quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Obsoleto


 As chaves do armário da sala de vídeo eram guardadas com zelo por nosso velho, nosso querido professor. A gente sempre soube sobre o nosso querido professor. Aquela ínfima caída não intencional da voz no fim das frases, a insistência em não olhar – em deliberadamente desviar o olhar das pernas e bundas dos rapazes na quadra do colégio, essas pequenas coisas que a gente que tem olhos para ver sempre acaba enxergando. Quando soubemos que ele morava com a mãe – um homem solteiro e de meia idade que ainda mora só com a mãe – todos nós demos a nossa risadinha secreta. E quando um de nós o viu – e estava certo, era ele – descendo a Vieira rumo ao Arouche, vestido com roupas demais para o calor e se esgueirando nas sombras, todos nós já tínhamos certeza. São coisas pequenas demais para provar alguma coisa por si, mas o conjunto não nos escapava, não a nós que sabíamos ver. Boi preto, eles dizem, conhece boi preto.
No dia em que arrombaram o armário da sala de vídeo, o nosso querido professor estava inconsolável. Derrubaram ou jogaram a nossa velha TV de tubo, os cacos da tela espalhados no chão, sem conserto. Levaram o DVD chinês que sempre dava problema, que deve valer, com sorte, umas dez pedras no mercado negro local. Nem olharam, nem tocaram, no nosso obsoleto videocassete
Não era o prejuízo, a gente dava um jeito, a APM, uma festa, uma rifa, a gente sempre dava um jeito. Não era a confiança nele, a fechadura foi arrombada, não se tinha nem o que dizer. Era a invasão, que era como se fosse uma invasão ao seu próprio mundo – ao seu espaço, à sua privacidade, àquilo tudo que ele guardava com tanto zelo. Um mundo obsoleto e que ali, dentro do nosso mundo, talvez não valesse tanto. Mas era o seu mundo, e não cabia à gente julgar.
Houve um tempo em que um videocassete valia muito.
Houve um tempo em que um segredo desses acabava com a vida de uma pessoa. Dependendo de onde for, ainda acaba.
Tudo o que queríamos era abraçar o nosso velho, nosso querido professor e dizer que estava tudo bem, que a gente dava um jeito, a gente sempre dá um jeito. Mas não podíamos, jamais poderíamos, não sem que ele antes nos desse a chave.

Um comentário:

  1. Sabia que tanta criatividade só podia estar aliada a grande sensibilidade.

    ResponderExcluir