sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Bálsamo


Imagine a vida sem desconforto. A vida sem sol demais, sem calor, sem suor grudando na pele, sem pelos colados no corpo. Sem frio, sem blusas de lã que incomodam, sem o ar congelante que irrita o nariz. Sem secura demais, sem umidade sufocante, um ar condicionado perfeitamente regulado à volta de si o tempo todo.
Imagine a vida sem cansaço. Sem costas doloridas ao fim do dia, sem as pontadas no peito que você sentiu ao correr atrás do ônibus. Imagine a vida sem correr atrás do ônibus. A vida sem ônibus, sem jamais ter que pegar ônibus, sem ter que suar o suor alheio, a promiscuidade imunda dos ônibus.
Imagine a vida sem dor - sem tropeçar na calçada, bater o dedinho, perder a unha. A vida sem nunca esfolar os joelhos quando criança, sem cair de cara e perder dois dentinhos de leite. Imagine a vida sem jamais ter quebrado o braço, sem ter o gesso (quente, coçando) assinado pelos colegas de classe. A vida sem uma nota baixa, sem reprovação no vestibular, sem esperar inutilmente pela resposta de uma entrevista de emprego. Viver sem ter que bater ponto.
Imagine a vida sem resfriados. A vida da varíola erradicada, do sarampo quase extinto, uma vida sem viroses enigmáticas, sem conjuntivites purulentas. A vida sem diagnósticos de câncer, sem doenças sem cura, sem agonias prolongadas ou súbitas demais. Imagine a vida sem jamais perder quem se ama antes do tempo.
Imagine a vida sem decepção, sem frustração, sem desilusão, sem dor. Imagine a vida sem amor.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Os olhos (uma história de natal)


 Barata. As mãozinhas de plástico cheias de rebarbas, que na certa vão machucar a pele fina das mãozinhas que brincarão com ela. Os olhos vítreos, azuis, não se mexiam, e nem mesmo um fio de cabelo de náilon loiro ela podia ter. Mas era uma boneca numa caixa, e foi isso, afinal, o que a menininha pediu.
A menininha em questão era a neta da senhora que vinha toda sexta buscar o lixo seco para reciclar. Tinha uns quatro anos e olhos grandes, marrons e redondos. O cabelo armadinho preso num pompom atrás, e chumaços dele vazando pela frente, à guisa de franja. Bochechas redondas e dentes branquinhos, pequenos, de leite. Roupas de malha rosa, meio puídas, mas muito limpas, estampadas com algum desses personagens que as meninas gostam, a Barbie, a Mônica, as princesas da Disney. Vinha de mãos com a avó, uma velha magra de dentes ruins. Ela perguntou, por perguntar, o que a menininha queria ganhar de natal. “Uma boneca numa caixa”, foi a resposta.
Deu um sorriso e passou a mão nos seus cabelos fofos. A senhora dos recicláveis sorriu amarelo de volta. Até semana que vem, ela se despediu, Deus lhe abençoe, a velha respondeu. Uma boneca numa caixa. A fantasia, talvez, de ganhar um presente numa caixa bonita com laço de fita, como se vê na tevê, em vez de pacotes disformes de papel estampado.
No dia seguinte, passeando no shopping depois do cinema, a vista da vitrine de uma loja de brinquedos a levou de volta mais de vinte anos, ao grande quintal de terra da casa de uma amiga, ali no seu velho bairro, quando ainda havia quintais de terra naquele bairro. Porque quintais civilizados, aplainados e cimentados, eram uma prova de riqueza de gente que tinha tão pouco a ostentar. O quintal da colega era inteiro de terra, mas um caminho de cascalho mantinha a gente sem lama até chegar à casinha de tijolos no fundo. Caiada. Três cômodos cobertos com brasilit, goteiras aparadas por latas e panelas. Num dia de chuva assim não se tinha muito o que fazer além de brincar de qualquer coisa lá dentro.
Ela adorava o sofá daquela casa, um carmim hollywoodiano, ainda que desbotado. Em dias de chuva assim ela gostava mesmo de jogar ludo no tabuleiro de papel cartão, mas a amiga queria brincar de casinha, então brincariam de casinha. Afastaram o sofá da parede delimitando o pequeno cômodo inexistente com um muro carmim, e os dois muros caiados, da sala real, e a porta, que era só um vazio. Caixas de sapatos eram os móveis, fogão. Ela era o papai, a amiguinha a mamãe. Os filhos, um urso encardido e descosturado, as tripas de enchimento mal presas por uma cicatriz de pontos visíveis em linha grossa; uma solitária boneca, talvez mais velha que as duas meninas, que havia sido de alguém; isso era denunciado por seu cabelo loiro emaranhado e o vestidinho costurado à mão, mas muito limpo, de tecido rosa.

A mãe trabalhava. A menininha era cuidada pela avó porque não conseguiram vaga na creche municipal. Moravam, as três e um avô, numa casa sem reboco num terreninho de fundos cedido de favor. O velho tinha a profissão de engraxate, mas ao que parece saía de casa apenas para beber, sob o pretexto de ir trabalhar. O dinheiro não chegava para brinquedos e roupas novas; tudo o que a menininha tinha era usado, comprado nos bazares da igreja ou recebido de conhecidos, esmola disfarçada de presente.
Às vezes, nos recicláveis, talvez surgisse uma caixa cor de rosa amassada, da boneca nova de alguém. A avó separaria o plástico que servia de vitrine e desmontava o resto para a pilha de papelão. Nunca uma caixa rosa, fechada e nova, brilhante, com uma boneca presa nos arames lá dentro, como as que luziam na vitrine da loja iluminada. Prateleiras e prateleiras cobertas de cor-de-rosa, pequenas vitrines exibindo manequins em forma de bebês ou miniaturas de mulheres adultas, de olhos grandes e vítreos, cabelos de náilon loiros, luzidios. Bochechas redondas e lábios meio abertos, meio sorrindo, braços plásticos terminando em mãos gorduchas, roupinhas em tons pastéis. Um cartaz amarelo anunciava uma bonequinha muito simples, muito limpa, sem sapatos nem mamadeira, um vestidinho que não era mais que dois pedaços de pano franzido. Barata. Olhos luzidios de azul olhavam para ela sem piscar, sem pedir nada. Olhavam, só. Pegou, passou no caixa, sem nem pensar. Barata. Uma boneca numa caixa.
Colocou o brinquedo em sua caixa rosa aos pés da árvore de natal, seus olhos azuis brilhando com as luzinhas de enfeite. Pelo menos um presente, novinho, só dela, a menininha teria. Teve muito orgulho de sua atitude, afinal o mundo seria um lugar melhor de se viver se todos fizessem sua parte, os que têm partilhando com os que não têm, etc. etc.
Os olhos azuis da boneca refletiam o brilho multicor da árvore e do presépio. Uma miríade de cores luminosas dançava no fundo da lapinha de fibra ótica, iluminando o menininho Jesus em sua manjedoura. Pobrezinho, nasceu em Belém. E pobrezinho assim ainda ganhou presentes, mesmo que com um pouco de atraso, presentes de ouro, incenso e mirra. O que era uma bonequinha barata comparada o ouro, incenso e mirra? Mas pensando bem, o que é que uma menininha de quatro anos vai fazer com ouro, incenso e mirra? E continuou tomando seu café da manhã de domingo.
Segunda, cansada como as segundas. A boneca a recebeu com seu meio sorriso, os olhos lânguidos espelhando a luz multicor do presépio. Cara de sonsa, ela pensou, sem se dar conta. Fez um chá para si e voltou para a sala, e a boneca ainda lá, olhando. Sentou-se em outro lugar, outro ângulo, de onde não poderia ser vista.
No dia seguinte, tentando jantar, teve a sensação de estar num restaurante de grandes janelas, repleto de meninos de rua do lado de fora. A comida, lasanha congelada, nem era muito de se cobiçar, mas ainda assim se sentia observada. O garfo parava no meio do caminho; a comida fazia força para descer. Mas estava ruim mesmo, insossa. Uma refeição de dez reais, assim, sem sabor; se ela tivesse feito arroz com ovo estaria melhor, e muito mais barato. Certeza.
O que a menininha estaria comendo agora?
Talvez ela pudesse – devesse – dar alguma coisinha a mais para a família da menina. Talvez um franguinho, para eles assarem, um panetone. Talvez até uma bonequinha melhor. Uma caixinha. Não, a caixinha é melhor não. Se o avô achar o dinheirinho delas vai beber tudo.
Na quarta era dia de rodízio, e ela voltava de ônibus. Uma chuva dessas mitológicas, de dezembro, travava o trânsito ainda mais do que o normal. Estava esperando terminar as prestações do carro novo para comprar um de reserva, que fosse um fusquinha velho, até para não pagar IPVA. Lembrou do primeiro carro do pai: um fusca verde bandeira, já muito velho quando ela ainda era nova, mas o pai o guiava com o orgulho de um rolls royce. Seu próprio primeiro carro tinha sido um chevetinho prata, ancião, mas ela batalhou muito e foi trocando, até enfim conseguir comprar um zero. Alguns anos de prestações, mas valia a pena. IPVA e seguro, mas valia a pena. A mensalidade abusiva do estacionamento perto do escritório, um roubo, mas um roubo que valia a pena. O que não valia a pena era ficar aqui, presa nesse ar viciado, repleto de gente suada, barulhenta.
Sentou a seu lado uma mãe, um bebê de colo, outra criança. Ajeitou a mais velha de pé, entre o encosto da frente e suas próprias pernas, para que ela não caísse nem fosse esmagada pela massa do corredor. O ônibus sacolejava, a turba balançava junto para lá, para cá, como um pasto de capim alto ao vento. A menina balançava, quase caía, se apoiava nela; o bebê não parava de chorar. “Quietinha”, dizia a mãe, “quietinha, senão a moça vai achar ruim”. Ela balançava a cabeça num sorriso condescendente: “Tudo bem”. Não estava tudo bem, mas tudo bem. Tudo bem.
Em casa a boneca a recebeu com seus olhos de sempre, o mesmo meio sorriso de escárnio. “Você queria que eu fizesse o quê?” Se assustou ao ouvir a própria voz, e alta.
Falando sozinha. Estava ficando maluca. É o cansaço, pensou, trabalho demais, mas logo teria uns dias de recesso para descansar. Praia. Sol. Fazer nada, pensar em nada. Paz.
Dormiu pouco e mal naquela noite. Gritou com o estagiário e destratou a mocinha da faxina, no dia seguinte. Pediu desculpas aos dois, mas o escritório inteiro já havia espalhado que ela estava “naqueles dias”.
Na volta, passou no mercado. Não um supermercado. Um hipermercado, desses enormes, imensos, na marginal. Lembrava dos grandes magazines da sua infância, onde era fácil demais se perder nos corredores de balas e brinquedos e encontrar a mãe desesperada procurando entre as araras de roupas infantis. A luz fria inexorável contrastava com o lusco-fusco lá fora; lá dentro, fileiras e fileiras coloridas de embalagens plásticas padronizadas seguiam em sequência, como as fileiras de uma legião romana. Uma seção de roupas, de eletrônicos, de jardinagem, até de brinquedos.
Caixas e mais caixas de papelão brilhante, cor de rosa, estampado; dentro, centenas, milhares talvez, de cabeleiras louras e dedos gorduchos de plástico, meios sorrisos entreabertos e vestidinhos em tons pastéis. E olhos, uma infinitude de olhos azuis, fazendo o que olhos fazem: olhando.
Uma criança pequena, desgarrada da mãe, levava uma grande caixa rosa no colo. Uma boneca loura, meiga, a boca entreaberta em meio sorriso, os enormes olhos redondos. Azuis. Vinha em sua direção.
Virou o carrinho, quase correndo, no rumo dos congelados. Um frango, não, um chester. Um peru, colossal, daqueles que alimentam cinco famílias; a ave devia pesar mais que o menino jesus aos dois anos. Mamíferos também: um pernil gordo, gigantesco, um tender, o maior que encontrou. Frutas secas, cristalizadas, carameladas de açúcar brilhante; cerejas vermelhas como uma bola de vidro espelhado. Panetones de todos os tipos, todos os recheios possíveis, alguns improváveis; farofa e salpicão da rotisseria. No caixa, a conta, um polpudo valor de três dígitos, pago à vista.
“Os natalinos a gente parcela em três vezes.”
“Não, não, mocinha. À vista.”

Fileiras e fileiras de caixas cor de rosa, empilhadas. Uma escada para o céu de prateleiras, repletas de caixas brilhantes. A de baixo avançava alguns centímetros; a imediatamente superior descia e tomava o seu lugar. Então avançava também, tomando o lugar da primeira, que já estava à frente, seguindo e formando as filas de um exército, uma organizada centúria de bonecas louras e meigas. Liderando a tropa, aquela: a bonequinha barata, sem cabelos louros, a boca entreaberta num esgar de escárnio, os olhos fixos, azuis, mortais. As mãozinhas de plástico barato, cheias de rebarbas, machucaram bem mais que o necessário quando a boneca arrancou os olhos dela.

As luzes coloridas no pinheirinho plástico dançavam sua dança costumeira. Longe, na rua, uma motocicleta ruge. Sente um frio molhado em suas costas. Acorda. Vê.
As compras em sacolas brancas farfalhantes jazem, silenciosamente, no chão. As carnes lentamente descongelam, encharcando o tapete onde ela está deitada. A caixa cor de rosa da boneca jaz, caída ao lado da árvore; ela não vê os seus olhos. Duas da manhã. Vai dormir.
A velha vem buscar o lixo, como sempre, a menininha grudada em sua mão. O cabelo fofo, os olhos redondos, bonitos, marrons.
"A gente não vem semana que vem, nem na outra."
"Ah, vocês vão viajar?"
A avó cora sob a pele ocre. "Não", começa a dizer sem jeito, "é que o ferro velho não abre... Só em janeiro, agora".
"Ah..."
Saem sem saber de nenhum presente. Nem uma caixinha, nada. O saco preto reluzente, no entanto, segue cheio e pesado no carrinho como poucas vezes. Em casa, no quintal, a separar, a primeira coisa que a avó vê é a grande caixa cor de rosa. Mas não está vazia.
Dentro, as mãozinhas gorduchas de plástico barato têm rebarbas feias, que machucam. Um vestidinho rosa, bem limpo, e a cabeça emborrachada sem cabelos. A boca, rosada, estava entreaberta num meio sorriso doce. E no lugar em que estariam os olhos, tudo o que havia eram dois grãos de treva.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Meninos


 A carne é rígida e frágil. Uma esponja, uma esponja repleta, sólida de sangue; corpo cavernoso, eles chamam, estranho nome subterrâneo para o corpo orgulhoso que aponta para o céu. A pele é lisa, tesa, envolta de veias azuis ou verdes, saltadas ou não, como as trepadeiras que cingem a única árvore que se ergue soberba no centro de um jardim.
Mas frágil; minutos de movimento e ele se dissolve num buquê de flores brancas, que se espalham, se desfazem; o corpo se retrai e se esconde sob seu véu humilde e amarrotado. Torna-se um potencial, apenas, um pedacinho de pele pendurada. Vacilante. Pequeno. Que pode falhar numa próxima vez, e às vezes falha.
O medo eterno de falhar acompanha vocês para sempre, ainda que nunca se tenha falhado, ainda que nunca se falhe. A defesa de vocês contra esse medo é essa eterna superafirmação de seu poder, que todos os meninos, em todas as culturas, têm. Vocês compram carros potentes, relógios enormes, contam histórias da carochinha tendo a si próprios como protagonistas. Constroem imensas pirâmides, obeliscos, arranha-céus, castelos no ar.
Meninos. A gente tem que amar os seus disfarces.
Nenhum de vocês se ilude quanto ao próprio poder – pelo contrário, muitos acham que podem menos do que realmente são capazes. Alguns ainda acreditam que conseguem nos enganar; outros já perderam essa ilusão há muito tempo, mas muitos ainda tentam, por que é seu instinto. Algumas de nós talvez ainda caiam na conversa – as mais novas, ingênuas, as bobas. Talvez por isso alguns de vocês prefiram as jovenzinhas.
Mas mesmo nós que não nos enganamos mais, nós amamos o seu teatrinho, meninos. Amamos cada coisa que vocês fazem pela gente.
Claro, há exceções. Os que não são capazes sequer dos castelos no ar se afirmarão pela violência: a força dos braços, o tom da voz que levanta, numa tentativa de fazer parecer que tudo em vocês é maior. Nós não somos fortes como vocês. Algumas de nós conseguirão fugir, outras se submeterão, e então vocês vencem. E vocês terão para si uma mulher incompleta, que só permanece a seu lado pelo medo – o medo de ficar sozinha, de ser incapaz, o puro e simples medo físico. E essa é a única submissão imperdoável.
Aceitamos muita coisa por vocês. Toleramos muita coisa. Perdoamos até mesmo uma língua que não nos representa, em que apenas um átomo de presença masculina muda nosso gênero. Relevamos palavras que quase nos humilham; engolimos nosso próprio orgulho em benefício do seu. Por que para nós é bobagem. Para vocês é importante.
Na má literatura, o homem possui, a mulher se entrega. Na vulgaridade, ele come, ela dá; na vida, dançam. Conduzem, cada um a seu tempo, mãos que levam, pernas que embalam, línguas trançando-se tolas, olhos que fecham, que abrem, penumbra, a umbra, o jogo. Ninguém ganha. Ninguém deve ganhar. Ninguém perde, tampouco. A luz - o estrondo, o clarão - um holofote entre nuvens, pairando longos segundos, ou o raio, colosso, tonitruante e breve - a luz há de vir. Há de vir para os dois. Vem uma vez ou mais, em separado ou juntos, ápice de cada dança, mas há de vir. Ao menos é assim que deve ser.

O nascimento de Vênus


Imposto sobre o beijo. Já tem.
Você pode pagar numa conta com franquia mensal, com a quantidade de beijos que acha que vai dar no mês (o excedente sai bem mais caro, evidente), ou comprar fichas de beijo pré-pagas nas lotéricas. O controle dos beijos do cidadão, eles dizem, é em prol da família brasileira, uma benesse, eles dizem, não um encargo. A esposa zelosa compara seu extrato de beijos com o do marido; o marido infiel compra fichas pré-pagas para suas escapadas. No fim do ano fiscal, na hora da prestação de contas, o esperto marido manda a de ambos para um discreto contador, de total confiança.
Aos pobres, mesmo os dez centavos de uma fichinha da lotérica fazem falta. Alguns casais acabam cortando o beijo do orçamento doméstico, nem tem mesmo tempo para isso, é tanta coisa, criança, dois empregos, conta pra pagar. Outros, que ainda não se apagaram, fazem as fichas durarem com beijos longos, profundos, de novela, de cinema.
Eles já faziam isso com o imposto do sexo, que veio antes. Como é bem difícil, às vezes, saber quando começa e quando terminou, o governo cobra por orgasmo, de cada indivíduo em separado. Em parte é uma medida de controle de natalidade também. Daí que os pobres se tornaram praticamente especialistas em tantra – nos salões de beleza as mulheres trocam dicas, aberta e escandalosamente, nos bares, os homens conspiram na surdina, e se ensinam maneiras de segurar ao máximo, de fazer durar, de gozar depois de uma, duas, três horas de prazer ininterrupto.
Mães e pais ciosos recebem chocados a correspondência de cobrança das atividades dos filhos. “A gente precisa ter uma conversa séria”, todos dizem, às vezes em tom de bronca, às vezes de condescendência. Às vezes, a conversa séria é só sobre dinheiro mesmo; castigos e mesadas cortadas até que a enorme conta seja paga. Alguns recorrem, como se recorre à multas. Poucos ganham. Sempre há provas.
Um jovem casal, na praia. Eles são belos e tem em si a paixão furiosa, o desejo sem comportas de uma tempestade. Os corpos grudam de sal, de areia. Eles entram no mar de mãos dadas e vão se afastando, para longe dos pais, da sociedade, das câmeras, dos controles. Vão sem medo.
O mar já está na altura de seus quadris, que mãos sôfregas agarram. Puxam seus corpos de encontro um ao outro; mãos se entrelaçam nas costas, onde as ondas batem, amalgamando troncos; as bocas engolem uma à outra. O sal do suor já é o mesmo sal do mar; as pernas dela enlaçam as dele; sexos se soltam, se tocam.
“Vem”, ela diz. A água já cobre suas cabeças, os cabelos flutuando como águas-vivas em meio à espuma do mar, ao caldo primordial, à própria origem da vida.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Um catador


 Um catador. Franzino e triste, sentado numa marquise, espera a chuva passar. As pernas, magriças, se cruzam na altura da canela; uma das mãos repousa sobre o colo, a outra cai, de lado, como a de um paciente terminal num hospital orwelliano. A carrocinha de tração humana descansava, canga para cima; seu cão, quase um pastor, dormitava embaixo, na calçada, na paz de quem se deita num leito de seda e jasmim.
A cara do homem, da mesma cor que a do cão, tinha a barba crescida, grisalha, três dias. Na expressão repleta de linhas - leitos de ribeirões já secos - a melancolia de um palhaço infeliz, a boca curvada para baixo, a fronte em ponta para cima. A figura era coroada por um insólito chapéu, tipo panamá, cor de camelo, em surpreendente bom estado comparado às suas roupas, cinzentas e rotas.
Cinzento e roto era o céu, passada a treva da chuva, cinzento e roto o asfalto. Cinzenta e rota a marquise do edifício onde o catador, com seu empoeirado traje e sua barba gris, se mescla e se mimetiza às cinzas da cidade.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Batman, Wolverine e a Bela Adormecida


Esses apartamentinhos novos, a gente mal tinha espaço para se mexer, especialmente no quarto das crianças. Ela penteava o cabelo do mais velho, de cinco anos, enquanto o de três pulava de uma cama à outra, perseguindo bandidos malvados por sobre os prédios de Gotham City.
- Eu sou o Batman!
- E eu sou o Wolverine! - O garoto posa, fugindo do pente e cruzando os punhos; a gente quase pode ver as lâminas e a máscara de amarelo e azul. - E você, mãe, você vai ser quem?
- Eu sou a mãe de vocês, caramba. Fica quietinho pra eu poder te pentear.
- Mas você tem que ser alguém!
- Tá legal, tá legal, eu sou a Bela Adormecida, mas sossega.
O telefone toca na sala; a mãe corre para atender, mas a voz na linha demora a chegar. É uma mensagem pré-gravada, de telemarketing, pedindo que Anderson dos Reis entre em contato urgentemente. Obviamente ela não conhecia nenhum Anderson dos Reis, mas antes que pudesse digitar a opção apropriada, ouve barulhos no quarto. Um baque macio, um pacotinho de uns quinze quilos caindo no chão, um choro de criança. Ela corre e encontra Batman caído, enquanto o Wolverine pula em círculos pelo exíguo espaço erguendo as mãos e gritando “Eu venci! Eu venci!”.
O cachorro assiste à cena, protegido sob uma das camas, observando, desconfiado. Era um labrador de apartamento, conformado, cor de chocolate, chamado Humbert Humbert. Na intimidade, para os da casa, era só cachorro.
A mãe suspira. Por meio segundo pensa em como teria sido a sua vida se continuasse solteira, viagens, unhas feitas, sucesso profissional. Mas logo assume o papel que se espera dela, abraça o pequeno, dá bronca no maior, enxota o cachorro. O dia nem começou.

- Eu sou a Bela Adormecida, e você?
- Fica quietinha pra eu poder te pentear, pode ser?
- Mas você vai ser quem? Eu quero ser a Bela Adormecida, quem você quer ser?
- Sou a rainha Cleópatra, tá bom? Fica quietinha agora senão vou acabar te machucando.
A mãe da mãe sempre puxava a escova com força demais e fazia o seu coque tão apertado e rente que dava até dor de cabeça. Mas o cabelo nunca soltava no meio do balé, sem precisar de grampos, de gel, nem de nada. Voltava da escola, almoçava, assistia um pouco de TV e se arrumava para ir. Sua mãe ia buscá-la de ônibus, segurava sua mão, ajudava a passar por baixo da catraca - quando ia com o pai ele a pegava no colo e a fazia pular por cima. Terminava a lição de casa na mesa da cozinha, enquanto a mãe preparava o jantar, e seu cabelo ficava sempre cheirando a bife. Ela já tomava banho sozinha e lavava a cabeça todos os dias, esfregando o couro cabeludo, emplastando com Neutrox, e enxaguando bem. Desembaraçava com um pente largo. Gostava de ver seu cabelo molhado no espelho por que ficava bem liso, como o das princesas.
O balé teve que parar quando a mãe faleceu, muito jovem, de um câncer de mama; foi logo depois que eles compraram o videocassete. O pai cortava um dobrado para tomar conta sozinho da menina única, com a ajuda que fosse possível das tias, da avó.
- Se o rei do Egito é Faraó como é que chamava a rainha, pai?
- Não sei, filha.
- Era Faraá? Tinha que ser Faraá.
- Eu acho que era só rainha mesmo.
Fazia mais ou menos um ano da morte da mãe. O pai havia alugado o VHS duplo de Cleópatra, a linda Elizabeth Taylor de olhos violeta na capa, olhando para ninguém. A exótica corte oriental, os brilhos dourados, as cores primárias do techinocolor; escravos carregando a liteira da bela dama nos ombros, pompas, plumas, reis romanos a seus pés - a garotinha assistia ao filme de olhos vidrados, impressionada, o pai dormindo a seu lado. Trocou sozinha a segunda fita, mas não rebobinou; tiveram que pagar multa na locadora depois. Ela achava a Elizabeth Taylor a cara da sua mãe, que tinha olhos pretos. O pai balançava a cabeça, concordando, sem prestar muita atenção.

E era muita sorte ter casado com alguém que ganhava tão bem. Ela não precisaria trabalhar enquanto o filho fosse tão pequeno, e teria o privilégio de acompanhar seu desenvolvimento, presenciar suas primeiras palavras, trocar suas fraldas. Quando percebeu, já estava grávida de novo, e ficou muito feliz porque tinha a certeza que era uma menina. O marido nem percebeu a sua decepção com o resultado do ultrassom; achou até bom, porque não teriam que mudar para um apartamento de três quartos tão cedo. E de repente a ideia de passar pelo menos mais dois anos trancada em casa começava a parecer insuportável.
Mas não valia a pena arranjar um emprego, valia? Eles eram pequenos demais para a escolinha – e aquele monte de criança junta, e as professoras que não dão atenção, e os piolhos. Avó, tias, nem pensar – os parentes do pai moravam em outro estado, os dela eram poucos e velhinhos, e moravam longe também. Uma babá? Botar uma estranha dentro de casa para olhar os nossos filhos? Ele não queria, de jeito nenhum. Mas os dois anos a mais já eram três, e no total mais de cinco, um branco intolerável no currículo, muito mal disfarçado com trabalhos autônomos aqui e ali.
E é quase hora do jantar, e um desses trabalhos tem que ser entregue hoje ainda, ou pelo menos estar no e-mail do contratante amanhã, antes do horário comercial. Tem a entrevista, também - ela precisa separar a roupa, fazer as unhas, imprimir coisas para mostrar. As crianças estão com o marido na sala, o cachorro abanando o rabo, a tevê. Risadas, pés pulando descalços, uma bolinha voando entre um sofá e outro, entre o pai e o mais velho, o cão e o pequenininho correndo atrás. O rebuliço de sempre que era a paz familiar do apartamentinho de dois dormitórios, móveis planejados, o sofá de couro, uma vaga própria e outra alugada, e o piso frio.
E o estrondo! – dezenas de objetos chegando ao chão quase ao mesmo tempo, o ruído seco de livros, um vaso de vidro espatifando, a própria estante, enorme, bam! O cachorro entra correndo pela cozinha, se esconde na área de serviço, não olha para trás. O pequeno chora. O que é que aconteceu, meu Deus?
- Não fui eu! Foi o Batman!
- Ele tentou subir para pegar a bolinha lá em cima, amor – O pai estava sentado, no sofá, o pequeno chorando em seu colo.
- Mas você não tinha que estar tomando conta deles, meu Deus? Esses dois se matam se a gente deixar que eles brinquem sozinhos!
- Eu nem vi, meu amor! Juro! Pisquei o olho um segundo e ele já estava lá!
- Cristo... leva esses dois lá pro quarto, por favor, enquanto eu arrumo isso aqui. Como é que ele tá? Machucou?
- Não caiu nada em cima dele, não, foi só o susto.
- Deixa eu ver.
O menino mostrou as mãos, um pouquinho esfoladas de aparar a queda. No joelho um vermelhinho que ia virar hematoma também, se não fizessem alguma coisa.
- Pega o gelo. Não, lava as mãos dele, eu pego o gelo. Assim não, espera... Pega o gelo você. Leva os livrinhos de colorir pra eles e vem me ajudar aqui. Não, fica lá com eles. Ou melhor, você esquenta o arroz? É só botar no micro-ondas. Na panela não, Deus do céu, bota num prato, num tupperware. Deixa que eu faço, vai varrer a sala. Não joga os cacos no lixo! Não, amor, não, tem que colocar num jornal primeiro. Olha aqui embaixo, tá cheio de caco. Põe a mesa por favor? O cachorro passa aqui, os meninos descalços, olha o perigo. Aqueles dois estão muito quietos, não estão? Vai lá ver o que eles estão aprontando. Não, deixa que eu vou. Põe esse prato aí.
E a louça, e terminar de arrumar a sala, e o banho dos meninos, colocá-los na cama, e o texto para entregar! O pequeno, ainda acordado, percebendo a luz acesa, foi para a sala.
- Posso ficar com você?
- Não, carinho, a mamãe tem que trabalhar e você tem que dormir. Vai pro quarto, tá bom?
- Mas eu não consigo dormir. E você não trabalha!
Um emprego de verdade, meu Deus. Carteira assinada, férias, amigo secreto, um panetone no fim do ano. O salário quase todo ia pagar a babá – o resto seria gasto com roupas para trabalhar, gasolina para trabalhar, manicure. Mas esse era o preço da liberdade, e tinha que dar certo, Jesus, tinha! O marido ainda relutava com a parte de botar uma estranha dentro de casa (“mas nem é para dormir, ela só precisa ficar aqui durante o dia – a gente nem tem espaço para ela dormir”). Mas lembrava que em algum momento as crianças iriam para a escola, os gastos aumentariam e era bom ter mais uma fonte de renda na casa. Guardar dinheiro para uma casa de verdade, com quintal, um apartamento na praia; quem sabe trocar de carro a cada dois anos, pelo menos o dele.
Desligou o computador. O cachorro dormia deitado de lado, ao pé do sofá; o peito levantava, abaixava. Levantava. Abaixava. Inspirava, expirava, roncando baixo e ritmadamente, devagar. As luzes da casa quase todas apagadas, exceto a pequena luz noturna do Homem-Aranha, pregada na tomada do quarto das crianças. O marido deitado de lado, encolhido, meio descoberto; ajeitou o edredom sobre ele, conferiu o despertador e deitou a seu lado. Silêncio.

- Bela Adormecida, Bela Adormecida!
- Mmm?
- Mãe! Manhê!
- Que é, filho?
- O Batman tá vomitando o quarto inteiro.
Olhou para o lado. O marido dormia a sono solto – e ele iria trabalhar no dia seguinte, afinal. Ela se levantou e aceitou a sua sina.
Limpar e arrumar o pequeno. Limpar o quarto. Pronto-socorro, medicação. Limpar o carro. Botar o menino para dormir no quarto vazio; encontrar o outro garoto, e o cachorro, e o marido, deitados na sua cama. Por dois segundos achou que era vantagem deixar tudo como estava e dormir na caminha do mais velho, mas não; carregou o filho até o quarto dele, enxotou o cachorro e se deitou. Tinha uma hora e meia de sono ainda antes de acordar para preparar o café.
Porque a vida é assim, não é mesmo?
A vida é ter torradeira elétrica, cafeteira, aspirador de pó. A vida é olhar um prato girando num micro-ondas. A vida é pagar IPVA, IPTU, IR, INSS, depois sacar o FGTS e se aposentar, e passar o dia todo a olhar os pratos girando no micro-ondas.
A vida é deixar os filhos na vizinha viúva de 70 anos, só-por-umas-horinhas, imagina-não-incomoda-adoro-criança, é sair escondido para que o menorzinho não veja e não chore. É perceber, já dentro do carro e quase atrasada, que as unhas estão em petição de miséria. É parar numa farmácia e comprar algodão e um vidro de acetona, e tirar o esmalte descascado no meio do trânsito.
E na freada de parar no farol, é claro que o vidro de acetona cai e se espalha todo pelo carro. Evaporando, deixa as manchas brancas de solvente em tudo o que toca, nos bancos de couro sintético, no plástico do console, nos tapetes, espalha o cheiro intoxicante no ar climatizado da bolha fechada. Ela abre a janela sem olhar para fora, o tempo exato de um pivete chegar, estender a mão e pedir um trocado.
- Não tenho.
Abre o farol. É um garoto magro, cor de terra, uns oito anos. A face brilhante de óleo e suor, de gente labutadora, as roupas sujas. Ela acelera e avança; Deus sabe o que impediu esse moleque de apontar uma faca para ela. Vê as olheiras cinzentas de corretivo no espelho do elevador, antes da entrevista; talvez tenha sido essa cara de bruxa malvada da Branca de Neve. Talvez ele nem tivesse uma faca, afinal. Era só um menino sem mãe.
Procura no bolso, na bolsa, na bolsinha de dentro da bolsa e encontra uma moeda novinha de um real. Linda, brilhante, a efígie fria da república com seus olhos cegos de prata, olhando o nada, ninguém. Deixa ali, equilibrada no painel no lugar em que estava a acetona, a borda dourada, bonita, coruscando ao sol. Volta pelo mesmo farol, e procura o garoto.
Ele não está mais lá. Em seu lugar, uma mulher com seu filho pequeno, uma moça, uma menina. Duas linhas brancas de secreção seca descem das narinas largas do bebê, a face da cor da terra brilhando de óleo e suor sob o sol. A moeda, a essa altura, já foi derrubada do painel pela freada: o rosto branco da república não vê o chão, os pedais, o tapete escuro. Ela fecha a janela e esconde sua bolsa por baixo do banco; só Deus sabe o que essa gente é capaz de fazer.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Céu


O céu de São Paulo não é cinza como vocês gostam de pensar. O céu de São Paulo é branco, vazio, é nada. Exceto no inverno, quando é de um azul cegante e seco, saturado, cruel. Um azul que sangra pelas narinas. No resto do ano é só vagamente azul, desbotado até o limite da cor. As nuvens quase não se contrastam, roupas brancas flutuando em água de anil, umas gotas poucas de anil – ninguém mais lava roupa com anil, em São Paulo
O céu se reflete no azul dos edifícios espelhados, mais azul do que o próprio céu. Grandes nuvens, lânguidas, navios derivando devagar, recortadas no quadriculado de esquadrias. Suspenso num par de cordas, um destemido lava cada fração do xadrez da fachada, esfregando o reflexo de um avião, até sumir.
Do alto do branco implacável, o sol em ápice projeta sombras duras no chão. A linha reta de uma marquise; os braços em movimento de um transeunte sobre o asfalto severo; o negro rendilhado da mantilha de folhas de uma árvore solteira, singular, brotando tenaz do concreto esbranquiçado por onde passarinhos ciscam.
Vocês gostam de pensar que não, mas há pássaros aqui. Além dos pombos, imundos, há outros.
O sabiá canta a sua canção de melancolia, nas árvores mais baixas, no gramado; os pardais, magriços, disputam migalhas do chão. Um alarido de maritacas, em bandos muito menores que outrora, cruza o céu, de verde em verde. Os sanhaços, macios, feitos do mesmo tecido que o céu do pós-tempestade – cinzento das nuvens de chuva, a nesga de azul que ainda resta, indecisa; ora quer que se a veja, ora quer não.
O azul vem de vez depois do crepúsculo, uns poucos minutos de azul absoluto na luz vacilante de antes da noite. No cerrar das cortinas, a noite é marrom e suja, da exata cor do nosso rio, se o céu é nublado; se limpo, é de um negror sem piedade, de estrelas pálidas, poucas.
O azul do edifício refletirá o negro espelho da noite, que vai refletir de volta, eternamente. A luz piscante de um avião cortará o feitiço, por um momento, até desaparecer no horizonte vertical da fachada. E então o espelho de vidro na terra e o espelho em veludo no céu voltarão a brincar, a empurrar para o outro e puxar para si a mesma imagem, ao mesmo tempo, a mesma escuridão inexorável, que ninguém sabe mais de quem veio, se da terra, se do céu, até a curva do tempo, até o amanhecer.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

três haikus urbanos*

qual neve no outono
na brisa junto às buzinas
as folhas farfalham


do céu da cidade
macio cinza e de azul
passarinho morto



tempestade finda
no chão se espelha indeciso
o céu que é de cinza


*frescura minha escrever haiku e não haikai. mas é haiku em absolutamente todas as línguas, exceto na nossa.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O décimo terceiro andar


 O pessoal da firma era calado, quieto. Era bom-dia, boa-tarde, fassavor e obrigado, e olhe lá. O chefe, sisudo, seco. Mas o que mais me incomodava no serviço era a sensação constante de estar sendo observada.
Você sabe como é. Aquele tinido mudo de través na garganta, uma picadinha muito suave com o lado rombudo de uma agulha morna, na nuca, meio de lado; a gente se vira para olhar e não tem nada ali.
Vai ver eram os ratos olhando a gente.
Isso, e os furtos à geladeira; quase qualquer coisa que se esquecesse de um dia para o outro, sumia. O chefe dizia que as faxineiras tiravam para limpar, e descartavam o que quer que houvesse lá por ordem da empresa; os colegas tinham certeza que elas comiam, levavam para casa. Até das gavetas, às vezes, sumiam chocolates. A Socorro, no entanto, jurava que a ordem era limpar uma vez só nas sextas e descartar aos fins de semana, pra não correr o risco de estragar nada numa possível falta de luz e ficar ali largado, fedendo. Era avisado, inclusive, penduravam cartazinho e tudo. Do que sumia, não sabia dizer, só tirava o dela da reta: eu é que não fui.
Vai ver eram os ratos também.
Mas trabalhar era isso, né? A gente aceita quase qualquer coisa quando tem conta pra pagar, jura que vai procurar outro emprego melhor, mas acaba ficando. Aquele medo de trocar o certo pelo duvidoso, e há empregos bem piores, afinal. O bom de todo mundo ser fechadão e conversar pouco era que deixavam fazer meu trabalho em paz, e não rolava fofoca nem mexericagem. Não muita, pelo menos. A rádio-peão, como se diz, em qualquer lugar, sempre tem histórias para contar.
Um dos rumores mais estranhos ali da empresa era a respeito do meu predecessor, desaparecido havia coisa de um ano. Dizem que o fulano simplesmente sumiu após descobrirem uma mancada feia dele, que nem bateu o ponto de saída no dia fatídico, e que depois ninguém nunca mais o encontrou. Não atendia telefone, não tinha família que se conhecesse, não veio nem dar baixa na carteira. Fora tragado pela terra, ao que parecia. Havia até o boato, circulando entre os terceirizados, de que ele teria se enforcado com a própria gravata no armarinho de vassouras, e a empresa encobriu para não manchar a própria imagem. A tal da falha? Ninguém sabia ou queria me dizer. Por tudo o que eu pude apurar, ele teria escrito o nome do presidente da empresa, Dr. Mario Pinto Machado, como Dr. Caio Pinto Brochado, numa apresentação em PowerPoint exibida para grandes investidores numa reunião importantíssima. Dei um sorrisinho fingindo achar graça quando me contaram, sem acreditar, na certeza de que estavam mesmo era tirando um barato com a novata.
Nosso setor dividia o décimo segundo andar, o último, com a zeladoria. Os seguranças e o pessoal da limpeza eram mais amigáveis que os meus colegas, e, no almoço e pausas para o café, ali na copa, era com eles que eu conversava. A faxineira Socorro, mãe solteira de dois meninos, trinta anos, tinha vindo do Piauí havia dois e fazia curso de manicure, "pra melhorar de vida, né". Carlão, segurança, negão do tipo armário, falava grosso e metia medo em qualquer um, mas era mais crédulo que a minha avozinha. Era ele o mais fervoroso propagador do mito do suicídio do meu desaparecido colega, e jurava, pela alma de sua mãe mortinha, que o fantasma do fulano ainda pairava por ali. "Vocês não passam as madrugadas nessa firma, não sabem o que eu escuto. Os passos do cidadão parece que vêm do teto, ecoam pelo andar inteiro. Dá sempre a impressão de que tem alguém te vigiando. Eles falam que não aconteceu nada pra não sujar a imagem da firma, mas por que é que você acha que trocaram a equipe inteira da segurança naquela época? O pessoal sabia demais, certeza".
"Larga de ser frouxo", dizia a Socorro. "Esses barulhos que vocês escutam aí de madrugada é rato, isso aqui tá infestado. Ninguém faz nada, depois aparece um aí passeando em plena luz do dia e aí a culpa vai ser da faxineira que não tá limpando direito".
Eu honestamente não sei se rato chega a subir tão alto num prédio, mas vai saber. Sei nem se eles teriam o que comer ali, nunca encontramos papéis roídos nem nada, a não ser que eles tenham mesmo aprendido a abrir gavetas e geladeira. Que a gente escutava de vez em quando uns ruídos ali no teto, lá era verdade, mas eram sons pesados demais para passos de rato. Rangidos, baques, pancadas; da primeira vez fiquei assustadíssima, mas meu chefe e os colegas juraram que não ouviram nada. A minha teoria é de que era o barulho natural das placas do forro se expandindo e se ajeitando, como acontece em casas de madeira. Não que eu já tenha morando numa casa de madeira, mas ouvi dizer. Acho que foi no Mundo de Beakman.
A explicação me parecia perfeitamente racional até o dia em que eu tive que ficar até tarde na firma.
Precisava terminar uma apresentação até o dia seguinte sem falta, concentrada no computador com uma caneca de café e cacófatos involuntários surgindo à minha mente no meio da sonolência. Precisei escrever o nome do presidente da empresa e me lembrei da tal suposta mancada do meu "falecido" colega. Dr. Caio Pinto Brochado, haha. É besta, mas com o sono que eu estava e a falta de vontade de ficar ali trabalhando, poderia rir até do pior dos trocadilhos. Do nada, no entanto, aquela sensação de novo – a agulhadinha suave na base da nuca. Virei para ver. Ninguém.
Vai ver eram os ratos.
Tomei mais um gole de café e continuei com o serviço. Era o sono, devia ser. Não faltava muito para terminar, e logo eu estaria na minha cama quentinha, na minha casa, onde não há barulhos estranhos nem ratos, nem grandes executivos de nome engraçado, nem fantasmas.
Estava desligando o computador e guardando as minhas coisas, quando senti de novo a agulhada. Meu deus.
Olhei para cima. Um dos painéis do forro se moveu.
Um centímetro ou dois, fechando uma fresta. Mas se moveu. Eu vi.
Ratos não fazem isso.
Fui beber um gole d'água. Bobagem, eu estava cansada. Foi uma alucinação, causada pelo sono, só podia ser. Peguei a minha bolsa e estava quase saindo, quando me deu na telha subir na mesa de trás, onde eu havia visto o movimento, e dar uma olhadinha no forro mais de perto, só para garantir.
O painel parecia firme, não consegui mexer. O som, batendo com os nós dos dedos, era oco. Se havia alguma coisa, não estava mais lá, com certeza. Nem um rato. Besteira minha, mesmo.
No dia seguinte, antes de apertar o botão de "enviar" no email com a apresentação anexa, me ocorreu abrir o arquivo e dar uma revisada. Não custava nada, e o chefe não havia chegado ainda, mesmo.
Meu deus.
Meu coração pela boca quando percebi que o nome do presidente estava escrito errado, com aquele maldito trocadilho idiota.
Será que eu estava com tanto sono assim que escrevi aquilo sem querer? Será que um espírito de porco modificou o arquivo através da rede? Será que era uma maldita auto-correção do próprio programa, que talvez tenha sido a desgraça do meu predecessor? Revisei tudo vinte vezes, desativei as auto-correções e salvei uma cópia do arquivo numa pasta inacessível em minha própria máquina, e foi essa a cópia que enviei para o chefe. Aquele dia eu tive dor de cabeça pelo expediente quase todo, e só sosseguei quando o chefe voltou da reunião, sem falar nada, sem olhar feio, em silêncio. Graças a deus. Graças a deus.
Nem fiquei estressada quando percebi que os iogurtes que havia deixado na geladeira do dia anterior para esse haviam sumido. Os ratos também têm que se alimentar, afinal.
Estava fazendo um ano e um mês do desaparecimento daquele meu colega, o que nunca foi. A vida continuava como sempre. Meus companheiros calados, o chefe, rígido e sisudo, Carlão contando histórias, Socorro não acreditando. Dessa vez era o quartinho das vassouras, que amanhecera desarrumado, uma zona, tudo jogado no chão. Socorro havia tomado uma bronca enorme da sua supervisora e acusava Carlão, porque ele, de plantão, era a única pessoa na empresa que poderia ter feito aquilo. O segurança jurava que não, que ele nem tinha a chave do armarinho, afinal, que ouvira o barulho e correra para ver, mas não pode entrar, e que o culpado, claro, era o fantasma do falecido.
"Olha lá o banquinho caído no chão, o alçapão no forro aberto. Foi assim que ele se enforcou, amarrou a gravata no puxador e pulou do tamborete. Hoje é aniversário da morte dele, sabia?". Quis corrigir, eram treze meses na verdade. Mas achei melhor não me meter.
"Você que fez isso, seu espírito de porco, pra provar pra todo mundo a sua lorota. Minha chefe quis me matar hoje de manhã. Eu tenho dois filhos pra sustentar, seu desgraçado, sozinha, sabia? Eu pago aluguel, sabia?"
Se alguém havia morrido ali, se debateu muito antes de morrer. Só os ratos também não teriam sido capazes de fazer aquela baderna toda. Não era só o banquinho; a estante de metal com os produtos de limpeza estava caída, na diagonal, atravancando o pequeno cômodo inteiro; os produtos, espalhados pelo chão, enchendo o corredor com um pot-pourri de aromas químicos. A porta do alçapão aberta, balançando numa brisa inexistente, no movimento pendular que lembrava mesmo, um pouco, um corpo enforcado, pendurado.
Bobagem. Chega de maus agouros. Era meu último dia antes das minhas primeiras férias – por isso sabia que estava fazendo treze meses do desaparecimento lá do cara – e eu é que não ia me meter na briga. Cumprimentei os dois e voltei para o escritório, louca para resolver absolutamente tudo e amarrar qualquer ponta solta que se atrevesse a ficar pendurada, para que ninguém fosse me perturbar durante meu descanso.
Não tive tempo de relaxar um único músculo, no entanto. Já em casa, à noite, bem depois do fim do expediente, me dei conta que havia esquecido alguns documentos numa gaveta, numa bolsinha vermelha, e não poderia viajar sem eles. Foi fácil entrar na empresa, já que era o Carlos que estava de plantão, novamente. Difícil era subir doze andares com os elevadores desligados.
O edifício vazio de uma grande empresa era algo assustador. Não me surpreendia que o segurança insistisse naquela história de fantasmas. Mesmo nos momentos de maior silêncio ali dentro, durante o dia, havia sempre passos no corredor, alguém falando ao telefone, um celular tocando. Ali, no vácuo das paredes cor de gelo, apenas o ruído dos reatores das lâmpadas enchia o ar. Tive uma náusea quando olhei para o fundo do poço formado pelas espirais em retas das escadas; um grão de poeira, voando no ar naquele momento, teria um longo caminho a percorrer até o térreo.
Nunca tive vertigens de altura. Devia ser o cansaço, o sangue já faltando à cabeça. Eu ia ficar bem.
Meus próprios passos ecoam no corredor ermo, como se alguém me seguisse, quase em sincronia comigo. Paro e olho para trás; o barulho parece continuar ainda por uma fração de segundo, mas pára. Dou mais dois passos; o som suave como o pulsar do coração de um minúsculo animal, que cessa antes que meu próprio coração volte a bater. É claro que era o eco.
Por meio momento antes de acender a luz do escritório, tenho a impressão de ouvir o barulho distante de plásticos sendo amassados, baratas abrindo as asas, um rato roendo a roupa de um morto e enterrado rei de Roma em seu sepulcro. A sensação de mil agulhinhas mornas encostando seu lado rombudo por toda a minha coluna inteira. Há alguém ali.
Acende-se a luz. As janelas repousam, sem vista, cerradas. Os rodízios das cadeiras não rangem, não rolam. Os telefones não tocarão.
Mas a minha gaveta está aberta.
Eu me aproximo, devagar. Esbarro na correntinha de uma das persianas, que se move um mínimo, para lá e para cá, num movimento pendular que me lembra algo de que não quero lembrar. O zumbido silencioso das lâmpadas é perturbado pelo suave rumor que vem da minha gaveta. Me inclino.
Me inclino e ele se levanta, súbito, sopetão. Os olhos redondos rebrilham na luz fria, os dentes agudos levam um vermelho de sangue na boca. Um rato, uma ratazana enorme, imensa, do tamanho de um gato, de um cão, de um tiranossauro, carregando consigo minha bolsinha de documentos. Ele se aproveita da minha surpresa e salta; protejo meu rosto sem ver que não é um ataque, mas uma fuga. O animal escapa pela porta, levando na boca toda a minha existência legal. Não há tempo para ter nojo, eu tenho que correr.
No fim do corredor iluminado, uma fresta de escuro se abre; é o armarinho da limpeza, onde o rato se esconde. Me estranha estar aberto, mas corro até lá. Acendo a luz. Ele desapareceu.
Procuro. Não há nada lá além de vassouras, rodos, químicos, venenos, líquidos coloridos com cheiro de flores falsas em garrafas enfileiradas. Uma agulhada morna me faz olhar para cima; o alçapãozinho do forro está aberto.
Subo, não sem esforço, usando o tamborete do enforcado e as estantes de ferro como escada. Com meio corpo apoiado lá no alto, o único sentido que funciona, a princípio, é o olfato; poeira, bolor, o odor pungente de secreções corpóreas, de animal, de mamífero.
Usando o celular como lanterna, os olhos devagar devassam a escuridão. O forro tem a altura exata para que um ser humano se arraste, de gatinhas; as bolas fofas de poeira cinza dividem o espaço com a fiação e as teias penduradas de aranhas que já não habitam o lugar. Pedaços de plástico, talvez coloridos, amassados; levo muito tempo para discernir que são embalagens de doces, iogurtes, refrigerantes. De longe, algo reflete o brilho da mínima luz que trago: um par, dois pares, duas dúzias de minúsculas gemas em pares paralelos, pequenos olhos mirando de volta: ratos.
Toda uma família de ratos cinzentos, de mãozinhas cor de rosa e olhos brilhantes, olhando para mim.
Quase no topo do teto, a minha parca luz é refletida por um par de gemas um pouco maiores, coroadas por uma teia de cabelos desgrenhados, cinzentos de poeira. As roupas estão imundas, esfarrapadas, da cor da sujeira gris, mas no pescoço, atado num perfeito nó Windsor, brilha o tecido vermelho de uma gravata impecável. Magro, esquálido, mas muito vivo, com minha bolsinha de documentos na mão, o meu ex-colega me observa com seus olhinhos apertados de rato, e milhões de minúsculas agulhas mornas parecem espetar o meu corpo todo.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Rins ao molho madeira


 Tomei um boa-noite cinderela e acordei numa banheira com gelo. Sem os rins.
Da cozinha, que aparecia aos bocados desvelados por uma cortina de peixinhos, vinha um cheiro bom – salsinha, noz moscada, pimenta. Demorou um pouco para a vista ficar nítida, e quando eu pude ver, o que eu via era um par de pernas longas e brancas e estreitas sobre saltos altíssimos vindo em minha direção. Um pedaço de carne surgiu bem na minha cara, espetado por um garfo prateado de dentes longos e agudos, segurado por uma mão branca de dedos longos e unhas vermelhas e agudas. Provei. Rins ao molho madeira.
As horas passam devagar quando você está imobilizado numa banheira com gelo. A cirurgia de extração do fígado foi minha maior distração durante aqueles dias, depois de contar os azulejos visíveis, que eram oitenta e dois, três quebrados, e os peixinhos da cortina, que eram setenta e cinco, os verdes com um a mais que os azuis. A operação foi interessante também porque durou vários dias, e ela arrancava um pouquinho só de cada vez, um lance meio Prometeu Acorrentado. Primeiro me serviu o fígado acebolado, o que trouxe péssimas recordações de uma anemia na infância. Depois o trouxe numa pastinha fria, à moda judaica, servida com torradas. Por último, ela adaptou uma receita de foie gras para fígados magros e humanos, e me serviu uma bela fatia retangular do meu próprio pâté. Textura riquíssima, untuoso, muito macio; motivo pelo qual eu preferia que ela tivesse guardado um pouco para o dia seguinte, quando tirou a minha língua, que serviu fervida e fria, em fatias finas, ao molho vinaigrette.
Quando ela arrancou minhas tripas, achei que ia jogar para os cachorros. O que ela atirou para os cães, depois, foram meus pulmões, os bofes, e outros órgãos menores; para as tripas ela tinha outros planos. Um barulho de motor vindo da cozinha me chamou a atenção, e eu tentei me mexer para ver: era uma máquina de encher linguiças. Qual era a carne do recheio, eu percebi quando me movi e os ossos nus da bacia bateram contra a parede fria da banheira. Aquela mulher estava comendo a minha bunda.
No último dia, acordei com o aroma e o chiadinho ligeiro de fritura vindo da cozinha. Me inclino para ver: sobre a pia, shoyu, vinagre, açúcar, uma lata de abacaxi. Ela apenas salteava as fatias finas na frigideira, para que a carne não ficasse dura.
Aquela receita eu conhecia. Os chineses fazem com porco, mas porcos gritam demais ao morrer – morrem de um golpe só, no pescoço, e jorra sangue, e como gritam. Mas a receita, como eu ia dizendo, era coração ao molho agridoce.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Eles

Primeiro eles cegam os seus olhos, para que você não veja. Porque não há nada errado à sua volta, é evidente que você anda enxergando demais. Eles fazem de madrugada, em silêncio, e quando você acorda o céu, o sol, a face amada, tudo some, sumiu, como o nada, como o absoluto silêncio dos olhos. Se isso não for capaz de silenciar a sua voz, eles cortam a sua língua - e dessa vez não vêm em silêncio, na madrugada às escuras, vêm na própria luz do dia que você não vê e deixam claro, muito claro, o que vão fazer; te anestesiarão e o colocarão numa cadeira, e cortarão a sua língua, rápido, sem dor, sem sangue, sem desespero, sem amor, limpo como deve ser. E se o silêncio não for suficiente e você escrever - você sempre pode escrever, você conserva a caneta entre os dedos e escreve, porque não seria capaz de desaprender, e o que sai pode ser uma garatuja mas com esforço alguém lê, e eles lêem - se você escrever, eles virão novamente. E dessa vez vêm sem pena, sem piedade, virão com estrondo, sem limpeza, com sangue e pavor, e cortarão seus dedos, cada um deles, todos eles, deixando apenas as palmas, as nuas e desfolhadas palmas das suas mãos. E todo o meio que você encontrar para dizer, da maneira como for, eles vão calar, calar e torná-lo um nada, um cotoco de gente sem sensos, sem existência legal, aprisionado em seu pensamento que grita, que berra e não cala.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Lembrança


 A grande e barulhenta geladeira vermelha da minha infância havia sido trocada por um modelo novo, moderno, de aço, mil prestações. Os móveis de pé de palito e fórmica colorida ainda eram os mesmos. Ainda era o mesmo forro de oleado estampado de grandes frutas forrando as prateleiras, gasto nas juntas e dobras, a mesma passadeira no chão e a pia de mármore, mais encardida. Os azulejos decorados iam quase até a minha altura toda, naquele tempo, hoje chegavam no máximo até a altura do meu peito. A tinta era nova, as manchas de umidade, as mesmas. A mesma tia Lucrécia, sentada na cadeira de pé de palito, cabelos pintados de preto e os lábios de vermelho, um pouco mais gorda, mas a mesma.
Era uma casa pequena e cheia, cheia até a borda. A churrasqueira, montada no quintalzinho do fundo, ao lado da velha máquina de lavar azul, que nem funcionava mais, subindo a fumaça por entre os varais esvaziados das roupas, de plástico azul desbotado com pedaços ancestrais de pregadores quebrados junto aos festões prateados, três boás de plumas fininhos vindos não se sabe de onde, os balões coloridos pendurados feito os berenguendéns de uma baiana de carnaval. O chão de concreto rachado era tão preto de umidade e tão cheio de musgo quanto eu me lembrava.
O pequeno jardim, de roseiras mirradas e secas e treliças onde cresciam pés de bucha ou chuchu - não me lembro mais – já não tinha mais nada. O que era conveniente, uma vez que as crianças insistiam em pisar e pular tanto nele. O muro baixo, o portão baixo, tudo dando direto para a rua - o que protegia a casa eram as grades nas janelas, mas não havia quase medo nenhum de furtos. Era uma rua tão deserta, tão isolada - sem saída - que ladrão nenhum sequer perceberia que ela existe.
Eu tinha a recordação de que a rua era de paralelepípedos, mas o asfalto velho, negro e rachado parece negar minha memória – o chão assim, numa rua sem movimento, tem que ter mais de trinta anos. E a minha memória era um pouco mais recente do que isso. Eu também não me lembrava dessa abertura na mureta do fundo da rua, que dava numa escada íngreme, feita pelos próprios moradores, descendo a encosta do morro até a rua de baixo. O morro repleto de mato, bananeiras e grandes pedras nuas - nuas, a não ser por aquela uma com a monumental pichação de "Pedro (coração) Sonia - 11/07/88" em spray preto, misteriosamente sobrevivente aos tantos anos das chuvas torrenciais dessa cidade. Talvez eu não me lembre porque naquele dia, há vinte anos, como hoje, a abertura foi fechada com retalhos de madeirite cedidos por um vizinho, para evitar que alguma criança vazasse e rolasse morro abaixo, porque àquela altura a festa já ganhava a rua inteira.
Os parentes todos, filhos, sobrinhos, netos, sobrinhos netos, alguns bisnetos já, que eram tantos, se somavam aos vizinhos da pequena rua sem saída no alto de um morro da zona noroeste de São Paulo, que se somavam à praticamente toda a comunidade da pequena cidade de onde tinha vindo a tia - e minha avó, e meu pai, e metade da minha família -, lá do meio do interior da Bahia, uma cidade minúscula, que nem constava no mapa na minha geografia da quinta série, vinte anos atrás. Havia, talvez, mais gente daquela cidade em São Paulo - e ali, naquela rua sem saída, naquela festa de um sem contar de gente - do que na própria cidade, que era tão pequena.
Ela estava pagando, a tia disse, uma viagem para voltar à cidadezinha dela, ver os parentes, uma irmã que ficou lá, os primos. De avião, a tia disse, mas a senhora não tem medo, eu perguntei, mas medo do que, a tia disse, tanta coisa aqui na terra pra ter medo, vou ter medo de voar, de avião.
A essa altura as crianças já haviam enfeitado a tia com o boá de plumas, rosa-choque com brilhinhos de glitter, roubado dos enfeites no varal. Já tinham colocado nela um dos óculos de plástico da lembrança, de coração, lolita, rosa bebê. Eu também tinha o meu, também rosa, de estrela. Pedi para o pai tirar foto, nós duas, as bochechas pintadas da tia nas minhas bochechas, o boá de plumas com brilhinhos emoldurando, a tia e eu. Bonita, a tia disse, ao ver a foto pronta pelo visor da máquina. E quando fomos embora, eu vi a noite cor-de-rosa através das estrelas de plástico dos óculos da lembrança.
Na segunda-feira seguinte àquele domingo, voltando do trabalho, encontro a minha família inteira na cozinha, comendo e falando baixo. Estou deixando as chaves no prego da porta e cumprimentando um tudo-bem, quando meu pai chega perto e me diz, baixo, sem cochichar: mais ou menos. A tia Lucrécia faleceu de ontem pra hoje, meu pai disse. Dormindo, ele falou, morreu dormindo.
É preciso ir ao velório dar um abraço na minha velha avó. Há gente demais, os parentes todos, filhos, sobrinhos, netos, sobrinhos netos – bisnetos não, as crianças devem ficar em casa. Tem os vizinhos, a comunidade quase toda da cidadezinha do interior da Bahia de onde metade da minha família vem.
Não quero ficar para o enterro. Vejo de longe apenas o corpo coberto de flores brancas; o rosto, não. Quero a memória dos cabelos pintados de preto e dos lábios vermelhos, da moldura rosa com brilhinhos e das lentes de coração, cor-de-rosa, como as duas estrelas que ainda guardo no bolso, comigo, agora.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

A Ponte


A compostura, senhores, por favor. Perdemos tudo, mas não percamos a compostura. Pois não, senhora? O toalete é ali, madame, atrás daquela caixa de papelão. Senhores, contenham-se, por favor. Cada um fica com metade do meio hambúrguer, e deixem as batatas fritas para as crianças. Contem e façam a divisão correta, vocês todos foram para a escola, são pós-graduados até. Por favor, senhor, eu sei que vossa excelência foi desembargador em seu bom tempo, mas a fome que o senhor sente é tão grande quanto a do nosso ilustre colega, mesmo ele tendo sido apenas delegado. Papel? Como assim, papel? Ah, minha senhora, infelizmente tivemos que renunciar a esse luxo, mas já que a senhora é nova aqui eu posso dispor de alguns trapos limpos. A senhora pode lavar depois no chafariz da praça, garanto que é mais confortável que jornal. Mas o que é isso por aqui? Ordem, por favor, ordem! De quem é a escova de cabelo? A regra é clara, madame, as coisas pertencem a quem as pegou primeiro - de quem pegou, não de quem viu, minha senhora. Mas na situação em que nos encontramos tenho certeza que sua colega não se importará em partilhar seus bens e emprestar a escova assim que usar. Se ela não devolver, a senhora me procura. Como? Ah, sim, madame, a senhora pode usar a água daquelas garrafas pet para limpar, e se houver *pigarro* resíduo sólido pode usar uma das sacolinhas que depois o lixeiro leva. A senhora faz a gentileza de encher as garrafas depois? Muito obrigado. Por favor, crianças, por favor, respeito com os mais velhos. Não chamem o senhor deputado de "velho fedido", ele apenas não teve acesso a água potável suficiente para sua higiene pessoal. Sentados, por favor. Fizeram a tabuada? Não é desculpa, rapazinho, seu coleguinha também não tem caderno e fez a lição com carvão numa tábua, está vendo? Tome, tome esse pedaço de telha e faça a tabuada do 7 ali na lousa. A pilastra da ponte, seu impertinente, você sabe muito bem. Senhoras, por favor, eu já não disse! A compostura, por favor, a compostura. Perdemos tudo, mas não percamos a compostura e... Ei, devolve essa bituca, tá quase inteira e eu vi primeiro!

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Sete vidas


"Então, doutor, é que eu tenho um filho... um filho pequeno, sabe? O senhor entende. E eu tenho me pegado às vezes pensando em umas coisas estranhas. Às vezes, quando ele está correndo de um canto para o outro da casa, eu tenho vontade de colocar a perna na frente dele para que ele caia, para que quebre os dentinhos da frente e fique lá, jogado no chão, a boca sangrando. E da vez em que ele colocou uma chave dentro da tomada - eu tapei todas as tomadas da casa com aqueles protetores, doutor, mas não adianta, ele vai lá e arranca - eu fiquei imaginando que a voltagem da casa poderia ser bem maior e ele ficaria ali, uma silhueta negra de cabelo arrepiado com o esqueleto aparecendo, o senhor sabe, doutor, que nem em desenho animado, e depois viraria pó, viraria cinza, que eu então varreria pra debaixo do sofá. E da vez que ele ficou subindo no encosto da poltrona pra se jogar no chão, doutor, fingindo que voava. Pegou minha toalha branquinha, nova, quebrou o abajur da mesinha, fez a poltrona cair - eu pensei em convenientemente encostar o bendito móvel ali na beira da janela, o senhor sabe? Na minha fantasia a janela não tinha tela, e ele voava veloz com a força da gravidade até o chão, doutor, até o chão, e se desfazia como uma bexiga d'água que a gente joga, espalhando sangue em vez de água por todo o pátio do prédio
"Começou, eu me lembro, quando ele ainda era bem pequenininho e tinha me feito passar a noite em claro, ele não parava de chorar... Eu havia tentando de tudo já, doutor, cantar pra ele, carregar no colo, mamadeira quentinha, massagem... Achei que um banho morno não faria mal, e se relaxava a gente, podia relaxá-lo também. Então estava com ele lá na banheira, e de repente me peguei segurando sua cabecinha ali no fundo... ele soltava bolhinhas de ar, se debatia, eu soltava, ele respirava com um golpe de choro na superfície e eu o empurrava de novo, a cabecinha dele, distorcida ali no meio das ondas, das bolhas... Mas quando dei por mim, doutor, estava com ele no trocador, enxugando com a toalha, e nada daquilo tinha passado.
Depois disso vieram os sonhos. Vinham de vez em quando, principalmente nas noites em que ele me acordava querendo alguma coisa, eu voltava a dormir e sonhava. Num dos sonhos eu o soltava dali de cima, doutor, como aquela primeira cena que lhe descrevi, mas ao chegar no chão ele quicava, quicava e acabava voltando a entrar em casa, antes que eu tivesse tempo de trancar a janela. Em outro, eu o girava pelas pernas que nem aqueles martelos olímpicos, o senhor sabe, de atletismo, e o atirava na parede; no choque, ele se transformava em mil pombos brancos que voavam em todas as direções a partir do impacto, e eu detesto pombo, doutor, animalzinho sujo.
"A verdade, doutor, é que eu não se eu gostaria que esses pensamentos parassem... Por que eles me relaxam, o senhor entende? Ontem mesmo eu passei a noite quase toda sem dormir, porque o menino também não dormia e ficava pulando em sua cama, fazendo barulho, de luz acesa, e de manhã ele ainda derramou todo o chocolate na toalha branca. Tive que limpar antes de sair, me atrasei, tomei bronca do chefe. Quando esse tipo de coisa acontece, eu fico no trabalho imaginando como seria enfiar mil agulhas por baixo das unhazinhas dele, ou arrancar seus os dentinhos de leite com uma torquês, e aquilo me dá uma paz... Então eu consigo ter foco para trabalhar, mesmo com o cansaço, mas isso é por algumas horas, porque quase sempre alguém vai me ligar da creche dizendo que ele enfiou a mão no formigueiro do jardim, ou que jogou tinta guache nos olhos da coleguinha, e tudo recomeça... O senhor está me escutando, doutor?"
"Perdão, eu estava pensando em outra coisa aqui, mil perdões. É que eu tenho uma filhinha pequena, sabe, e hoje ela não me deixou dormir, e eu estava pensando em como seria se de repente o carrinho dela se soltasse na escadaria do metrô e de alguma maneira fizesse a curva e fosse cair direto na via, e..."

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Incrível


Incrível é abrir a janela e ver um sol vermelho no horizonte leste em vez do branco habitual, ver uma massa fofa de todos os tons escuros de verde em lugar do colorido cinza habitual. Incrível é quando a rua movimentada em frente é um grande pátio de terra batida e o tráfego é feito de homens e mulheres vermelhos de corpos nus. Incrível o seu apartamento confortável no oitavo andar ser uma casa térrea, incrível que sua janela seja uma porta escavada no pau-a-pique porque sua casa não tem janelas. Incrível que seu teto branco com molduras de gesso hoje seja feito de palha e madeira entrelaçada, incrível que o piso de porcelanato fino sob os seus pés seja terra batida. Incrível que o seu carro e seu sapato apertado hoje sejam esse mesmo par de pés vermelhos de pele grossa, com terra vermelha embaixo das unhas, incrível que suas mãos vermelhas de palmas brancas tenham calos grossos e ainda mais terra por sob as unhas. Incrível sua gravata ser hoje um desenho intrincado de grafismos de preto e vermelho. Incrível que sua agenda apertada para hoje seja a roça de manhã e a pesca de tarde, que seu almoço de negócios seja um prato de farinha de mandioca e carne moqueada, que seu café seja a água fresca com gosto de barro da moringa vermelha. Incrível que seu sofá e TV da noite sejam uma dose de cauim e um grande caminho de brasas vermelhas que você atravessa com seus pés vermelhos, incrível a dor dos primeiros passos, incrível o medo, a vontade de desistir em tão poucos segundos. Incrível como você deixa de olhar as brasas e seus pés e olha o rosto dos outros homens, das outras mulheres, vermelhos das brasas vermelhas, e você avança. Incrível como as brasas não esfriaram, mas você, você é vermelho como as brasas, vermelho como todos os outros, quente como todos os outros, você é quente como as brasas e por isso não sentirá, você é o próprio fogo, você passa. Incrível que caia de joelhos ao fim do caminho, em meio aos uivos primais de alegria de seus companheiros vermelhos, incrível que eles te apanhem e o sentem num banco vermelho em forma de onça e que venha um velho enfeitado de penas e riscos no corpo com uma enorme faca de pedra, incrível que seus companheiros te firmem pelos dois braços para não deixá-lo fugir, incrível que a moça vermelha dos peitos bonitos segure seu lábio para baixo e o velho vem, o velho e a faca, rasgando seu lábio num jorro de sangue vermelho e tudo o que fazem para estancar é colocar lá uma enorme presa de algum animal. Incrível o seu chefe, te olhando torto na manhã seguinte e seu colega ao lado perguntando se o piercing doeu.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Obsoleto


 As chaves do armário da sala de vídeo eram guardadas com zelo por nosso velho, nosso querido professor. A gente sempre soube sobre o nosso querido professor. Aquela ínfima caída não intencional da voz no fim das frases, a insistência em não olhar – em deliberadamente desviar o olhar das pernas e bundas dos rapazes na quadra do colégio, essas pequenas coisas que a gente que tem olhos para ver sempre acaba enxergando. Quando soubemos que ele morava com a mãe – um homem solteiro e de meia idade que ainda mora só com a mãe – todos nós demos a nossa risadinha secreta. E quando um de nós o viu – e estava certo, era ele – descendo a Vieira rumo ao Arouche, vestido com roupas demais para o calor e se esgueirando nas sombras, todos nós já tínhamos certeza. São coisas pequenas demais para provar alguma coisa por si, mas o conjunto não nos escapava, não a nós que sabíamos ver. Boi preto, eles dizem, conhece boi preto.
No dia em que arrombaram o armário da sala de vídeo, o nosso querido professor estava inconsolável. Derrubaram ou jogaram a nossa velha TV de tubo, os cacos da tela espalhados no chão, sem conserto. Levaram o DVD chinês que sempre dava problema, que deve valer, com sorte, umas dez pedras no mercado negro local. Nem olharam, nem tocaram, no nosso obsoleto videocassete
Não era o prejuízo, a gente dava um jeito, a APM, uma festa, uma rifa, a gente sempre dava um jeito. Não era a confiança nele, a fechadura foi arrombada, não se tinha nem o que dizer. Era a invasão, que era como se fosse uma invasão ao seu próprio mundo – ao seu espaço, à sua privacidade, àquilo tudo que ele guardava com tanto zelo. Um mundo obsoleto e que ali, dentro do nosso mundo, talvez não valesse tanto. Mas era o seu mundo, e não cabia à gente julgar.
Houve um tempo em que um videocassete valia muito.
Houve um tempo em que um segredo desses acabava com a vida de uma pessoa. Dependendo de onde for, ainda acaba.
Tudo o que queríamos era abraçar o nosso velho, nosso querido professor e dizer que estava tudo bem, que a gente dava um jeito, a gente sempre dá um jeito. Mas não podíamos, jamais poderíamos, não sem que ele antes nos desse a chave.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

O coração da galinha


Clara não queria ver o espetáculo da matança. Teve a impressão até de ter ouvido o crec do pescoço quebrado, vindo do quintal, mas poderia bem ser o barulho das crianças. E elas vinham, escoltando a avó. Não queria ver, mas procurava; cadê a galinha?

- A Val escaldou e tá depenando lá fora, pra não fazer bagunça na cozinha.

À mera menção promissora de bagunça, as crianças saíram, procurando. Ali na cozinha era chato, só cortação de legumes. Queriam ver o sangue.
Ela lembra de ter visto uma vez, pra nunca mais. A avó segurava a bichinha pelas pernas, e puxava pelo pescoço que era um golpe só – crec! Rápido, sem protestos. Depois de tantas galinhas, era como se elas se acostumassem a morrer.
Pendurava depois, cabeça pra baixo, para juntar o sangue – ás vezes se fazia molho pardo, às vezes misturavam à comida dos cachorros. Nunca era jogado fora. Depois escaldavam a defunta na água fervente e vinha o trabalho chato de depenar, delegado à empregada. Dali, era limpar.
A avó metia a mão pelo buraco da cloaca e cavava as vísceras do fundo do animal. A primeira mão era a mais delicada, porque vinha a vesícula junto com as tripas e não se podia deixar estourar. A segunda podia ser mais rude. E a terceira era sempre a mão do pulmão, que grudava na caixa torácica e tinha que ser tirado à unha.

- Vó, esse que é o coração?
- Essa é a passarinha, filho. O baço.
- E pra que serve o baço?
- É pra estourar, Léo se intrometia. Você toma um murro bem aqui, – esmurrou sem força o plexo solar do primo – o baço rompe e você morre.
- Credo, Léo! Era Clara. Aí, pai, olha o Léo mexendo com os mais novos!
- Vão ver TV, todos vocês, deixem a vó e a Val prepararem o almoço.
- Tio, pra que serve o baço?

Veio o tio tentar explicar de um jeito que crianças de três a dezessete anos entendessem – mas as crianças adolescentes já deviam ter isso na escola, então que se danem elas. O baço. Servia pra fabricar anticorpos, os soldadinhos que lutam contra as doenças no corpo. Os rins, pequenininhos, minúsculos. Limpam o sangue e fabricam o xixi. E essa tripinha diferente, o que era? Pâncreas. Sem ele você fica diabético, o tio falou. E diabético era aquele cara, coitado, que não podia comer doce. E esse daqui, é esse o coração?

- Aqui tão juntos o fígado e o coração. Pronto. O coração, vocês sabem, ele bombeia o sangue, faz o sangue circular por todo o corpo. E o pulmão... Cadê o pulmão, mãe?
- Tá ali, na tigela que é pros cachorros.
- O pulmão – ele erguia no ar as duas carninhas róseas, estranhas – o pulmão traz o ar e o oxigênio pro sangue. 
- Eu nem sabia que galinha tinha pulmão.
- Credo.
- Deixa eu ver?
- Dá pra comer o pulmão, pai?
- Não sei. Mãe, a gente come o pulmão?
- A gente sempre deu pros cachorros, filho.

Val se meteu na conversa.

- Dão pros cachorros porque vocês nunca passaram necessidade, isso daí temperadinho na farofa cê come com gosto, nem sabe de que bicho veio.
- Pode ser até de rato, né, Val? Era o Léo agora.
- Ô espírito de porco, esse moleque. Vai pra sala, vai! Teu pai não te mandou ir pra sala?
- Mandou todo mundo, vó, ninguém foi...
- Olha a moela! O tio tá abrindo a moela!

Encontraram pedrinhas do jardim, uma miçanga de pérola de um rosário velho da avó, que há muito se partira, e a rodinha do carrinho do Rodrigo, perdida três meses antes. Quem comia a moela era a Marta, filha mais velha da avó, que não estava. Ia pra farofa, então. O pescoço era da própria avó, e os pés, que ela gostava de chupar os ossinhos. O fígado ninguém nunca queria. Mas o coração era o prêmio.

- Eu quero!
- Mas eu nunca comi, é minha vez!
- Primeiro os mais velhos, é meu – esse era o Léo, claro.
- Não é de ninguém, se for ficar brigando a Val vai picar e pôr na farofa.
- AH, VÓ!

Clara sempre comia uma das bandas aristocráticas do peito – que ninguém na família gostava muito, a bem da verdade. Uma das asas era da mãe de Clara e que ninguém se atrevesse a pegar – uma coxa do avô, outra do pai, a outra asa do tio, e e o tio mais novo adorava a sobrecoxa carnuda. As crianças batalhavam pelas mini-coxas das asas, e quem perdia comia do peito, o insosso músculo desenvolvido demais para uma ave que não voava. Lá fora, os cães se fartavam com a barrigada da ave, o sangue coagulado, até mesmo o pulmão. E esperavam, ansiosos, pelo banquete de ossos que viria.
E na cozinha escura, por sobre um pratinho de sobremesa de farofa dourada, repousava, em silêncio, o coração. Que ia sendo sorvido devagar, pedacinho a pedacinho por Valéria, a empregada, seu prêmio merecido.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Paulista


Madrugada. É quando a maior parte das luzes das casas e prédios de escritórios se apagam que a gente vê melhor. Da esquina da minha rua, na beira de uma ladeira que desce, em algum ponto entre o sul e o leste, a gente vê, perfeita e claramente, as luzes da Paulista.
As torres de rádio se iluminam, coloridas, formando uma linha reta quase flutuante sobre os edifícios escurecidos onde as decisões da vida e da morte são tomadas. Ao pé da Acrópole, as luzes da cidade se estendem, se espalham, rumando todas, por caminhos mais ou menos tortuosos, para a Avenida. Logo abaixo de mim (mas a muitos metros, quilômetros de distância), um automóvel solitário segue como uma formiguinha, por entre as galerias tortuosas, brilhantes de luzes amarelas. As luzes do meu bairro também seguem nessa direção, como todos os caminhos que levam à mesma Roma. Os ônibus, os carros, os trens do metrô embaixo da terra, todos parecem vir e voltar dos lugares vários que dizem nos letreiros, mas não se engane: é para lá que eles vão.
Cada luzinha de cada janela de cada quarto, uma pessoa ou mais. Cada poste aceso é uma casa, duas, várias famílias. Cada estrela opaca do chão é uma ruma de gente, e todos, sem exceção, mais dia menos dia, andarão ao rumo da nossa Roma, da nossa Acrópole, da Avenida que guarda o nome de todos nós.
O céu começa a clarear. As estrelas opacas do chão vão se apagando, perdendo o brilho no brilho da estrela maior que desponta do leste. A linha perfeita de torres da Avenida vai se misturando aos pixels coloridos, que formam, de longe, o mosaico cinza da nossa cidade.
As pessoas acordam e tomam, cada uma, seu próprio rumo. De ônibus, de carro, nos trens do metrô embaixo da terra, todos parecem vir e voltar dos lugares vários que dizem nos letreiros. Nem todos sabem, nem todos percebem, nem todos vão, declaradamente, para lá, mas não se engane: todos, por caminhos mais ou menos tortuosos, mas sem exceção, todos vão em direção à Avenida.
Aqueles que tomam as decisões da vida e da morte em nome de todos nós estão ali, sob a coroa das torres de rádio, protegidos dentro dos edifícios espelhados por sobre as sete colinas de Roma, que são uma só, que é o próprio Olimpo. São muitos, têm seguranças, têm vidros blindados e saguões de mármore com circuito interno de vídeo, têm recepcionistas bonitas e educadas que não deixarão ninguém subir com más intenções. São muitos e têm os raios de Zeus à sua disposição.
Mas a memória da madrugada recente nos lembra que cada janelinha de cada quarto em cada prédio e casa ao pé da colina tem uma centelha do fogo de Prometeu em si, e que cada pequeno lume vai em não outra direção que não a da nossa Avenida. A Avenida que é nossa, que guarda em seu nome o próprio nome de todos nós. Eles são muitos, é verdade, e estão entre as muralhas de vidro espelhado guardados pelos raios de Zeus. São muitos – mas nós somos todos.