domingo, 23 de dezembro de 2012

Tradução - arvorezinha de natal - e.e. cummings


arvorezinha
arvorezinha quietinha de natal
você é tão pequenina
mais parece uma flor

quem te achou na mata verde
e você ficou tristinha por que te levaram?
olha vou te consolar
porque seu cheiro é tão gostoso

vou beijar sua casca fresca
e te abraçar bem apertado
que nem sua mãe faria
é só não ter medo

olha os enfeites
que dormem o ano todo numa caixa escura
sonhando sair de lá pra que possam brilhar
as bolas o festão de vermelho e ouro e os algodõezinhos

levanta seus bracinhos
que eu vou te dar todos pra segurar
cada dedo com seu anel
e não vai sobrar nenhum lugar triste ou escuro

aí, você bem vestida,
vai ficar na janela pra todo mundo ver
e como vão olhar!
e você vai ficar toda toda

e minha irmãzinha e eu vamos dar as mãos
e olhar nossa árvore linda
vamos cantar e dançar
“Natal Natal”


_________________
(original)

little tree
little silent Christmas tree
you are so little
you are more like a flower

who found you in the green forest
and were you very sorry to come away?
see i will comfort you
because you smell so sweetly

i will kiss your cool bark
and hug you safe and tight
just as your mother would,
only don't be afraid

look the spangles
that sleep all the year in a dark box
dreaming of being taken out and allowed to shine,
the balls the chains red and gold the fluffy threads,

put up your little arms
and i'll give them all to you to hold
every finger shall have its ring
and there won't be a single place dark or unhappy

then when you're quite dressed
you'll stand in the window for everyone to see
and how they'll stare!
oh but you'll be very proud

and my little sister and i will take hands
and looking up at our beautiful tree
we'll dance and sing
"Noel Noel"

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Tradução - O negro fala sobre rios - Langston Hughes


Conheço rios:
Conheço rios velhos como o mundo e mais velhos que o fluir de sangue humano em humanas veias.

Minha alma hoje é funda como os rios.

Me banhei no Eufrates na juventude da aurora.
Fiz minha cabana no Congo e ele me embalou para dormir.
Me voltei ao Nilo e levantei sobre ele as pirâmides.
Ouvi o cantar do Mississipi quando Abe Lincoln desceu rumo a New Orleans, e vi seu seio lodoso dourar-se todo ao pôr-do-sol.

Conheço rios.
Antigos, sombrios rios.

Minha alma hoje é funda como os rios.

_______________________
(original)

The negro speaks of rivers

I've known rivers:
I've known rivers ancient as the world and older than the flow of human blood in human veins.

My soul has grown deep like the rivers.

I bathed in the Euphrates when dawns were young.
I built my hut near the Congo and it lulled me to sleep.
I looked upon the Nile and raised the pyramids above it.
I heard the singing of the Mississippi when Abe Lincoln went down to New Orleans, and I've seen its muddy bosom turn all golden in the sunset.

I've known rivers:
Ancient, dusky rivers.

My soul has grown deep like the rivers.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Tradução - O amor vem antes da vida - Emily Dickinson





 O amor vem antes da vida,
  Depois do instante fatal,
Princípio da criação,
  O próprio sopro vital.

 ____________________

 Original

 Love is anterior to life, 
  Posterior to death, 
Initial of creation, and 
  The exponent of breath.

domingo, 2 de dezembro de 2012

Tradução - Senhora,eu vou tocá-la em pensamento - e.e.cummings


Senhora,eu vou tocá-la em pensamento
Tocá-la e tocar e tocar
até você dar
a mim um súbito sorriso,timidamente obsceno

(senhora eu vou
tocá-la em pensamento.)Tocar
-te,não mais,

de leve e serás completamente
total e naturalmente
o poema que não escrevo.

______________________
original

Lady, i will touch you with my mind.
Touch you and touch and touch
until you give
me suddenly a smile,shyly obscene

(lady i will
touch you with my mind.)Touch
you,that is all,

lightly and you utterly will become
with infinite ease
the poem which i do not write.

domingo, 25 de novembro de 2012

Tradução - tenho seu coração comigo - cummings


tenho seu coração comigo(tenho ele em
meu coração)nunca estou sem ele(em qualquer lugar
que eu vá tu vais,querida; e tudo que é feito
por mim é feito teu,meu bem)
sina
não temo(pois você é minha sina,amada)mundo
não quero(pois você é o meu mundo,amor)
e é você que é seja o que for que uma lua seja
e qualquer coisa que o sol cantar sempre será sempre você

eis o segredo mais fundo profundo que ninguém sabe
(eis a raiz da raiz e o botão do botão
e o céu do céu de uma árvore de nome vida;que cresce
mais alto que a alma é capaz de esperar, que a mente é capaz de ocultar)
e é este o milagre que não deixa as estrelas se juntarem)

eu levo o seu coração(tenho ele em meu coração)

_______________________
original



i carry your heart with me(i carry it in
my heart)i am never without it(anywhere
i go you go,my dear; and whatever is done
by only me is your doing,my darling)
i fear
no fate(for you are my fate,my sweet)i want
no world(for beautiful you are my world,my true)
and it's you are whatever a moon has always meant
and whatever a sun will always sing is you

here is the deepest secret nobody knows
(here is the root of the root and the bud of the bud
and the sky of the sky of a tree called life;which grows
higher than the soul can hope or mind can hide)
and this is the wonder that's keeping the stars apart

i carry your heart(i carry it in my heart)

Tradução - A casa de chá - Ezra Pound

A moça da casa de chá
                       Não é tão bonita quanto era,
O Verão desbotou sobre ela.
Já não sobe as escadas tão ávida;
É, ela também vai chegar à meia idade,
E o brilho de mocidade que ela derramava em nós
                       Quando trazia bolinhos
Não se espalhará, não mais.
Ela também vai chegar à meia idade.



_______________________
original

The tea shop

The girl in the tea shop
                       Is not so beautiful as she was,
The August has worn against her.
She does not get up the stairs so eagerly;
Yes, she also will turn middle-aged,
And the glow of youth that she spread about us
                       As she brought us our muffins
Will be spread about us no longer.
She also will turn middle-aged.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Geografia

 Não era mais que um tapete de branco, de flocos brancos de nuvem, e sob as nuvens, mais nuvens. Por sobre as nuvens o azul indelével, o sol inflexível, mais nada. Foi só quando estávamos para chegar que o chão dos nefelibatas se abriu num rendilhado, mostrando o macio cinzento das colinas no solo.
O enrugado dos morros se enrodilhava em si, mostrando e escondendo os leitos cintilantes dos rios nos vales. Escuros de mato e claros de campo se enxadrezavam, mostrando lá e cá um quadrado de terra nua, de verdes diferentes, de cultivares. Um brilho maior aqui e ali, açude ou campo de arroz. Açude. Açude. Arroz. Açude. Arroz. Lantejoulas rebrilhando ao sol, cintilantes ou meio turvadas das plantinhas nascendo. Me pareciam tão grandes, comparados ao vermelho dos telhadinhos de cima, coroando os morros em seu brilho de joia, e aumentavam conforme o terreno se aplainava. Eram gargantuescos os campos de arroz no plano do pampa, brilhando metálicos no claro verde da planície.
A geografia se recortava no estuário do rio. Um imenso de água escura se abria, azulando no horizonte. O barroco das margens, a borda espinhenta das marinas e cais privados. Um barco, outro barco, um navio. O porto. A cidade. A capital do estado se abria colorida diante de nós.
Pousamos.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Boneca de papelão


 Só uns botões, um retrós de linha de costura, um novelo de bordar. Mais nada? Não, não, mais nada. E pra menina? Ela não faz anos agora semana que vem?
A menina olhava, fixa, a boneca prostrada na prateleira. Enorme. Imóvel. Escura, da cor do papelão natural, duro, moldado na forma do corpo de menininha. Os olhos pintados de cílios curvados, longilíneos, oblíquos, a boca pequena e vermelha de botão de rosa. Um vestidinho muito simples, de chita de estampa miúda.
– A mãe não tem dinheiro, filha.
– Só estava olhando.
– Não quer levar mesmo? A gente faz pro mês que vem, não tem problema.
– Não posso, moça.
Não podia. Faltava tudo naquela casa. O que o pai ganhava de meeiro no café vinha uma vez por ano, pagava a conta do caderninho da venda e só. Os bordados da mãe seguravam as despesas que não se podia fiar durante o resto do ano. O pão, pagavam à vista, porque o português roubava na conta. O leite, o moço tinha que cobrar todo mês, coitado, não era culpa dele. O turco dos armarinhos, sovina, não fiava de jeito nenhum, mas a mocinha que atendia era a nora dele, que cuidava da lojinha enquanto o turco e seu filho viajavam mascateando. Ela deixava às vezes passar uma ou outra conta pequena, tinha dó, mas não podia fazer fiado nas contas grandes. A mãe às vezes tinha que juntar dinheiro por vários meses quando precisava de uma peça de fazenda.
– Pode escolher um decalque do grande, meu anjo. Presente meu.
A moça estendeu o catálogo dos decalques, enorme na mão da pequena. Era tudo muito lindo e colorido, os amores-perfeitos, as margaridas, as rosas vermelhas, repolhudas. Enquanto a menina olhava, fascinada, a mãe perguntou em voz bem baixa o preço da boneca. Era tanto. Mas pra você fazemos por um quanto. Ainda era muito.
Voltaram para casa com seus botões, novelos e retrós, e o decalque de um buquê de flores de todas as cores do mundo. A menina ainda pensava na boneca, a mãe pensava no jantar, em batatas cozidas e repolho refogado e rosas repolhudas vermelhas e o vermelho da boca da boneca de papelão na prateleira da loja. A menina, sentada no tamborete perto da porta, olhava para fora, pensava longe. A mãe, descascando batatas na mesa, a chamou. Separou uma batata meio verde do saco, espetou quatro palitos pra fazer as patas, dois quebrados ao meio fazendo os chifres, e entregou para a pequena.
– Tá vendo o boizinho? Toma, vai brincar com ele lá fora.
O tempo se consumia de outra maneira, naquele tempo. Era muito o tempo que se gastava deixando o feijão de molho, a roupa quarando, a roça crescendo, o café brotando. O tempo de bordar, à mão, um enxoval. Mocinha séria bordava o próprio, no tempo certo, antes mesmo de ter noivo, mas as moças que não queriam ver seus dedos calejarem na agulha o encomendavam. Custava caro pra quem pagava, era dinheirinho pouco pra quem recebia; o tempo escoava nos dedos, no vaivém das agulhas, um ponto por vez, um dia por vez. A menina ia fazer anos na semana que vem.
A gente sabia mais do tempo, naquele tempo. O tempo era claro em julho, garoava em março, em janeiro, chovia. Os horizontes amplos deixavam ver a chuva à distância, e quase sempre dava tempo de tirar a roupa do varal antes que fosse tarde. A menina ajudava, segurando as roupas que a mãe recolhia, o cestinho dos pregadores. As gotas vinham, uma por vez, e no começo nem pintavam o pátio, porque a terra seca os bebia, gulosa. Mas elas eram insistentes, as gotas, e chamavam suas camaradas para a luta, e o pintalgado da terra molhada se tornava rápido a lama uniforme, macia, fértil. O pai aparecia à distância, pisando com cuidado no barro que lhe sujava as botas. Tinha a enxada ao ombro e seu chapéu pingava. Sentiu o cheiro da comida da porta. Sorriu para a menina, sorriu para a mulher.
Os dias gotejavam, um por vez, a semana fluía, líquida. Era o aniversário da menina. Não podiam fazer muita coisa, mas podiam matar uma galinha e fazer um bolo para a sobremesa. A cor bonita do frango cozido no colorau, a couve bem passada no alho, o arroz e o feijão cheirosos no prato. O bolo dourado de massa fofa e branquinha por dentro, doce como o sol de manhã cedo.
– Tem uma surpresa para você, a mãe disse. No quarto. Na sua cama.
Um interruptor pendurado no teto acendia a lâmpada elétrica. Paredes de tijolo caiado, um guarda-roupa sólido de madeira escura, a cama de molas cheia de decalcomanias floridas forrada com uma colcha caprichosa de retalhos coloridos. Por sob a colcha, um volume. Foi ver. Era a boneca.
– Eu posso brincar com ela?
– Claro. É sua.
O primeiro olhar foi de espanto, fluindo através da dúvida e enfim felicidade, a mais ensolarada felicidade. Abraçou a boneca como quem se agarra à própria vida, abraçou a mãe e o pai, agradecida. Ele passou a mão nos cabelos da pequena e perguntou, baixinho:
– Foi muito caro?
– Mais ou menos. A moça fez um preço bom. Semana que vem vou receber de um enxoval e acerto.
Era linda, linda, linda, linda, linda como o céu sem nuvens. Não tinha pele clara nem cabelo como as bonecas de louça das meninas ricas, mas era grande pra abraçar, e sua, tão sua. Dormiu com ela, a sua própria menina, dormiu sonhando com sua filha, sua companheirinha, que em sonho podia mexer os braços e abraçá-la também.
Comeu pouco no café e no almoço, oferecendo um pouquinho de tudo à boneca e fingindo que ela comia, tem que comer tudo pra ficar forte, grande, bonita. Mostrou para as primas que só tinham bonequinhas de trapo de olhos de botão; seus olhos, os das meninas, dardejavam de inveja. Mostrou às galinhas, ao cachorro, à ameixeira do quintal. Brincou o dia todo no pátio de terra, fazendo a filha dormir, acordar, comer, arrotar.
O vento mudou de lado, mais forte, balançando as cortinas. A mãe chamou para ajudar a recolher a roupa. A menina deitou a boneca no berço, que era a raiz da árvore, e foi.
E a chuva veio. As gotas gordas pintalgavam o pátio, a água se juntava à terra, formando lama. O pai vinha à distância, as botas sujas, chapéu pingando. Sentiu o cheiro da comida da porta. Sorriu para a menina, sorriu para a mulher.
Acordou no primeiro raio de sol da fresta da janela no dia seguinte. A boneca! Esquecera completamente dela. Correu à raiz da árvore e encontrou, molhado ainda, o vestidinho de chita, de estampa miúda, sujo de lama. De lama e dos restos do papelão, molhado e desfeito, dilacerado pelo abraço da chuva.
A mãe, quando viu, gritou. Era tão caro, a gente faz tanto sacrifício, e nem estava pago ainda. Ameaçou bater. O pai a acalmou. A menina já estava sofrendo o castigo dela, chorando ao pé da árvore, um choro sentido, convulso, choro de quem perde um filho.
– Eu nunca mais te compro nada, ouviu bem? Nunca mais.
E não comprou.
Passou muito tempo. A mãe se havia finado, de uma pneumonia, de pegar friagem recolhendo roupa na chuva um dia, fazia mais de um ano, mas a menina era triste sempre. Faz falta um irmão, pensava a tia. Achou um presente para ela: uma boneca de louça, dada por sua patroa, que as filhas não queriam mais. A cara meio trincada e descascada, mas tão bonita no seu vestido de cambraia branca. A menina tentou abraçar a sua boneca nova. Era pequena demais, e seu rosto era frio.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

NaNoWriMo - National Novel Writing Month

Queridos,
Estarei participando do NaNoWriMo (National Novel Writing Month) esse ano, e achei que podia ser bacana falar um pouco do projeto. Quem sabe alguns de vocês se animam, e a gente entra nessa juntos.
O NaNoWriMo, que acontece todo novembro desde 1999, é um evento em que milhares de pessoas ao redor do mundo todo piram e decidem escrever um romance de 50.000 palavras (coisa de 100 páginas) em um mês. Parece difícil, parece até meio bobo, mas quando você (como eu) está adiando escrever seu livro há tempos e já inventou todas as desculpas possíveis, ter esse estímulo de ser parte de um movimento mundial, ter uma meta pra cumprir e, às vezes, até amigos participando, pode ser o empurrão que você precisava pra correr atrás do sonho de ser escritor “de verdade”.
Como funciona: durante outubro inteiro você se empolga, bola a premissa, faz um esquema, planeja, e durante novembro inteiro você se mata de escrever. Sem revisar, sem se preocupar, apenas joga palavras no papel. No fim do mês, se nada der errado, você vai ter um bom e parrudo rascunho, que pode ser revisado e virar um romance completo, ou pelo menos um bom começo, um estímulo a produzir.
Até o fim de outubro eu postarei semanalmente aqui sobre os meus preparativos pessoais pro NaNoWriMo, e vou dar dicas de técnicas e ferramentas que for descobrindo. Se de repente vocês se empolgaram também, postem nos comentários e deixem um contato, quem sabe a gente não se organiza em um grupo.
Bora?

sábado, 29 de setembro de 2012

work in progress - o lobisomem


Embaixo das carnes rosadas, expostas no lugar de honra, ficavam as partes estranhas e desprezadas do animal. Uma massa vermelha de fígados brilhantes; as tripas brancas retorcidas como um ninho de serpentes; cabeças inteiras, de olhos fechados e vazios, rodeadas de ervas aromáticas, como se a decoração verde e viçosa pudesse de alguma maneira melhorar o aspecto da carcaça. Num canto da vitrine, uma mórbida massa de órgãos diversos era vendida a preço baixo com o nome de fressura, em todos os tons entre o branco, o rosa e o vermelho.
No meio da carnificina, uma pilha de órgãos rosados e brilhantes chamava a sua atenção. Amontoados ordenadamente, com suas enormes artérias e o branco dos músculos lisos, os corações. Vendidos por quilo.
Cada um daqueles pedaços de músculo brilhante que era a raiz da vida de um animal, cada um deles estava ali, reunido, como em um ritual asteca de purificação. Aqueles pedaços de músculo morto, sem pulso, que poderiam ser - que eram como se fossem - o dele, o pequeno músculo do tamanho de um punho fechado que lhe sustentava a vida.
Levou a mão ao peito. Como um napoleão, esgueirou a mão por entre dois botões da camisa, abrindo um deles com a pressão involuntária. Sentia bater. Rápido, irregular, mas batia.
Cravou as unhas na carne e arrancou de lá seu pequeno órgão de músculo pulsante. Veio quente, sem dor. A massa de artérias e veias ainda emaranhada, não podia puxar muito. Olhava para ele na concha da mão, contraindo, expandindo, contraindo, expandindo, olhava a vitrine dos corações brilhantes. Um deles, bem no topo, um belo coração rosado e sem defeitos, parecia ter se mexido; o coração quente na mão ainda pulsava. Não era impressão, aquele coração morto ali no topo da pilha de sacrifícios tinha sim se mexido - estava batendo, muito suavemente, mas estava batendo. Seu coração ali na concha da mão parecia esfriar, ou era sua mão que se acostumava à temperatura?
O coração da vitrine ganhava confiança. Um novo viço de sangue fresco havia surgido, como se corasse. As batidas agora eram claras, perceptíveis.
Se sentiu tonto. O coração na sua mão estava esfriando, não havia dúvida. E batia mais fraco, a força das contrações não se sentiam mais, eram quase como o pulso fraquinho dos dois dedos sobre uma veia na pele. Enquanto isso, o coração da vitrine brilhava, mais forte, batia com ruído audível, mesmo atrás da parede de vidro, se levantava, se emaranhava de veias, se ligava a todos os órgãos e músculos expostos ali, formando uma enorme quimera, uma hidra de vários corações e cabeças e pernas de vários animais, com as minúsculas asas sem penas de aves que jamais voaram. O coração frio em suas mãos secava como uma fruta podre. Sentiu a vista enevoar. Sentiu uma mão no seu braço.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Irmãos


“Mas são tão diferentes”, a avó nos dizia. “Como são diferentes. O maiorzinho até chora quando eu digo que alguma coisa que ele fez está errada, o pequeno discute, bate boca, insiste que está certo e... Mocinho, volta aqui!”
O pequeno havia acabado de pular da lateral da escada, por baixo do corrimão, a coisa de um metro do chão. Pousou se agachando ao lado de nós, e sumiu pela porta da sala, antes que pudesse ouvir a bronca. O maiorzinho desceu até o fim, sem pular, mas correndo também, e não escapou da avó, que o agarrou pelo braço.
– Quantas vezes a gente já disse que não é pra descer a escada correndo?
– Mas o...
– Não importa o que ele fez, nós falamos com os dois. Além disso você tem a obrigação de vigiar seu irmão. Você é o mais velho, tem que dar o exemplo.
Dois anos, só, pouco mais, era a diferença entre os meninos. A mãe teve que dar um jeito de trabalhar em casa, porque era bem complicado cuidar de dois tão pequenos, sem ajuda, sem tias morando perto, as duas avós trabalhando fora. E agora, que eles estavam mais ou menos grandinhos, veio a menina.
Ela fazia doces, pão de mel, bolos por encomenda, chocolates. Festas de aniversário dos filhos de amigos e parentes eram sua vitrine, e para a primeira festa da menina ela havia caprichado. Docinhos lindos em forma de bichinhos, um bolo floresta negra imenso, pirulitos de chocolate de lembrancinha. Chocolate era uma coisa interessante porque ele derrete bem na temperatura do nosso corpo, então quando você o prova, direto do banho maria, não sente nada - nem molhado, nem quentinho, nada. Um segundo só depois é que você sente a umidade na boca, como um beijinho frio.
A mãe regulava os doces e chocolates em casa, tinha medo de criar filhos gordinhos, que sofreriam na escola – criança é cruel, não perdoa. Mas sempre os deixava provar, uma gotinha só de chocolate derretido nos lábios de cada um, que eles lambiam, querendo mais.
– Quando eu crescer vou ser dono de uma loja de doce, dizia o menorzinho.
– Eu vou ser dono de uma fábrica inteira de chocolate, contestava o maior.
– Ah, é? Eu vou ser dono da cidade, então.
– E eu vou ser o dono do Brasil!
– Eu sou o dono do mundo!
– Eu sou o dono do universo inteiro!, dizia o maior, triunfante. E o menorzinho o empurrava. Começavam a brigar, brigar feio, de se bater, chutar e socar. A mãe vinha separá-los.
– Pro castigo, agora!
– Mas ele que começou!
– Não quero saber quem começou, pro castigo os dois!
O castigo do pequeno era no quarto das crianças, o do maior, no do casal. O maiorzinho não conseguia deixar de pensar que o pequeno tinha o videogame e todos os brinquedos à disposição, enquanto ele tinha, no máximo, uma TV que não pegava direito.
O quintal fervilhava de crianças, e era um quintal grande. A casa era da avó, avó-sogra, mãe do pai – viúva, filhos criados, gostava de ter pelo menos um deles, mais nora e netos, por perto. E era só até que a casinha deles ficasse pronta, em construção no mesmo terreno. Construíam devagarzinho, conforme o dinheiro dava; já tinham o térreo e o esqueleto do andar de cima, sem laje no topo ainda, sem portas, nem piso, sem janelas, nem reboco, mas com muito potencial. Cozinha grande, sala grande, quatro quartos, uma varandinha na suíte do casal. Já não tinham pressa, como no começo, e só mudariam com tudo direitinho, finalizado.
E nós sabíamos o quanto era divertido brincar numa casa em construção. Perigoso, também; o pai já havia proibido. Mas eles sempre davam um jeito de entrar escondido e ficar quietinhos por lá, como nós também fazíamos em nosso tempo.
A menina engatinhava no chão da sala, emporcalhando o vestidinho branco no chão já sujo de refrigerante e brigadeiro. Empilhava os blocos que havia ganhado de aniversário, e ria quando o pequeno os derrubava com um pontapé; o maiorzinho recolhia as peças com ela e empilhavam de novo, e o pequeno derrubava tudo novamente. A menina ria de tudo.
– Você – a mãe dizia ao menor – vai lavar suas mãos que a gente já vai cantar parabéns. Você – dizia ao maior – pode recolher os blocos e guardar no quarto de vocês? Aqui bem no meio da sala alguém pode pisar, se machucar.
Luzes apagadas. A menina, no colo da mãe, ainda não entendia o que estava acontecendo. As pessoas começaram a cantar parabéns, batendo palmas; ela ameaçou uma careta de choro, assustada, mas imediatamente percebeu que aquelas palmas eram para ela. Palminhas eram uma coisa boa. Sorria, batia palmas junto, dava gritinhos de alegria.
– Assopra a velinha agora, vai, assopra!
A mãe a inclinava no colo, para perto do bolo. Ela não entendia o que tinha que fazer, talvez nem soubesse soprar. Os dois meninos chegaram mais perto e assopraram, um de cada lado, com força. Não paravam de soprar, mesmo com a vela apagada, não dando chances de que ela se reacendesse.
– Agora chega, deixa a mamãe cortar o bolo.
O pequeno pegou o primeiro pedaço sem pedir e saiu correndo para o quintal. O maiorzinho ajudava a mãe e a avó a servir. A mãe separou para ele um pedaço bem grande, com cereja. “Esse é seu. Vai comer lá fora com as crianças, tudo bem?”
Sentou-se na mureta do canteiro de ervas da avó, e comeu devagar. Chocolate, cerejas, chantili. Gostava. Deixou a cereja, enorme, bonita e vermelha, de lado no pratinho, para comer por último, apreciando. Era bom, seu bolo preferido. Pensava que seria legal aprender a cozinhar e fazer seus próprios bolos, e comê-los todos sozinho, sem ter que dividir.
Foi quando o irmão surgiu do nada, pegou sua cereja do prato, enfiou na boca e saiu correndo. Rindo.
Cortar o bolo era o sinal do fim da festa. Os adultos iam se despedindo, montavam marmitinhas de bolo, de docinhos, a mãe insistia, ia sobrar tanto. As crianças, no entanto, energizadas com todo aquele açúcar, ainda brincavam. E inventaram de brincar justo de esconde-esconde, justo a uma hora daquelas. Pais procuravam, doces numa mão e bexigas na outra, encontravam seus filhos perdidos em cima de árvores, embaixo de camas, dentro dos armários do quarto da avó. A mãe, de repente, deu falta dos meninos.
Foi quando todos ouvimos um grito, um choro – choro de dor, não de manha. Os que estavam mais perto da construção talvez tenham ouvido o ruído surdo do pequeno corpo rolando pelas escadas, escadas sem corrimão, cheias de pontas duras. Chegamos correndo, o pai na frente, a mãe logo atrás, um pano nas mãos. O menino tinha sangue nos cabelos, sangue nas roupinhas, sangue sobre os olhinhos fechados.
Sangue era uma coisa interessante, porque ele tem bem a mesma temperatura do nosso corpo, então quando ele cai na gente não sentimos nada, nem molhado, nem quentinho, nada. Um segundo só depois é que você sente a umidade, o frio encharcando as roupas da gente, a vida escorrendo.
Os pais pegaram o primeiro carro que se ofereceu e correram para o pronto-socorro, a mãe tentando estancar a ferida na cabeça do menino com um pano de prato. Nenhum de nós viu o maiorzinho descendo aquelas mesmas escadas sem corrimão, as roupas salpicadas de vermelho, um grande tijolo manchado nas mãos.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Fogo na favela


Esse conto é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com a realidade é nossa culpa.

Já estava quente. Mesmo no escuro já estava quente, e os guinchos do trem sobre os trilhos cortavam o silêncio, acordando a cidade. A luz incerta da madrugada cedia aos poucos, bem devagar, seu ar azul e denso aos primeiros raios vermelhos do horizonte leste, um vermelho quente, cruel. Enquanto o dia rompia, um outro vermelho quente, e muito mais cruel crepitava, mais próximo, ao lado.
A luz vacilante e intensa começa a entrar pelas frestas da janela fechada, junto com o inconfundível odor de fumaça, de cinza e de destruição. Uma mulher magra e morena abre os olhos, reconhecendo de imediato o inimigo familiar.
– Fogo!
Acorda o companheiro, as crianças. O homem faz menção de vestir uma roupa, dorme só de calção; não há tempo. O fogo contamina o alto da parede de madeira, passa para o armário e já dominou a cortina improvisada com um lençol. O ar é irrespirável lá dentro, mas ela se lembra de pegar a lata de leite ninho do bebê, com o menino no colo.
Portas se abrem pelo beco estreito, pessoas acordam, gritam, correm. Vera tropeça sem querer no próprio filho pequeno, machucando a criança; levanta e pega ele no colo, mesmo sabendo que não pode carregar peso por conta de um problema na coluna. Neide estufa uma bolsa de mão com roupas, as primeiras da gaveta, documentos, o material escolar da menina que esfrega os olhos e tosse, uma tosse árida e má.
À distância, Lúcia e Rico veem a coluna de fumaça negra, sólida, subindo lenta e voluptuosa pelo céu sem nuvens.
– Incêndio? Onde será que foi, Rico?
– Algum galpão, deve ser.
– Não foi por aquele lado que pegou fogo naquela favela da outra vez?
– De novo, será?
Os rolos de fumaça densa sobem pelo viaduto, formando um túnel de escuridão. Não o tinham interditado, ainda. Havia quem arriscasse passar. Rogério, atrasado para o trabalho, acelera temerariamente, e mesmo com os vidros fechados, seu estofamento e roupas fedem a fumaça. Marta chegou a subir um pouquinho e amarelou; voltou de ré, enfrentando o buzinaço. Valdir parou antes da entrada do viaduto, desligou o ônibus, se levantou e anunciou aos passageiros:
– Quem quiser que passe a pé. Não posso arriscar o meu carro.
Gritos, protestos, resmungos, Valdir não ligava. Enquanto o cobrador telefonava para a viação, abriu as duas portas e desceu pela da frente, sentou-se na calçada e acendeu um cigarro, conformado. Olhava as volutas de fumaça subindo, diáfanas e alegres, tão diferentes da fumaça suja e impenetrável do viaduto ali adiante.
Alguns homens tentavam, a pé, cruzar a fumaça. Corriam como loucos, desapareciam na escuridão. Gisele olhava em desespero para o horizonte sombrio, chorando, quase.
– Meu Deus, eu não posso faltar, eu não posso ser mandada embora, e agora, meu Deus.
– Se você for, eu vou junto.
Era uma senhora de meia idade, baixinha, de óculos, saia. Sorriram uma para a outra.
– Vamos.
Caminharam os primeiros passos da subida, acelerando conforme o calor, a fumaça aumentavam. Estavam correndo já. Os olhos, a garganta ardiam, o rosto coberto por um dos braços. Gisele sentia a visão se enegrecer, um entorpecimento dos membros, vertigens de cair. Ângela – era esse o nome da senhora – encontrou e segurou sua mão. Chegaram à outra ponta da ponte de mãos dadas, e se abraçaram, cabelo e roupas impregnadas de fumaça e suor. Gisele chorou um pouquinho porque os olhos ardiam demais.
O caminhão dos bombeiros não conseguia chegar até lá dentro da comunidade. Passavam mangueiras pressurizadas por entre, por cima das casas. Moradores, em grupos, ajudavam os profissionais, jogando água na base do fogo, como instruídos, resfriando as paredes das casas próximas, para evitar que o fogo se espalhasse. A fumaça branca do vapor da água sobe, devagar, tímida ainda.
Há moradores tentando salvar seus pertences poucos, com a ajuda de vizinhos. Tiram os botijões primeiro, para evitar explosões. Trazem tevês e móveis, roupas e fogões, para o campo de futebol que há no centro da comunidade. Uns vigiam, outros procuram ajudar, outros observam a desgraça, impotentes.
José chega devagar, trazendo não mais que uma sacola de pano na mão esquerda. Tem os olhos marcados e a pele curtida, e usa uma camisa de botão passada a ferro, que já fora branca. No meio do campo, senta numa cadeira branca de espaldar alto, com detalhes dourados, muito bonita, que não é sua. Senta-se, e a fumaça escura que espalha, as chamas que cobrem as casas, refletem nos seus olhos negros vazios.
O congestionamento já se formou, mas só agora o viaduto é interditado. Alguns motoristas, de longe, percebem de onde vem o problema, outros escutam no rádio, e tomam caminhos alternativos. Outros são pegos de surpresa, mas justo aqui, justo o viaduto, justo na hora do rush, justo comigo. Quem estava a pé telefonava para o trabalho se explicando, caminhava para a outra ponte distante, procurava ônibus que fossem por vias paralelas, um táxi, talvez. “Mas táxi não voa, dona”, seu Luís dizia para a passageira inconformada, “Táxi não voa, é esperar que ande um pouco, eu entro por ali, pego a paralela e vamos pelo outro viaduto. Mas meu táxi não voa, madame.”
Quem não ajuda não atrapalha, eles dizem, e os moradores que não estavam envolvidos no esforço do combate e resgate eram conduzidos para fora da comunidade. “Mas meus filhos, moço, eu preciso achar meus filhos”, as crianças estão todas lá fora, senhora, os que a gente for achando vamos mandando para lá. “Mas meu marido, cadê meu marido”, depois, senhora, depois, ou ele está ajudando a gente ou já está lá fora. “Mas meu avô, minha neta, meu sobrinho, a minha gata, meu Deus.” Lá fora, senhora, lá fora, ajuda a gente por favor, lá fora.
Um homem andava com cuidado sobre um telhado frágil, se esgueirando atrás de uma gatinha preta, apavorada. Ela recua devagar, os pelos das costas arrepiados, os olhos furiosos, os dentes à mostra. A gata dá um passo atrás e falseia; o homem a agarra de um golpe, ela se prende pelas unhas às telhas, arranha, não quer morrer. Ele consegue passar o animal para outro homem, que aguarda lá embaixo, com um cobertor grosso para se proteger.
Seu José ainda está no campo, olhando sem ver a luta das chamas com a água, da fumaça branca do vapor contra a fumaça negra do incêndio, a luta dos homens e mulheres por suas casas, por suas vidas. Uma repórter de TV e seu câmera, que não deviam estar ali, o encontram e fazem perguntas que ele não entende. Um homem grande, de uns 40 anos, toca suavemente no ombro dos dois, falando baixo e firme:
– Deixem o coitado em paz, é a segunda vez que ele perde tudo no incêndio.
As chamas cedem, devagar. A fumaça branca, vitoriosa, engole a fumaça preta, sobe em voltas resolutas, triunfadoras, deixando lá embaixo o cenário de uma guerra que ninguém venceu. Onde havia casas, agora era cinza e escombros, carvão e plásticos retorcidos, pedaços de telha e algumas bonecas meio derretidas, sem pernas, sem braços, de olhos azuis e mortos.
Mães encontram seus filhos, mulheres encontram maridos, avós abraçam netos, donos acham seus bichos. Seu José, sentado ainda na cadeira branca que não é sua, não tem ninguém.
Alguns tem pouso com gente da família. Partem, pois moram longe os parentes, e pedem aos vizinhos que olhem por suas coisinhas, seus pertences. Os que ainda têm suas casas na comunidade e tiverem um sofá, um pedaço de piso em que um colchão caiba, os cederão a quem pedir. Daiana oferece sua cama à amiga Letícia, e dormem as duas, uma na cabeceira, outra aos pés, cobertas por um lençol cor de rosa das princesas, que a mãe ganhara da patroa. Os outros e os seus colchões, suas bolsas de roupa servindo de travesseiro, irão para a rua, dormir ao relento.
Não choverá. A noite será quente novamente, e o guincho metálico dos trilhos do trem os acordará na madrugada azul, bem antes que o sol vermelho e cruel aponte no horizonte a leste.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Memória - sete de setembro


 Uma das memórias mais caras da minha primeira infância foi um desfile de sete de setembro a que meu pai me levou. Eu e ele.
Não consigo recordar o ano. Era na avenida Tiradentes. Acho que fomos de metrô, mas poderia ter sido ônibus também. Cheio, muito cheio. Mais que hoje em dia. Bambas arquibancadas montadas em tubos e tábuas, as mesmas do carnaval. Eram “especiais”, talvez para o governador, prefeito, talvez para parentes dos militares, talvez para quem tivesse chegado antes. Nós, comuns, ficávamos na rua, agitando bandeirinhas de papel impressas de um lado só, presas em palitos de madeira pintados de verde.
Papai me botou sobre seus ombros, de cavalinho – não por muito tempo, eu já era grandinha e ele não aguentava. Do chão e do alto, lembro de ter visto as motos, motos brancas, capacetes brancos. Tanques. Os jipes me impressionaram – quis e tive pequenos jipes de brinquedo depois daquele dia. Balizas balançando bastões? Não sei se estou misturando as memórias, baliza é coisa de desfile de colégio. Mas lembro dos guarda-bandeiras, da esquadrilha da fumaça, no alto, deixando rastros brancos no ar. Meu pai pediu especial atenção para os veteranos; pracinhas da FEB? De 32? Não me recordo. A minha recordação mais viva daquele dia, na verdade, foi o sorvete de Itu.
Era um picolé de duas ou três cores, dois ou três sabores. Enorme, de cantos quadrados. Lembro que o meu derretia e escorria pelos dedos. Papai talvez tenha me limpado com um lenço, naquele tempo as pessoas levavam lenços no bolsos, ainda.
Passamos pelo Jardim da Luz, na volta. Foi antes de o reformarem, antes que o civilizassem. As fontes e chafarizes estavam secos, ou quase; nos que havia água, ela era parada, densa, verde, cheirava mal. Mosquitos voavam em torno de nós, incomodavam, picavam.
Havia um lago ou fonte repleto de moedas no fundo. Eu quis jogar uma e fazer um pedido; meu pai deve ter falado que era bobagem. Ou não tínhamos moedas, era naquele tempo em que mal havia moedas em circulação, pois não compravam nada. Me inclino para ver. Há uma fortuna sem valor ali no fundo, uma profusão de moedas passadas e correntes.
Uma mulher chama, com um psiu. Se apoiava numa árvore, as botas brancas, um casaco curto em rosa choque, short. Cabelos descoloridos e maquiagem demais. Papai mandou não olhar. E explicou, ela, essas moças todas esperando por nada ali, eram prostitutas. E resmungou algo sobre não terem respeito nem por um pai com sua filha a tiracolo.
Meus pais não me escondiam quase nada da vida, e, na medida em que era possível para a minha idade, eu entendia o que era aquilo. Imaginava outra coisa, diferente, algo misterioso e bonito, noturno, não aquelas moças feias, maquiadas demais em plena luz do dia.
Eu tentava não olhar, mas via pelo canto dos olhos aquelas mulheres cansadas, pobres, gordas ou magras demais. Negociavam com e eram bolinadas por homens cansados, pobres, magros demais. Era estranho e fascinador.
Mas fascinador também era o tamanho, a imponência da Estação da Luz. “Veio inteirinha da Inglaterra, cada rebite”. Fiquei pensando num navio capaz de transportar aquilo tudo, e esqueci das mulheres cansadas e feias e pobres, e magras demais.
Perdi minha bandeirinha e só dei falta dela ao chegar em casa.

domingo, 26 de agosto de 2012

Tradução: Morri por Beleza - Emily Dickinson

Morri por Beleza, e nem tinha
Me ajeitado ao caixão
Quando um morto por Verdade pousou
Na vizinha mansão

Perguntou educado por que tombei
“Por Beleza”, respondi
“E eu por Verdade; são iguais.
Irmãos somos”. Assenti.

E então, parentes reencontrados
Pelas paredes conversamos
Até o mato nos chegar aos lábios
E cobrir os nossos nomes
____________________
Tradução minha. O original:

I died for beauty, but was scarce
Adjusted in the tomb,
When one who died for truth was lain
In an adjoining room.

He questioned softly why I failed?
"For beauty," I replied.
"And I for truth, -the two are one;
We brethren are," he said.

And so, as kinsmen met a night,
We talked between the rooms,
Until the moss had reached our lips,
And covered up our names.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Bolinhas de gude americanas


Cheiro de venda. Cheiro de doce e de álcool, de cana barata e de açúcar, da pinga deitada para o santo, numa libação pagã. O avô me pegava pela mão, depois do almoço, dizendo que me levaria para escolher um doce. A avó olhava, com aquele olhar bravo, meio desconsolado, mas ia proibir? Sabia que o que ele queria era beber.
Adiantava alguma coisa proibir? Quase todas as mulheres do bairro se perguntavam, adiantava alguma coisa proibir? Proibiam – eles faziam escondido. Então deixavam. E meu avô, como tantos avôs e pais daquela rua, pegava a menina pela mão e ia até a venda, depois de cada almoço. E a minha avó, como as outras avós, as outras mães, se trancava no quartinho dos fundos em oração, uma vela votiva que se consumia.
A venda. Não era mais do que um balcão, um cubículo erguido em tábuas à beira do quintal de alguém, um buraco retangular abrindo para a rua. A janela basculante, presa por duas dobradiças em cima, se abria e servia como toldo, apoiada por um sarrafo de madeira crua. Fechada, era uma parede cinza de tábuas pintadas, de uma cor que um dia fora verde, verde clarinho, de cal tingida. O balcão, outra tábua, onde os clientes bebiam ao lado de dois vidros enormes cheios de bolinhas de gude. O avô me pegava no colo para que eu visse de perto e me deixava escolher.
Mas a primeira coisa que eu sentia era o cheiro da venda. Aquele cheiro forte do álcool seco, cachaça ordinária, cerveja rançosa, conhaque. As garrafas forrando a parede nas prateleiras mais altas. Duas ou três marcas de pinga, os rótulos alinhadinhos, olhando para você. Conhaques, licores, batidas, um uísque nacional que não valia nada, estava ali para inglês ver. Vidros imensos de conservas, cebolinhas, tremoços, picles coloridos feitos de vários legumes afogados em vinagre. Abaixo, as prateleiras de doces. Corações alaranjados de abóbora, roxos de batata-doce, nas caixas cobertas de tule transparente, inclinadas para que a gente pudesse ver. Docinhos de amendoim, os grandes vidros de paçoca rolha, o gibi em barrinhas marrons nas caixas cobertas também. Palitinhos de doce escuro de banana cobertos de açúcar cristal; aquele docinho em copinhos comestíveis com textura de isopor. As geléias de amarelo brilhante e cor de maravilha, grudentas e azedinhas, aquelas nuvenzinhas de mocotó em rosa e branco, sem graça, mas tão lindas.
O lindo vidro das balas, giratório, de dois andares, de várias divisões. As várias marcas de caramelos de frutas, aglomeradas em seus tons pastéis, que grudavam nos dentes de trás quando a gente mastigava. As balas duras de cores brilhantes, lindas como contas de vidro, embrulhadas em seus papéis transparentes. Chicletes de figurinhas, de tatuagens – minha avó não queria que eu mascasse chiclete, tão feio mulher mascando chiclete, vovô me dava escondido. E os dois enormes vidros das bolinhas de gude. Um era o das bolinhas comuns, verdes como o musgo dos muros úmidos nas encostas em que não bate o sol. O outro, o que eu queria, era o vidro das bolinhas americanas.
Eu não jogava bolinha de gude. Isso era coisa de menino. Mas pedia sempre uma daquelas bolinhas americanas, tão lindas, de vidro transparente e ondas coloridas, que eu me perguntava como colocavam lá dentro. Ondas amarelas e cor de laranja eram as mais comuns; vermelhas, mais raras. Às vezes você achava uma onda azul, brilhante no meio do amarelo; uma vez, uma única vez, ganhei uma de onda roxa e laranja. Eram grandes e bonitas e transparentes e maravilhosas, e eu poderia passar minhas horas olhando para apenas uma, a sua superfície lisa, suas microbolhas lá dentro, as suas ondas coloridas, seu universo fechado em si. Eu tinha muito tempo naquele tempo.
A hora do almoço era a minha avó de cara amarrada, o meu avô cabisbaixo, o feijão aguado, o arroz insosso, a carne dura. A televisão ligada no jornal que passava às tardes: alguma desgraça, uma greve, um acidente no centro da cidade. Eu quase não comia. A avó me subornava, me ameaçava; eu não comia. Não comia porque sabia que depois do almoço meu avô me pegaria pela mão, até a venda. Eu escolheria um doce, talvez uma bolinha de gude se ele tivesse dinheiro, uma dúzia de balas ou algum chiclete. Vovô apoiava o braço no balcão e bebericava o seu quinhão da vida, devagar, olhando o mundo. Eu me sentava na beira da calçada, comendo meus doces, colando as tatuagens de chiclete no braço com cuspe, admirando o universo dentro das minhas bolinhas de gude americanas.
Não ia para a escola ainda, mas já sabia ler. Meu tio vinha uma vez por semana e me trazia um bocado de gibis, que eu lia trancada no quarto. Preenchia os passatempos. Acabavam logo. Desenhos animados, só tinha de manhã. Às vezes eu dobrava o espelho triplo da penteadeira que havia sido da bisavó, deixando os dois espelhos laterais paralelos, e ficava ali, vendo um espelho se refletir no outro, se refletir no outro, se refletir no outro. Não havia muitas crianças da minha idade na rua, e eu não queria brincar com elas. Eu não queria sair da minha bolha, da minha bolinha de gude americana, transparente e colorida dos doces que havia na venda.
Não saíamos. Médico, de vez em quando. Teve aquela vez em que a avó me levou ao dentista tratar dos meus dentinhos de leite cariados, a desgraça que os doces da venda estavam me causando. Centro da cidade. Paramos numa igreja: vovó queria acender uma vela. “Pro seu avô parar de beber”.
Um quartinho na lateral da igreja guardava as velas dos esperançosos. Prateleiras cobriam as paredes, repletas de votivas brancas pingando, grandes e pequenas, altas e baixas, como uma fileira de dentes podres. Quente, abafado, sem janelas; as paredes se cobriam de fuligem negra.
“Tá vendo essa camada preta? É assim que seus dentes ficam quando você come muito doce.”
Me arrancaram dois molares. Nunca parei de comer doces.
Uma única vez eu pedi e o meu avô me deixou provar um pouco do copo dele. Deixou sabendo o que aconteceria, e riu da minha cara feia quando eu engoli. Um golezinho só, que me fez arder. Era cachaça, álcool puro, e me desceu pela garganta fervendo, queimando, furioso. O fogo que me descia na garganta era o mesmo fogo das velas do quartinho, o mesmo fogo que consumia o corpo do meu avô, o fogo que consumia o coração da minha avó.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Álbum

Coletava meticulosamente as imagens da mãe enquanto era tempo.
Puxava do fundo das gavetas. As vezes em que ela a levava ao médico, pequena – as longas horas em um, dois, três ônibus, o metrô. O metrô, aquela estranha esfinge, os ícones gravados nas paredes com uma criança irremediavelmente perdida no vão entre o trem e a plataforma. Nunca chegou a perder o medo do metrô. Sonhava com ele, com descidas temerárias à via, com a arqueologia dos túneis estranhos, escuros, abafados, uterinos.
A voz. Aos doze anos, treinava a voz para que se parecesse com a da mãe, aveludada como um licor de creme. A cadência suave, cantada. Grave. Era grave desde que ela se lembrava. A idade e o cigarro lhe trouxeram um toque harmonioso de rouquidão.
A cara concentrada e meio frustrada de quando errava o ponto no crochê, desmanchava e o refazia. Os dedos lépidos, sobrancelhas franzidas. Aquela era nova, ou ela nunca havia prestado atenção. Fotografava com os olhos, recortava, colava cuidadosamente no álbum da memória. Suspirou. Um suspiro longo, pesado, do fundo do diafragma.
- Que foi?
- Estou pensando se ainda tem algo para comer na cozinha.
“Vocês precisam ser fortes por mim”, a mãe havia dito. “Por que eu preciso ser forte. Não quero ver ninguém de cabeça baixa. Ou eu fico de cabeça baixa também”.
Talvez estivesse sofrendo por antecipação. Talvez não fosse nada. Não – nada não era, não se perde os cabelos por nada – mas podia ser aquilo só, e ela se recuperaria e voltaria ao seu sempre normal. Independente disso, o sempre – sabia agora – não era mais para sempre. Ela se remoía por dentro, tentando aceitar a súbita certeza da finitude.
Fotografava avidamente a mãe ao telefone, cruzando as pernas, bebendo água. Subindo as escadas para ir dormir – uma última imagem para aquele dia. Subiu ao seu quarto também, e se deitou. A luz acesa, os olhos vidrados no teto.
O branco irremediável do teto. O branco impoluto, rígido e inevitável. A escuridão das origens ainda podia ser macia, quente, acolhedora, mas a inevitável eternidade por vir era branca e dura, imensa e fria como uma planície polar. A matéria negra do universo talvez contenha tudo oculto em si, mas se na luz absoluta não se vê nada, nada haverá.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Taturana


 Não era nada, era o quê? Dois, três pelinhos a mais ali no meio? Mas parece que a mãe dela não deixava tirar, e o pessoal não perdoava. Às vezes era Jeca Tatu, de outras era Lobisomem, mas quase sempre era só Taturana mesmo. Lobisomem a gente achava cruel, os meninos não tinham noção. Taturana era até carinhoso, pensávamos. Acho que até as serventes da faxina a chamavam de Taturana.
Mas sobrancelhas grossas eram a moda da época, e eu até invejava um pouco, sabe? A minha era cheia de falhas, minha mãe não deixava pintar, e pra Taturana bastava tirar aqueles pelinhos. A gente já raspava a axila, também as pernas, a Taturana ainda não. A gente usava sutiã, mesmo que não precisasse, a Taturana ainda não. A gente combinava as mentiras quando o pai não deixava ir na danceteria, a Taturana nunca.
Quando a gente saía, a Taturana não usava minissaia nem vestidinho de viscose, e não era nem por não se depilar: é que qualquer saia lhe dava uma terrível sensação de escancaramento. As duas pernas cobertas pelas pernas da calça eram uma segurança frente à liberdade de uma saia soltinha, por mais comprida que fosse. Ela usava o cabelo sempre preso num rabo de cavalo alto, a camiseta do uniforme solta, pra fora da calça, e uma mochila azul que a gente sabia que era a mochila velha do seu irmão mais velho, já no colegial. Costumava ser a última a ser escolhida na educação física, antes da menina vesga e do garoto fanho entrarem na escola. Não era gorda nem magra, inteligente nem burra, e na verdade a única coisa por que ela se fazia notar era mesmo a taturana.
Outra que tinha as sobrancelhas grossas, fortes, lindas, era a professora Soraya, de português Tinha o cabelo preto bem preto de libanesa, armado, enorme, caindo em cachos nas costas, e um sorriso eterno de vendedora no rosto. Usava um batom vermelho trazido dos anos 80 e uma colônia da Avon que faziam parte da sua figura, a gente jamais a imaginaria sem. Tinha seus trinta e tantos anos e uns peitos, uma bunda enorme, um pouco de barriga também, mas pros meninos que nunca tinham visto um decote na vida aquilo era pura fartura. Entrava na sala e a preenchia inteira, cada átomo do ar entre nós era dela, sua risada ressoava pelos corredores. Era uma dessas baixinhas que parecia ter dois metros de altura, só pela presença. Todas nós eramos completamente apaixonadas por ela. Todas nós.
A Taturana passava os intervalos do recreio lendo, sozinha, na biblioteca. Acho. Pelo menos eu a via lá de vez em quando, e nunca no pátio, nem na cantina, muito menos escondida com a gente no parquinho abandonado, aonde íamos para fumar. Nesse dia encontramos o parque trancado, e as meninas se dispersaram. Eu, na fissura, fui para o banheiro, fumar em pé sobre a privada, assoprando a fumaça na janela alta do reservado do canto. O barulho de gente entrando me assustou, primeiro um claque claque de saltos, depois um rumor silencioso de tênis. A voz da professora Soraya reboava pelos azulejos, e eu quase engoli o cigarro no medo de ser descoberta.
- Não tem nada de mais, Tatiana. Depois você tira, sua mãe não vai brigar. Faz a boca em O, assim.
Não vi. Mas podia imaginar a cena que passava atrás da minha porta de madeira. A professora Soraya pintando um coração na boca da Taturana, um coração vermelho, demodê, pulsando sobre a pele branca. A estranha no espelho, o nervoso, o coração na boca. O cabelo.
- Sabe que eu nunca tinha reparado que seu cabelo era tão clarinho? Quase loiro. Você devia dar um corte, deixar solto assim.
Eu não podia sair dali, o medo de descobrirem que eu fumava. Uma mosca entrou pela janela, deu duas voltas em torno da minha cabeça, voou por baixo da porta. Daria minha alma para ser aquela mosquinha.
- Você pode tirar, se quiser. Tem uns minutos de intervalo ainda. Eu tenho que pegar o material na sala dos professores, mas se eu fosse você, deixava.
O claque claque dos saltos foi embora. Saí.
A Taturana estava tão absorta com a própria imagem que jamais teria me notado. Era outra ali. A camisa do uniforme pra dentro da calça de helanca, mostrando a cintura fina e os quadris em formação. O cabelo, ondulado e brilhante, quase loiro mesmo, caindo sobre os ombros. O coração na boca. E a ponte entre uma sobrancelha e outra, os três pelinhos no meio da testa, não estavam mais lá. Talvez fosse impressão minha. Mas não vi. Na hora tive certeza.
Não disse nada, estava preocupada demais com o meu cheiro de cigarro e com o sino que soaria a qualquer momento. Estava na sala, já escondida no fundo, quando o sinal tocou. O claque claque dos saltos e um sorriso branco emoldurado em vermelho entraram na sala. Era aula de português.
Momentos depois, já no silêncio da sala em ordem, surgia na porta a Taturana, irreal. A professora de costas, passando matéria na lousa, alguns de nós copiando, concentrados. Foi o Batatinha, o alemãozinho gordo que sentava na frente, quem deu o alarme:
- A lá, a Taturana passou batom!
Sessenta e quatro olhos se ergueram dos cadernos e se voltaram para a porta. Encontraram a figura magra e meio curvada, peitinhos perdidos na camiseta larga, cabelos fartos abaixo dos ombros, brilhantes e quase louros, e um coração na boca. Mas foi por dois segundos.
(Por muito tempo não conseguimos chegar a um acordo quanto à sobrancelha dela, se havia tirado. Eu e metade da sala achávamos que sim, os outros tinham a certeza que não.)
Do que aconteceu depois, a gente não sabe muito bem. Sabemos que ela correu para o banheiro e que a professora Soraya saiu correndo atrás, o claque claque dos saltos ecoando pelo corredor. Não terminamos aquela aula de português. Dizem que chamaram os pais da Taturana para virem buscá-la no colégio, e por muitos dias disseram que ela estava doente, de atestado, em casa. Por fim descobrimos que havia mudado de escola, e sempre que tentávamos ligar pra ela, a empregada dizia que estava no inglês, na natação, ou que simplesmente havia saído.
Já achei ter visto o rosto dela, com e sem taturana, umas tantas vezes nesses anos. A moça que tocava violão e cantava no barzinho, com uma voz rouca que podia ser a de qualquer pessoa. A recepcionista mal-educada no laboratório de análises clínicas. Uma caixa de supermercado, cujo crachá não dizia Tatiana. Só fui encontrá-la anos depois, visitando o velho bairro, no dia de natal. Usava camisa fechada até o pescoço, sapatos baixos, e estranhei que estivesse de saia. Os óculos eram para hipermetropia pesada, se podia ver pelas lentes, e ela engordou um pouco. Os cabelos, cheios de branco sem tingir, eram presos atrás com um coque, e a taturana ainda estava lá. Se ela me reconheceu, fingiu não me perceber muito bem.
Parece – me contaram – que ela virou pastora de uma igrejinha pentecostal aqui da rua mesmo. Casou com um cara de um metro e meio e metade do seu peso, crente também, mas que tomava umazinha escondido. Moravam nos fundos da igreja, um salão alugado que já foi uma padaria, e nunca tiveram filhos.  

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Lenore

Essa é minha primeira tradução de poesia. Decidi fazer como exercício, e também por encontrar muito poucas traduções de Lenore, um dos meus poemas preferidos do Poe. O cara é um dos grandes estilistas da língua inglesa, e se eu não conseguir passar o clima do poema para o português, o que é muito difícil mesmo, espero pelo menos ter absorvido um pouco do seu estilo para uso próprio. Não sejam cruéis; como eu disse, é minha primeira vez.


Lenore - versão 1.0
Edgar Allan Poe - tradução de Danieli Moreira

Quebra-se a taça dourada, vai-se a alma que se aflige
Que soem o sino! -uma alma santa adeja o rio Estige
Por que não choras, Guy De Vere? solta agora o teu plangor!
Vê! o derradeiro leito que é do teu amor, Lenore
Vem! Ore-se a última prece, cante-se a canção final
Um hino à jovem e bela morta de porte real
Ela, duas vezes morta, finda jovem, virginal

“Vis! Amavam suas posses sem perdoar-lhe a altanaria
E quando caiu de cama, bendisseram que morreria
Como rezarão as preces? Com que boca cantarão?
Com suas viperinas línguas, com seu mau-olhado então
Que mataram a inocente, que tão jovem foi-se em vão”

Peccavimus; deliras! Deixe o réquiem tocar
A purificar os mortos, subindo a Deus pelo ar
Seu amor, Lenore, que antes subiu, ao lado da esperança
Deixando o desespero por tua noiva, ainda criança
Por ela, a bela, a estrela que sob o chão já se vai
A vida em seus louros cachos mas não em seus olhos mais
A vida ali, ainda em seus cachos, em seus olhos jamais

Meu coração é leve, não me lamentarei mais
Ali o anjo paira, canta graças por seus ais
Que o êxtase dessa alma não ouça sino terreno
Que não se prenda ao mundo, condenado e tão pequeno
Do inferno ao céu a alma canta a nós o seu adeus
Do sofrimento a um monumento ao lado bem de Deus"


Original


Ah, broken is the golden bowl! the spirit flown forever!
Let the bell toll! -a saintly soul floats on the Stygian river - 
And, Guy De Vere, hast thou no tear? -weep now or never more!
See! on yon drear and rigid bier low lies thy love, Lenore!
Come! let the burial rite be read -the funeral song be sung! - 
An anthem for the queenliest dead that ever died so young - 
A dirge for her, the doubly dead in that she died so young.


"Wretches! ye loved her for her wealth and hated her for her pride,
And when she fell in feeble health, ye blessed her -that she died!
How shall the ritual, then, be read? -the requiem how be sung
By you -by yours, the evil eye, -by yours, the slanderous tongue
That did to death the innocence that died, and died so young?"


Peccavimus; but rave not thus! and let a Sabbath song
Go up to God so solemnly the dead may feel no wrong!
The sweet Lenore hath "gone before," with Hope, that flew beside,
Leaving thee wild for the dear child that should have been thy bride - 
For her, the fair and debonnaire, that now so lowly lies,
The life upon her yellow hair but not within her eyes - 
The life still there, upon her hair -the death upon her eyes.


Avaunt! tonight my heart is light. No dirge will I upraise,
But waft the angel on her flight with a paean of old days!
Let no bell toll! -lest her sweet soul, amid its hallowed mirth,
Should catch the note, as it doth float up from the damned Earth.
To friends above, from fiends below, the indignant ghost is riven - 
From Hell unto a high estate far up within the Heaven - 
From grief and groan to a golden throne beside the King of Heaven."

domingo, 8 de janeiro de 2012

A gaiola dourada


A gordura na panela borbulhava dourada, rumorejante, como uma nascente em dia de sol. A cebola, de um claro verde de limo, de pedrinhas de fundo, ia ficando transparente, enquanto o alho, descascado e espremido na hora, se tornava opaco. Duas medidas de arroz branco, exatas, mexidas e reviradas com a colher de pau, até que o branco se torne mais branco se torne mais branco; quatro medidas de água, sal, e a panela tampada, até secar. Era assim que o arroz ficava soltinho, soltinho como ele gostava.
É que eles tiveram que dispensar a empregada depois que ela foi demitida. Ele não se importava de segurar as contas, mas é claro que teriam que cortar despesas, e ela ia ficar em casa mesmo... Com ela, o arroz ficava mais soltinho, as camisas mais bem passadas, a casa muito mais limpa. Empregada não tem cuidado, ele dizia, faz tudo de qualquer jeito; a gente cuida muito melhor do que é da gente mesmo.
Graças a Deus o menino tinha passado numa universidade pública, e o cursinho da menina era só pro ano que vem. E a casa – um sobradinho de três quartos, quintal, num bairro distante mas muito tranquilo – estava quitada. Claro que continuava a procurar emprego, mas o marido se recusava a aceitar que ela ganhasse menos do que no trabalho anterior: “Pra você ganhar essa miséria é melhor ficar em casa”. Mas as empresas agora só queriam jovenzinhos recém-formados ganhando salário de fome, e ela já tinha, afinal, quarenta anos.
Ela ainda tinha quarenta anos. Ela só tinha quarenta anos.
Quarenta anos e dois filhos quase adultos, um menino que deixava a toalha molhada na cama e uma menina que estragava todos os seus sapatos bons, além de um marido incapaz de fritar um ovo. Quarenta anos e sua única viagem para o exterior havia sido um pacote quatro-dias-três-noites para Buenos Aires, que o marido havia comprado porque todos no escritório estavam indo para lá. Quarenta anos e sua maior ousadia havia sido uma vez descer de tirolesa no hotel fazenda, num feriado de Corpus Christi, apavorada, para nunca mais.
Os grãos escuros do feijão caíam da concha e se espalhavam pelo fundo do prato. O branco do arroz era servido por cima, contrastando no escuro do caldo grosso, cheiroso de toicinho e alho. Esse era o prato dele. O menino exigia o feijão por cima do arroz, e a menina queria os dois lado a lado, separados, para não misturar. As crianças pegavam seu prato, brigavam pelo bife maior e se sentavam no sofá, para ver a tevê. Ele sentava à cabeceira da mesa, de onde podia ver o jornal, pela porta da cozinha. Do lugar dela, só dava para ouvir. Algo sobre desabrigados, vítimas, perícia, bombeiros. “O que é que houve, amor?”
“Um incêndio. Aquela favela lá que a gente vê no caminho da sua mãe, sabe?”
“Deus do céu.”
“Morreu uma moça grávida, parece.”
Ela se contorceu para ver. Na tela, uma senhora que não devia ter quarenta anos, mas parecia ter mais, chorava a morte da filha, de dezesseis. Cortava para um homem de trinta que parecia ter quarenta, de voz embargada e uma criança pela mão. “Era nossa vida, ali. A gente trabalha tanto pra ver tudo sumindo do dia para a noite. Geladeira, fogão, tudo. A televisão, acabamos de comprar”.
O filho e a filha assistiam indiferentes; já tinham terminado de jantar. O garoto fazia Administração; a menina queria Psicologia. Os dois iam bem na escola, eram responsáveis, não saíam muito. Encaminhados na vida. O marido estava bem na empresa, era de confiança lá dentro e tinha bons contatos e propostas caso acontecesse alguma coisa. O bairro era tranquilo, sem enchentes no verão, nem roubos a casas, nem pedintes nas ruas. Era bom assim.
Melhor que a sua irmã, que tinha quase a sua idade e estava sendo enrolada pelo noivo havia tantos anos. Melhor que uma de suas amigas, que praticamente sustentava o companheiro, que nunca conseguia emprego fixo. Melhor que a prima, que morava naquele bairro horrível e volta e meia apanhava do marido bêbado, mas não o largava, jurando amar. Tinham dois filhos, também, e “é horrível uma criança crescer sem pai”, não é mesmo? Melhor assim.
Ele tirava com cuidado sua camisa branca e a pendurava num cabide, para não amassar. Não estava suja ainda e sua mulher poderia ser poupada do trabalho de lavar. Pendurou as calças, dobradas no vinco, nas costas de uma cadeira, e enrolou as meias dentro do sapato, porque tinha ideia de que era muito ridícula a imagem de um homem nu usando meias. A mulher já estava de camisola; tinha quarenta anos, mas era linda.
Ele apertava demais os seios dela, sempre. Ele não sabia nunca o que fazer com a língua, e ele sempre entrava sem pedir, sem perguntar. Penetrava num ângulo que a incomodava, apoiava o peso do corpo sobre o corpo dela, tinha pelos nos ombros, nas costas. Quando começava a ficar quase agradável e ela gemia um pouquinho, ele já aumentava o ritmo, achando que ela estava para gozar. No fim, se enlaçava com ela, quente, sufocante, suado.
“Preciso tomar banho.”
“Fica só mais um pouquinho aqui, juntinho.”
Ela, então, esperava até que ele dormisse, e muito delicadamente afastava o seu braço, peludo e pesado. Tomava um banho demorado, lavando o suor do outro, o alho das mãos, o cansaço do dia, o cheiro da obrigação.
Naquele dia escolheu o vestido preto, um pouco apertado, que ele sempre achou curto demais. Escolheu o batom vermelho, que só usava em casamentos e nas raras festas. Escolheu deixar os cabelos soltos, em vez de presos com uma piranha de plástico, como sempre usava em casa. Deu uma última olhada no sono do homem que amava, na sua respiração regular, ritmada; podia ouvir, ou pensava que ouvia, o som de seu coração dali, ao lado da cama, em frente ao espelho de corpo inteiro do guarda-roupa aberto. Pegou a bolsa que todos achavam que era a da academia, e saiu. Descalça.
O carro dela ficava estacionado na calçada, porque o sobrado tinha uma vaga só. Era melhor; as crianças não escutariam o barulho do portão, e a partida poderia ser a de qualquer carro na rua. Ao chegar, tirou um par de botas daquela bolsa e as calçou; eram saltos altos, altíssimos, finos, finíssimos, que a filha nunca soube que ela tinha, ou já teria pegado, sem pedir, e estragado. Detestava ter que se anunciar para o porteiro da noite, mas era preciso; era a obrigação do funcionário. Melhor que não se lembrasse da sua cara, mesmo. Subiu o elevador. Ele a recebeu na porta.
“Você demorou...”
“Isso é problema meu.”
“Perdão.”
“Perdão o caralho. Me traz logo alguma coisa para beber.”
Ela escolheu a melhor poltrona da sala, sem pedir. Ele veio da cozinha, correndo, trêmulo, um copo na mão direita.
“O que é isso?”
“Água?”, ele disse, inseguro do próprio conteúdo do copo. Ela se levantou de uma vez; o cenho franzido, os olhos muito abertos, furiosos. Ele era mais alto, mesmo com os saltos dela, mas parecia menor, muito menor.
“Água!? É assim que eu sou recebida? Com água? Isso é coisa que se sirva, seu infeliz?!” Ergueu o braço direito e baixou de uma vez, marcando a cara dele com cinco dedos vermelhos; com o golpe, ele derrubou o copo no chão, espatifando. “E agora isso! Não tem o menor cuidado, seu inútil. Vai limpar. Espera. Tira a roupa antes, infeliz.”
Um homem de meia idade, pelos grisalhos, um pouco de barriga, o pau triste e flácido, pendurado ali, como se não pertencesse. Uma figurinha patética, de cabeça baixa, como uma criança com medo.
“Os sapatos também.”
“Mas os cacos...”
“Fodam-se os cacos. São culpa sua, os cacos. Quero mais é que você pise num deles, que te vare o pé, que perfure uma artéria, infeliz. Quero ver você se esvaindo em sangue no chão da sua própria sala, desgraçado. Sabe o que eu vou fazer? Vou deixar você aqui, sangrando feito um porco, cortar o fio do telefone, levar o seu celular. Trancar o seu quarto, jogar pela janela as suas roupas. Você vai ter que bater na casa de um vizinho se não quiser morrer. Vai ter que pedir ajuda a qualquer um, com esse pau mole que não serve para nada à mostra. E eu estarei na minha casa, rindo de você, desgraçado. Agora vai. Limpa.”
Limpou. Ajoelhado no chão, descalço, de cabeça baixa, enxugou a água com um pano e recolheu os cacos maiores. Varreu, com cuidado. Ela assistia, sentada da melhor poltrona, indiferente.
“Agora me serve alguma coisa. Alguma coisa decente. E faz direito, como eu te ensinei da outra vez.”
Trouxe uma taça borbulhante da cozinha e se ajoelhou na frente dela, curvando a cabeça até o chão. Ergueu então as duas mãos e ofereceu a bebida, como uma dádiva preciosa a uma deusa. Ela a tomou de suas mãos com um golpe e provou. Não disse nada. Era uma aprovação.
Com ele ainda na mesma posição – ela não havia dado ordem para que se movesse – apoiou um dos saltos-agulha sobre sua nuca, pinçando um nervo. De pernas cruzadas, as coxas grossas à mostra, bebericava o champagne, devagar, olhando para o nada, pensando. Lembrava que não havia tirado nada do congelador para o dia seguinte, e teria então que passar no açougue e comprar uns bifes para o jantar, talvez bistecas, talvez umas asas de frango.