Só uns botões, um retrós de linha de costura, um novelo de bordar.
Mais nada? Não, não, mais nada. E pra menina? Ela não faz anos
agora semana que vem?
A menina olhava, fixa, a boneca prostrada na prateleira. Enorme.
Imóvel. Escura, da cor do papelão natural, duro, moldado na forma
do corpo de menininha. Os olhos pintados de cílios curvados,
longilíneos, oblíquos, a boca pequena e vermelha de botão de rosa.
Um vestidinho muito simples, de chita de estampa miúda.
– A mãe não tem dinheiro, filha.
– Só estava olhando.
– Não quer levar mesmo? A gente faz pro mês que vem, não tem
problema.
– Não posso, moça.
Não podia. Faltava tudo naquela casa. O que o pai ganhava de meeiro
no café vinha uma vez por ano, pagava a conta do caderninho da venda
e só. Os bordados da mãe seguravam as despesas que não se podia
fiar durante o resto do ano. O pão, pagavam à vista, porque o
português roubava na conta. O leite, o moço tinha que cobrar todo
mês, coitado, não era culpa dele. O turco dos armarinhos, sovina, não fiava de jeito nenhum, mas a mocinha que atendia era a
nora dele, que cuidava da lojinha enquanto o turco e seu filho
viajavam mascateando. Ela deixava às vezes passar uma ou outra conta
pequena, tinha dó, mas não podia fazer fiado nas contas grandes. A
mãe às vezes tinha que juntar dinheiro por vários meses quando
precisava de uma peça de fazenda.
– Pode escolher um decalque do grande, meu anjo. Presente meu.
A moça estendeu o catálogo dos decalques, enorme na mão da pequena. Era tudo muito lindo e colorido, os amores-perfeitos, as
margaridas, as rosas vermelhas, repolhudas. Enquanto a menina olhava,
fascinada, a mãe perguntou em voz bem baixa o preço da boneca. Era
tanto. Mas pra você fazemos por um quanto. Ainda era muito.
Voltaram para casa com seus botões, novelos e retrós, e o decalque
de um buquê de flores de todas as cores do mundo. A menina ainda
pensava na boneca, a mãe pensava no jantar, em batatas cozidas e
repolho refogado e rosas repolhudas vermelhas e o vermelho da boca da
boneca de papelão na prateleira da loja. A menina, sentada no
tamborete perto da porta, olhava para fora, pensava longe. A mãe,
descascando batatas na mesa, a chamou. Separou uma batata meio verde
do saco, espetou quatro palitos pra fazer as patas, dois quebrados ao
meio fazendo os chifres, e entregou para a pequena.
– Tá vendo o boizinho? Toma, vai brincar com ele lá fora.
O tempo se consumia de outra maneira, naquele tempo. Era muito o
tempo que se gastava deixando o feijão de molho, a roupa quarando, a
roça crescendo, o café brotando. O tempo de bordar, à mão, um
enxoval. Mocinha séria bordava o próprio, no tempo certo, antes
mesmo de ter noivo, mas as moças que não queriam ver seus dedos
calejarem na agulha o encomendavam. Custava caro pra quem pagava, era
dinheirinho pouco pra quem recebia; o tempo escoava nos dedos, no
vaivém das agulhas, um ponto por vez, um dia por vez. A menina ia
fazer anos na semana que vem.
A gente sabia mais do tempo, naquele tempo. O tempo era claro em
julho, garoava em março, em janeiro, chovia. Os horizontes amplos
deixavam ver a chuva à distância, e quase sempre dava tempo de
tirar a roupa do varal antes que fosse tarde. A menina ajudava,
segurando as roupas que a mãe recolhia, o cestinho dos pregadores.
As gotas vinham, uma por vez, e no começo nem pintavam o pátio,
porque a terra seca os bebia, gulosa. Mas elas eram insistentes, as
gotas, e chamavam suas camaradas para a luta, e o pintalgado da terra
molhada se tornava rápido a lama uniforme, macia, fértil. O pai
aparecia à distância, pisando com cuidado no barro que lhe sujava
as botas. Tinha a enxada ao ombro e seu chapéu pingava. Sentiu o
cheiro da comida da porta. Sorriu para a menina, sorriu para a
mulher.
Os dias gotejavam, um por vez, a semana fluía, líquida. Era o
aniversário da menina. Não podiam fazer muita coisa, mas podiam
matar uma galinha e fazer um bolo para a sobremesa. A cor bonita do
frango cozido no colorau, a couve bem passada no alho, o arroz e o
feijão cheirosos no prato. O bolo dourado de massa fofa e branquinha
por dentro, doce como o sol de manhã cedo.
– Tem uma surpresa para você, a mãe disse. No quarto. Na sua
cama.
Um interruptor pendurado no teto acendia a lâmpada elétrica.
Paredes de tijolo caiado, um guarda-roupa sólido de madeira escura,
a cama de molas cheia de decalcomanias floridas forrada com uma
colcha caprichosa de retalhos coloridos. Por sob a colcha, um volume.
Foi ver. Era a boneca.
– Eu posso brincar com ela?
– Claro. É sua.
O primeiro olhar foi de espanto, fluindo através da dúvida e enfim
felicidade, a mais ensolarada felicidade. Abraçou a boneca como quem
se agarra à própria vida, abraçou a mãe e o pai, agradecida. Ele
passou a mão nos cabelos da pequena e perguntou, baixinho:
– Foi muito caro?
– Mais ou menos. A moça fez um preço bom. Semana que vem vou
receber de um enxoval e acerto.
Era linda, linda, linda, linda, linda como o céu sem nuvens. Não
tinha pele clara nem cabelo como as bonecas de louça das meninas
ricas, mas era grande pra abraçar, e sua, tão sua. Dormiu com ela,
a sua própria menina, dormiu sonhando com sua filha, sua
companheirinha, que em sonho podia mexer os braços e abraçá-la
também.
Comeu pouco no café e no almoço, oferecendo um pouquinho de tudo à
boneca e fingindo que ela comia, tem que comer tudo pra ficar forte,
grande, bonita. Mostrou para as primas que só tinham bonequinhas de
trapo de olhos de botão; seus olhos, os das meninas, dardejavam de
inveja. Mostrou às galinhas, ao cachorro, à ameixeira do quintal.
Brincou o dia todo no pátio de terra, fazendo a filha dormir,
acordar, comer, arrotar.
O vento mudou de lado, mais forte, balançando as cortinas. A mãe
chamou para ajudar a recolher a roupa. A menina deitou a boneca no
berço, que era a raiz da árvore, e foi.
E a chuva veio. As gotas gordas pintalgavam o pátio, a água se
juntava à terra, formando lama. O pai vinha à distância, as botas
sujas, chapéu pingando. Sentiu o cheiro da comida da porta. Sorriu
para a menina, sorriu para a mulher.
Acordou no primeiro raio de sol da fresta da janela no dia seguinte.
A boneca! Esquecera completamente dela. Correu à raiz da árvore e
encontrou, molhado ainda, o vestidinho de chita, de estampa miúda,
sujo de lama. De lama e dos restos do papelão, molhado e desfeito,
dilacerado pelo abraço da chuva.
A mãe, quando viu, gritou. Era tão caro, a gente faz tanto
sacrifício, e nem estava pago ainda. Ameaçou bater. O pai a
acalmou. A menina já estava sofrendo o castigo dela, chorando ao pé
da árvore, um choro sentido, convulso, choro de quem perde um filho.
– Eu nunca mais te compro nada, ouviu bem? Nunca mais.
E não comprou.
Passou muito tempo. A mãe se havia finado, de uma pneumonia, de
pegar friagem recolhendo roupa na chuva um dia, fazia mais de um ano,
mas a menina era triste sempre. Faz falta um irmão, pensava a tia.
Achou um presente para ela: uma boneca de louça, dada por sua
patroa, que as filhas não queriam mais. A cara meio trincada e
descascada, mas tão bonita no seu vestido de cambraia branca. A
menina tentou abraçar a sua boneca nova. Era pequena demais, e seu
rosto era frio.