"Escreveu, não leu, o pau comeu"
- Ovídio
Primeira regra da Confraria dos Escritores que Não Escrevem: jamais escrever sobre a Confraria dos Escritores que Não Escrevem. Segunda regra da Confraria dos Escritores que Não Escrevem: jamais escrever, ponto, parágrafo.
Evidente que estas regras não estavam escritas em pedra, ou mesmo escritas, fosse qual fosse o suporte (jamais escrever, lembrem-se). Na verdade, sequer se falava sobre isso. Mas era uma coisa a que todos pareciam obedecer, e tão cegamente, que ficava como regra tácita. Cada um de nós tinha uma desculpa, é claro. O velho juiz poeta, por exemplo, muito prolífico em seu tempo. Um ou dois livros publicados, até, mas as musas o tinham abandonado, dizia. Tinha a mãe dos trigêmeos – tratamento pra fertilidade, né? – , dona de um cargo importante numa multinacional. Ela mal tinha tempo para as nossas reuniões, que dirá para escrever. A minha desculpa era o famigerado bloqueio criativo. Eu tinha todas as idéias do mundo, quando era mais nova, mas a fonte parecia ter secado. Achei que o convívio com outras mentes criadoras pudesse ajudar de alguma maneira, e talvez até ajudasse, se as tais mentes criassem mesmo alguma coisa.
Éramos um bando bem diverso, ali. Tinha, por exemplo, aquele sujeito que prestava concursos porque Machado de Assis e Drummond, entre outros luminares da nossa literatura, eram funcionários públicos; assim que eu passar, dizia ele, começo a escrever. Tinha também aquela senhora da alta sociedade que não conseguia fazer nada, escrever inclusive, por causa de uma estranha doença, de diagnóstico impreciso, chamada fibromialgia. Pela descrição que ela dava, eu fico imaginando que devia ser mais ou menos como a escusa de consciência, garantida pela constituição. Não posso servir o exército, senhor, tenho fibromialgia – bota aí, escrivão, a religião do garoto não permite.
Cabe mencionar, por que talvez não tenha ficado claro, que nome dessa nossa ilustre plêiade era só Confraria dos Escritores. Ninguém ali admitiria o “que não escrevem”, nós só não estávamos escrevendo “no momento”. Assim que eu tiver tempo, diziam uns, quando bater a inspiração, diziam outros, e íamos tocando.
Até que uma novata começa a frequentar o grupo. Ela se apresentou como Maria Eugênia Mendes Faria, dizia que era contadora, mas que sua grande paixão era escrever. Desde o primeiro dia, me parecia estranhamente familiar; uma bela tarde, do nada, lembrei de onde a conhecia: uma noite de autógrafos. A desgraçada era a autora, eu lembro, lembro bem, só não lembrava do que. Joguei no google: nada. Tentei combinações, Maria Mendes, Eugênia Faria, e nada ainda. Puxei pela memória: eu não ia a tantos lançamentos de livro assim, vamos ver. Botei lá no campo de texto: dia tal, livraria tal, lançamento. Logo no primeiro resultado, uma nota num portal de notícias famoso: lançamento do livro X, da autora Pétala Rosa. Tinha até uma foto da mulher, mas de cabelos compridos e tingidos de loiro. Eu bem que tinha estranhado aquele cabelo curto e preto que ela usava na confraria, mas é claro que era peruca.
Na reunião seguinte, eu a chamei de canto: eu sei quem você é, eu vi o que você fez. Ela admitiu, mas implorou que eu não dissesse nada. Queria continuar anônima, mas se eu quisesse, a gente podia conversar ali no café da esquina.
- Caramba, Pétala Rosa, um dos grandes nomes do nosso tempo, aqui, entre nós. Sabe que eu sempre achei muito bonito o seu pseudônimo.
- Não é pseudônimo. Meus pais eram hippies. Maria Eugênia é que é inventado.
- Mas que diabo você, uma escritora de verdade, faz aqui nessa confraria de frustrados?
- Eu sinto falta de convívio social, sabe? Essa vida de escrever em tempo integral, trabalhar em casa, isso me mata de tédio. Com vocês eu pelo menos tenho assunto, vocês são pessoas que leem, que têm cultura, né?
Era verdade. Na real, o nosso grupo se parecia muito mais com o Clube de Leitura de Jane Austen do que com um clube de escritores. Como era desconfortável ficar falando o tempo todo dos livros que não escrevíamos, falávamos dos livros que estávamos lendo. Obviamente, não só da Jane Austen.
- Sabe, eu até fazia parte de um Clube de Escritores que escrevem, mas estava meio decepcionada com o pessoal de lá. Por isso vim para cá.
- Um clube? Tipo a nossa confraria?
- Mais ou menos. Na verdade, quando o descreveram para mim, eu disse, empolgada: tipo uma confraria, né? Me responderam que não, que lá a gente não faz bolo, só escreve. Eu não deveria ter ignorado esse sinal de alerta.
O problema, ela dizia, é que os membros desse dito clube escreviam bastante, mas não eram, por assim dizer, grandes leitores. Mas o fato é que entre eles havia até alguns autores publicados, a maioria por conta própria, e mesmo entre os não-publicados, eram todos muito prolíficos. Implorei para que ela me levasse lá. Precisava falar com gente que escreve, que produz, que faz alguma coisa. Não aguentava mais os procrastinadores da Confraria.
- Mas olha, a maioria são adolescentes escritores de livro de vampiro. E péssimos poetas. E gente muito chata escrevendo autobiografias.
- Não importa. Me leva, pelo amor de deus.
Levou. A reunião desse mês era numa bela casa num bairro fino, residência de um dos membros, o advogado que rimava amor com dor. Tinha vinhozinhos e comidinhas muito chiques, bem mais que os sanduíches de metro e os petit-fours de padaria das nossas reuniões. Houve uma pequena introdução, fui apresentada, e depois as pessoas começaram a conversar em pequenos grupos. Puxei conversa em um.
- Estou escrevendo uma trilogia de três livros (juro por deus que ele disse assim mesmo). Os títulos vão se chamar (ele disse que os títulos vão se chamar, a sério) Céu Claro, Tempo Nublado e Pancadas de Chuva Torrencial no Decorrer do Período.
- Bacana. É sobre meteorologia?
- Não (fez cara de irritado) é sobre vampiros.
Não ia desistir fácil. Tentei a garotinha pálida.
- Escrevi um romance chamado Lua de Cristal.
- Legal, é sobre a Xuxa?
- Não (irritada), é sobre vampiros.
Eugênia-Pétala não estava exagerando.
- Meu livro vai se chamar Entrevista com o Ornitólogo.
- Deixa eu adivinhar. Sobre vampiros?
- Claro que não (irritado, irritadíssimo). É sobre um ornitólogo (revoltado até). É uma autobiografia (achei que eu fosse apanhar).
Pétala-Eugênia estava conversando com alguém em um canto. Olhando bem, conversando não, uma vez que só o outro falava. A pobre havia sido sequestrada pelo advogado dos poemas de amor e respondia com sorrisos amarelos e arrãs. Olhava em volta desesperada, à procura de alguém que a resgatasse da teia em que a enredaram. Talvez fosse ingratidão da minha parte, mas eu também não ia correr o risco de ser abduzida pela conversinha mole do causídico bardo. Recuei discreta até que minhas costas encostassem na parede, e fui me achegando à porta, de mansinho. Saí. Correndo.
Chego em casa, ligo o computador, abro o editor de texto, decidida a quebrar a primeira regra da Confraria. Escrevo essas linhas como exercício; já que não me ocorrem histórias para contar, é melhor então que eu conte as histórias que me ocorrem, pelo menos mantenho os dedos em movimento. Enquanto isso, procuro na internet alguma Confraria de Escritores Que Escrevem e Leem: deve existir, ou devia. Talvez seja o caso de fundar uma.