Acho. Pelo menos eu a via lá de vez em quando, e nunca no pátio, nem na cantina, muito menos escondida com a gente no parquinho abandonado, aonde íamos para fumar. Nesse dia encontramos o parque trancado, e as meninas se dispersaram. Eu, na fissura, fui para o banheiro, fumar em pé sobre a privada, assoprando a fumaça na janela alta do reservado do canto. O barulho de gente entrando me assustou, primeiro um claque claque de saltos, depois um rumor silencioso de tênis. A voz da professora Soraya reboava pelos azulejos, e eu quase engoli o cigarro no medo de ser descoberta.
- Não tem nada de mais, Tatiana. Depois você tira, sua mãe não vai brigar. Faz a boca em O, assim.
Não vi. Mas podia imaginar a cena que passava atrás da minha porta de madeira. A professora Soraya pintando um coração na boca da Taturana, um coração vermelho, demodê, pulsando sobre a pele branca. A estranha no espelho, o nervoso, o coração na boca. O cabelo.
- Sabe que eu nunca tinha reparado que seu cabelo era tão clarinho? Quase loiro. Você devia dar um corte, deixar solto assim.
Eu não podia sair dali, o medo de descobrirem que eu fumava. Uma mosca entrou pela janela, deu duas voltas em torno da minha cabeça, voou por baixo da porta. Daria minha alma para ser aquela mosquinha.
- Você pode tirar, se quiser. Tem uns minutos de intervalo ainda. Eu tenho que pegar o material na sala dos professores, mas se eu fosse você, deixava.
O claque claque dos saltos foi embora. Saí.
A Taturana estava tão absorta com a própria imagem que jamais teria me notado. Era outra ali. A camisa do uniforme pra dentro da calça de helanca, mostrando a cintura fina e os quadris em formação. O cabelo, ondulado e brilhante, quase loiro mesmo, caindo sobre os ombros. O coração na boca. E a ponte entre uma sobrancelha e outra, os três pelinhos no meio da testa, não estavam mais lá. Talvez fosse impressão minha. Mas não vi. Na hora tive certeza.
Não disse nada, estava preocupada demais com o meu cheiro de cigarro e com o sino que soaria a qualquer momento. Estava na sala, já escondida no fundo, quando o sinal tocou. O claque claque dos saltos e um sorriso branco emoldurado em vermelho entraram na sala. Era aula de português.
Momentos depois, já no silêncio da sala em ordem, surgia na porta a Taturana, irreal. A professora de costas, passando matéria na lousa, alguns de nós copiando, concentrados. Foi o Batatinha, o alemãozinho gordo que sentava na frente, quem deu o alarme:
- A lá, a Taturana passou batom!
Sessenta e quatro olhos se ergueram dos cadernos e se voltaram para a porta. Encontraram a figura magra e meio curvada, peitinhos perdidos na camiseta larga, cabelos fartos abaixo dos ombros, brilhantes e quase louros, e um coração na boca. Mas foi por dois segundos.
(Por muito tempo não conseguimos chegar a um acordo quanto à sobrancelha dela, se havia tirado. Eu e metade da sala achávamos que sim, os outros tinham a certeza que não.)
Do que aconteceu depois, a gente não sabe muito bem. Sabemos que ela correu para o banheiro e que a professora Soraya saiu correndo atrás, o claque claque dos saltos ecoando pelo corredor. Não terminamos aquela aula de português. Dizem que chamaram os pais da Taturana para virem buscá-la no colégio, e por muitos dias disseram que ela estava doente, de atestado, em casa. Por fim descobrimos que havia mudado de escola, e sempre que tentávamos ligar pra ela, a empregada dizia que estava no inglês, na natação, ou que simplesmente havia saído.
Já achei ter visto o rosto dela, com e sem taturana, umas tantas vezes nesses anos. A moça que tocava violão e cantava no barzinho, com uma voz rouca que podia ser a de qualquer pessoa. A recepcionista mal-educada no laboratório de análises clínicas. Uma caixa de supermercado, cujo crachá não dizia Tatiana. Só fui encontrá-la anos depois, visitando o velho bairro, no dia de natal. Usava camisa fechada até o pescoço, sapatos baixos, e estranhei que estivesse de saia. Os óculos eram para hipermetropia pesada, se podia ver pelas lentes, e ela engordou um pouco. Os cabelos, cheios de branco sem tingir, eram presos atrás com um coque, e a taturana ainda estava lá. Se ela me reconheceu, fingiu não me perceber muito bem.
Parece – me contaram – que ela virou pastora de uma igrejinha pentecostal aqui da rua mesmo. Casou com um cara de um metro e meio e metade do seu peso, crente também, mas que tomava umazinha escondido. Moravam nos fundos da igreja, um salão alugado que já foi uma padaria, e nunca tiveram filhos.  

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Lenore

Essa é minha primeira tradução de poesia. Decidi fazer como exercício, e também por encontrar muito poucas traduções de Lenore, um dos meus poemas preferidos do Poe. O cara é um dos grandes estilistas da língua inglesa, e se eu não conseguir passar o clima do poema para o português, o que é muito difícil mesmo, espero pelo menos ter absorvido um pouco do seu estilo para uso próprio. Não sejam cruéis; como eu disse, é minha primeira vez.


Lenore - versão 1.0
Edgar Allan Poe - tradução de Danieli Moreira

Quebra-se a taça dourada, vai-se a alma que se aflige
Que soem o sino! -uma alma santa adeja o rio Estige
Por que não choras, Guy De Vere? solta agora o teu plangor!
Vê! o derradeiro leito que é do teu amor, Lenore
Vem! Ore-se a última prece, cante-se a canção final
Um hino à jovem e bela morta de porte real
Ela, duas vezes morta, finda jovem, virginal

“Vis! Amavam suas posses sem perdoar-lhe a altanaria
E quando caiu de cama, bendisseram que morreria
Como rezarão as preces? Com que boca cantarão?
Com suas viperinas línguas, com seu mau-olhado então
Que mataram a inocente, que tão jovem foi-se em vão”

Peccavimus; deliras! Deixe o réquiem tocar
A purificar os mortos, subindo a Deus pelo ar
Seu amor, Lenore, que antes subiu, ao lado da esperança
Deixando o desespero por tua noiva, ainda criança
Por ela, a bela, a estrela que sob o chão já se vai
A vida em seus louros cachos mas não em seus olhos mais
A vida ali, ainda em seus cachos, em seus olhos jamais

Meu coração é leve, não me lamentarei mais
Ali o anjo paira, canta graças por seus ais
Que o êxtase dessa alma não ouça sino terreno
Que não se prenda ao mundo, condenado e tão pequeno
Do inferno ao céu a alma canta a nós o seu adeus
Do sofrimento a um monumento ao lado bem de Deus"


Original


Ah, broken is the golden bowl! the spirit flown forever!
Let the bell toll! -a saintly soul floats on the Stygian river - 
And, Guy De Vere, hast thou no tear? -weep now or never more!
See! on yon drear and rigid bier low lies thy love, Lenore!
Come! let the burial rite be read -the funeral song be sung! - 
An anthem for the queenliest dead that ever died so young - 
A dirge for her, the doubly dead in that she died so young.


"Wretches! ye loved her for her wealth and hated her for her pride,
And when she fell in feeble health, ye blessed her -that she died!
How shall the ritual, then, be read? -the requiem how be sung
By you -by yours, the evil eye, -by yours, the slanderous tongue
That did to death the innocence that died, and died so young?"


Peccavimus; but rave not thus! and let a Sabbath song
Go up to God so solemnly the dead may feel no wrong!
The sweet Lenore hath "gone before," with Hope, that flew beside,
Leaving thee wild for the dear child that should have been thy bride - 
For her, the fair and debonnaire, that now so lowly lies,
The life upon her yellow hair but not within her eyes - 
The life still there, upon her hair -the death upon her eyes.


Avaunt! tonight my heart is light. No dirge will I upraise,
But waft the angel on her flight with a paean of old days!
Let no bell toll! -lest her sweet soul, amid its hallowed mirth,
Should catch the note, as it doth float up from the damned Earth.
To friends above, from fiends below, the indignant ghost is riven - 
From Hell unto a high estate far up within the Heaven - 
From grief and groan to a golden throne beside the King of Heaven."

domingo, 8 de janeiro de 2012

A gaiola dourada


A gordura na panela borbulhava dourada, rumorejante, como uma nascente em dia de sol. A cebola, de um claro verde de limo, de pedrinhas de fundo, ia ficando transparente, enquanto o alho, descascado e espremido na hora, se tornava opaco. Duas medidas de arroz branco, exatas, mexidas e reviradas com a colher de pau, até que o branco se torne mais branco se torne mais branco; quatro medidas de água, sal, e a panela tampada, até secar. Era assim que o arroz ficava soltinho, soltinho como ele gostava.
É que eles tiveram que dispensar a empregada depois que ela foi demitida. Ele não se importava de segurar as contas, mas é claro que teriam que cortar despesas, e ela ia ficar em casa mesmo... Com ela, o arroz ficava mais soltinho, as camisas mais bem passadas, a casa muito mais limpa. Empregada não tem cuidado, ele dizia, faz tudo de qualquer jeito; a gente cuida muito melhor do que é da gente mesmo.
Graças a Deus o menino tinha passado numa universidade pública, e o cursinho da menina era só pro ano que vem. E a casa – um sobradinho de três quartos, quintal, num bairro distante mas muito tranquilo – estava quitada. Claro que continuava a procurar emprego, mas o marido se recusava a aceitar que ela ganhasse menos do que no trabalho anterior: “Pra você ganhar essa miséria é melhor ficar em casa”. Mas as empresas agora só queriam jovenzinhos recém-formados ganhando salário de fome, e ela já tinha, afinal, quarenta anos.
Ela ainda tinha quarenta anos. Ela só tinha quarenta anos.
Quarenta anos e dois filhos quase adultos, um menino que deixava a toalha molhada na cama e uma menina que estragava todos os seus sapatos bons, além de um marido incapaz de fritar um ovo. Quarenta anos e sua única viagem para o exterior havia sido um pacote quatro-dias-três-noites para Buenos Aires, que o marido havia comprado porque todos no escritório estavam indo para lá. Quarenta anos e sua maior ousadia havia sido uma vez descer de tirolesa no hotel fazenda, num feriado de Corpus Christi, apavorada, para nunca mais.
Os grãos escuros do feijão caíam da concha e se espalhavam pelo fundo do prato. O branco do arroz era servido por cima, contrastando no escuro do caldo grosso, cheiroso de toicinho e alho. Esse era o prato dele. O menino exigia o feijão por cima do arroz, e a menina queria os dois lado a lado, separados, para não misturar. As crianças pegavam seu prato, brigavam pelo bife maior e se sentavam no sofá, para ver a tevê. Ele sentava à cabeceira da mesa, de onde podia ver o jornal, pela porta da cozinha. Do lugar dela, só dava para ouvir. Algo sobre desabrigados, vítimas, perícia, bombeiros. “O que é que houve, amor?”
“Um incêndio. Aquela favela lá que a gente vê no caminho da sua mãe, sabe?”
“Deus do céu.”
“Morreu uma moça grávida, parece.”
Ela se contorceu para ver. Na tela, uma senhora que não devia ter quarenta anos, mas parecia ter mais, chorava a morte da filha, de dezesseis. Cortava para um homem de trinta que parecia ter quarenta, de voz embargada e uma criança pela mão. “Era nossa vida, ali. A gente trabalha tanto pra ver tudo sumindo do dia para a noite. Geladeira, fogão, tudo. A televisão, acabamos de comprar”.
O filho e a filha assistiam indiferentes; já tinham terminado de jantar. O garoto fazia Administração; a menina queria Psicologia. Os dois iam bem na escola, eram responsáveis, não saíam muito. Encaminhados na vida. O marido estava bem na empresa, era de confiança lá dentro e tinha bons contatos e propostas caso acontecesse alguma coisa. O bairro era tranquilo, sem enchentes no verão, nem roubos a casas, nem pedintes nas ruas. Era bom assim.
Melhor que a sua irmã, que tinha quase a sua idade e estava sendo enrolada pelo noivo havia tantos anos. Melhor que uma de suas amigas, que praticamente sustentava o companheiro, que nunca conseguia emprego fixo. Melhor que a prima, que morava naquele bairro horrível e volta e meia apanhava do marido bêbado, mas não o largava, jurando amar. Tinham dois filhos, também, e “é horrível uma criança crescer sem pai”, não é mesmo? Melhor assim.
Ele tirava com cuidado sua camisa branca e a pendurava num cabide, para não amassar. Não estava suja ainda e sua mulher poderia ser poupada do trabalho de lavar. Pendurou as calças, dobradas no vinco, nas costas de uma cadeira, e enrolou as meias dentro do sapato, porque tinha ideia de que era muito ridícula a imagem de um homem nu usando meias. A mulher já estava de camisola; tinha quarenta anos, mas era linda.
Ele apertava demais os seios dela, sempre. Ele não sabia nunca o que fazer com a língua, e ele sempre entrava sem pedir, sem perguntar. Penetrava num ângulo que a incomodava, apoiava o peso do corpo sobre o corpo dela, tinha pelos nos ombros, nas costas. Quando começava a ficar quase agradável e ela gemia um pouquinho, ele já aumentava o ritmo, achando que ela estava para gozar. No fim, se enlaçava com ela, quente, sufocante, suado.
“Preciso tomar banho.”
“Fica só mais um pouquinho aqui, juntinho.”
Ela, então, esperava até que ele dormisse, e muito delicadamente afastava o seu braço, peludo e pesado. Tomava um banho demorado, lavando o suor do outro, o alho das mãos, o cansaço do dia, o cheiro da obrigação.
Naquele dia escolheu o vestido preto, um pouco apertado, que ele sempre achou curto demais. Escolheu o batom vermelho, que só usava em casamentos e nas raras festas. Escolheu deixar os cabelos soltos, em vez de presos com uma piranha de plástico, como sempre usava em casa. Deu uma última olhada no sono do homem que amava, na sua respiração regular, ritmada; podia ouvir, ou pensava que ouvia, o som de seu coração dali, ao lado da cama, em frente ao espelho de corpo inteiro do guarda-roupa aberto. Pegou a bolsa que todos achavam que era a da academia, e saiu. Descalça.
O carro dela ficava estacionado na calçada, porque o sobrado tinha uma vaga só. Era melhor; as crianças não escutariam o barulho do portão, e a partida poderia ser a de qualquer carro na rua. Ao chegar, tirou um par de botas daquela bolsa e as calçou; eram saltos altos, altíssimos, finos, finíssimos, que a filha nunca soube que ela tinha, ou já teria pegado, sem pedir, e estragado. Detestava ter que se anunciar para o porteiro da noite, mas era preciso; era a obrigação do funcionário. Melhor que não se lembrasse da sua cara, mesmo. Subiu o elevador. Ele a recebeu na porta.
“Você demorou...”
“Isso é problema meu.”
“Perdão.”
“Perdão o caralho. Me traz logo alguma coisa para beber.”
Ela escolheu a melhor poltrona da sala, sem pedir. Ele veio da cozinha, correndo, trêmulo, um copo na mão direita.
“O que é isso?”
“Água?”, ele disse, inseguro do próprio conteúdo do copo. Ela se levantou de uma vez; o cenho franzido, os olhos muito abertos, furiosos. Ele era mais alto, mesmo com os saltos dela, mas parecia menor, muito menor.
“Água!? É assim que eu sou recebida? Com água? Isso é coisa que se sirva, seu infeliz?!” Ergueu o braço direito e baixou de uma vez, marcando a cara dele com cinco dedos vermelhos; com o golpe, ele derrubou o copo no chão, espatifando. “E agora isso! Não tem o menor cuidado, seu inútil. Vai limpar. Espera. Tira a roupa antes, infeliz.”
Um homem de meia idade, pelos grisalhos, um pouco de barriga, o pau triste e flácido, pendurado ali, como se não pertencesse. Uma figurinha patética, de cabeça baixa, como uma criança com medo.
“Os sapatos também.”
“Mas os cacos...”
“Fodam-se os cacos. São culpa sua, os cacos. Quero mais é que você pise num deles, que te vare o pé, que perfure uma artéria, infeliz. Quero ver você se esvaindo em sangue no chão da sua própria sala, desgraçado. Sabe o que eu vou fazer? Vou deixar você aqui, sangrando feito um porco, cortar o fio do telefone, levar o seu celular. Trancar o seu quarto, jogar pela janela as suas roupas. Você vai ter que bater na casa de um vizinho se não quiser morrer. Vai ter que pedir ajuda a qualquer um, com esse pau mole que não serve para nada à mostra. E eu estarei na minha casa, rindo de você, desgraçado. Agora vai. Limpa.”
Limpou. Ajoelhado no chão, descalço, de cabeça baixa, enxugou a água com um pano e recolheu os cacos maiores. Varreu, com cuidado. Ela assistia, sentada da melhor poltrona, indiferente.
“Agora me serve alguma coisa. Alguma coisa decente. E faz direito, como eu te ensinei da outra vez.”
Trouxe uma taça borbulhante da cozinha e se ajoelhou na frente dela, curvando a cabeça até o chão. Ergueu então as duas mãos e ofereceu a bebida, como uma dádiva preciosa a uma deusa. Ela a tomou de suas mãos com um golpe e provou. Não disse nada. Era uma aprovação.
Com ele ainda na mesma posição – ela não havia dado ordem para que se movesse – apoiou um dos saltos-agulha sobre sua nuca, pinçando um nervo. De pernas cruzadas, as coxas grossas à mostra, bebericava o champagne, devagar, olhando para o nada, pensando. Lembrava que não havia tirado nada do congelador para o dia seguinte, e teria então que passar no açougue e comprar uns bifes para o jantar, talvez bistecas, talvez umas asas de frango.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Prima Judite


 “Não repara a bagunça”, ela dizia, e a primeira coisa em que reparávamos é que não havia bagunça. Nenhuma. Um grão de poeira no piano, um caminho de mesa desalinhado, nada do tipo; tudo parecia ter sido medido e organizado com esquadro e régua, e executado por robôs. Até a mantinha do sofá, displicentemente jogada sobre o encosto, havia sido estendida ali da maneira que causasse o melhor efeito sobre o conjunto da sala, com o nível adequado de displicência para quebrar o gelo, mas não o suficiente para parecer bagunçado. Mesmo o enorme gato amarelo não parecia mais que um bibelô vivo, dormindo em algum canto onde combinaria perfeitamente com a decoração. E a prima Judite, em seus sessenta e tantos anos (quarenta e poucos para os íntimos) completava a cena, irretocável, de pé no seu vestido chemisier bem passado, com seus cabelos brancos ligeiramente lilases, alguma maquiagem e as mãos juntas, uma sobre a outra, na exata altura do peito magro.
A prima Judite nunca havia se casado. Vovó falou que ela escolheu demais, e uma mulher alta e magra, naquele tempo, não tinha valor como agora. Tia Rita, bêbada de Porto, uma vez contou que ela teve um noivo, por uns seis meses, “porteiro de hotel, aquele uniforme grená, mais baixinho que a Rosa do 62. Mas tinha dinheiro, o infeliz, não muito, mas tinha. Dava até jóias”. Achavam que ele agenciava as apostas dos cavalinhos para os hóspedes do hotel, assim, por fora, “ou coisa pior. Imagina a figura, a Judite lá com seu quase metro e oitenta e aquele cisco de gente, de braço dado, passeando pela calçada da Augusta. Imagina a cena, imagina!”. Tia Ritinha não soube precisar por que é que não deu certo, afora as incompatibilidades físicas. Mas achava que a Judite é que havia terminado, no fim das contas.
Na estante, um Marcelino de Carvalho, a Bíblia e algumas boas dúzias dos romances clássicos, Machados e Alencares. Edições bonitas de capa dura e dourado nas letras das lombadas, herança do pai dela, o tio Agamenon, que eu não conheci. Vivia da renda de um predinho alugado no centro, para pobres, que com um dinheirinho investido na reforma poderia triplicar de valor. Tentávamos convencê-la havia uns três natais, aproveitar o mercado aquecido, até emprestaríamos o capital se fosse o caso. “Depois você vende, boba, e vive da renda do dinheiro no banco, é muito melhor”. Mas a prima Judite não mudava as coisas.
A prima Judite não tinha sonhos. Não que se lembrasse, pelo menos. Uns pesadelos, aqui e ali, mas sempre os mesmos – um pesadelo inédito seria demais para o coração dela, coitada. Num deles, ela, criança, quebrava algo – às vezes a sopeira de porcelana com filetes de ouro, às vezes o grande vaso Baccarat – e seu pai vinha, enorme, sombreando a porta, a cinta de couro cru na mão.
E ela nunca havia apanhado, que se soubesse. Vovó garantia que não.
O outro era numa festa, – um pesadelo desses comuns, que muitos temos – uma festa chique, chiquérrima, um Baile da Ilha Fiscal. Casais giravam esvoaçantes, valsando; pirâmides de frutas sobre a mesa, leitões dourados como as rocalhas da decoração e tomates cortados em flor. No exato centro geográfico do salão, a prima Judite, sozinha, toda arrumada em seu vestido malva de chiffon de seda, percebia, de repente, que estava descalça. Ou de havaianas. E todos a olhavam.
A nossa família se reunia em todo natal, nos velórios e nos casamentos. Na média, dava umas duas vezes por ano – era raro quando morria alguém e alguém se casava no mesmo ano, então era só o natal e mais um evento esporádico mesmo. Como no ano passado havia morrido a tia Lucy, de câncer, esse ano a nossa sobrinha Tati se casaria. O convite era um desses moderninhos com a caricatura do casal; a prima Judite lamentava o fim da caligrafia manual e da tipografia dourada em letras góticas. Queria dar um faqueiro bonito, talvez uma bandeja de prata; mas o faqueiro que eles tinham pedido na lista da loja era horroroso, com cabos de plástico verde, e de bandeja só queriam uma daquelas de café da manhã. Coisas práticas, toalhas de banho felpudas, uns jogos americanos (só bárbaros comem nisso), nenhuma decoração. Acabou escolhendo um acolchoado. Perdão, um edredon.
A festa era em outra cidade. Oferecemos carona, mas a prima Judite preferiu ir com seu taxista de confiança, combinando a viagem. Ar-condicionado no carro era uma dessas poucas novidades que ela aceitava. Com um xale nos ombros, mas aceitava, para não derreter a maquilagem enquanto descia a serra.
O lugar parecia uma espécie de clube. Desceu do carro e ajeitou o chapéu, porque durante o dia era de bom tom usar chapéu em casamentos e ela não perderia essa oportunidade. Um tailleurzinho bege bem cortado, com lapelas de cetim no mesmo tom, mandado fazer na costureira. As unhas vermelhas, as meias finas trazidas da França, extravagâncias que se permitia. Os sapatos de salto enganchavam nos vãos do deque de madeira, que descia até o local da cerimônia. Uma coisa muito precária, coisa daquelas favelinhas de palafita no meio do mangue, pensava. Quando percebeu, já havia chegado ao local da cerimônia. No meio da areia da praia, como dizia o convite que ela não havia lido.
Já estavam lá o tio Antônio, de camiseta e bermuda. A tia Cleide, de vestidinho floral. O Zé Roberto de jeans, a esposa dele de shorts, branco com a barra desfiada. Os convidados chegando, sem cerimônia, de camiseta regata, as pernas nuas, até um biquíni aparecendo aqui e ali sob uma alça ou outra. Nos pés, chinelos, papetes, rasteirinhas, sandálias franciscanas.
O noivo, de algodão cru, aguardava ansioso, bonitão, barba de três dias, no meio do altar. A noiva vinha, etérea, os cabelos soltos, no meio de um oceano de cambraia branca. Linda. Jovem. Descalça.
Acho que a prima Judite faleceu pouco antes do natal do ano seguinte, do coração. Reformamos o predinho e o vendemos. Triplicou de valor, mesmo.