terça-feira, 12 de outubro de 2010

Chuva


 Chuva

É janeiro. Mas pode ser fevereiro, março, até dezembro. O sol das quatro da tarde parece tão quente quanto o do meio dia, a luz é intensa, as sombras são duras. Mesmo o ar é denso, antes de começar a correr.
O vento sopra; vêm nuvens. Em muito pouco tempo, a ríspida luz da tarde suaviza, enfraquece. Pode ser que mesmo as células fotossensíveis dos postes de luz os façam acender. Antes que o asfalto tenha tempo de se molhar, brotarão os vendedores de guarda-chuva em cada esquina, nas saídas do metrô, como fungos na umidade.
As primeiras gotas gordas logo se tornam um fluxo contínuo, severo, ruidoso. As pessoas correm a se abrigar nas marquises, toldos, lojas, botequins. O vento faz a chuva quase horizontal; mesmo usando sombrinha, poucos se arriscam. A enxurrada já preencheu toda a sarjeta e começa a engolir a calçada. Há quem suba nos bancos dos pontos de ônibus para se proteger; os que ficaram no chão já sentem as meias encharcando como esponjas. Pragueja-se.
Andressa cobre os cabelos com um saco de supermercado e jura que é a última vez. Assim que receber, marca a progressiva. Everton, do escritório sem janelas, nem percebe que chove e que não vai poder sair para fumar assim que acabar esse relatório.
Amizades se formam sob a chuva; o primeiro assunto será sempre a própria, mas outros vêm. Marluce e Beto, sob o mesmo toldo, começariam com o inevitável, que chuva, né?, e descobririam que torcem para o mesmo time, gostam das mesmas músicas, e que suas famílias vêm mais ou menos da mesma região do interior. Não têm como saber ainda que irão morar juntos dali a um ano e meio, ela grávida de um menino.
Acaba o horário de expediente; a chuva, não. Pontos de alagamento se proliferam, férteis, o rio enche a olhos vistos. Os ônibus, com as janelas fechadas e turvas, estão repletos. Dentro, o ar é quente, úmido, pantanoso. Isabel nem sabe se chegará à tempo para a prova na faculdade, mas tenta estudar; o barulho do celular de André não deixa. Os alto-falantes pulsam num pancadão primal, os golpes da percussão entremeados por palavras que fariam a mãe lhe dar um tapa na boca.
A Marginal segue repleta de estrelas, brancas de um lado, vermelhas do outro. Pouco se movem, mas como buzinam. O rio, descorado e pestilento à luz do dia, torna-se, à noite, um largo espelho negro, refletindo as fileiras ordenadas de sóis amarelos, tremeluzentes, dos postes que iluminam.
Elisa tem frio e uma cama vazia. Mira a janela dali do nono andar: tudo escuro demais, feio demais, e os carros parados teriam que contemplar o seu triste espetáculo por tempo demais. Desse jeito, não. Pelo menos, não hoje.
Ainda bem. O trânsito nunca mais ia andar.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Em defesa de Medeia

O amor, este degenerado, responsável por umas tantas tragédias na literatura. É por amor que Otelo mata Desdêmona, por amor Romeu e Julieta suicidam-se. Na vida real, foi por amor que a Fera da Penha matou a filhinha de seu amante, inspirada talvez em Medeia, que por amor matou os próprios filhos, filhos do filho da puta que a abandonou. Eis o amor, meus amigos, essa flor roxa.

Jamais saberemos se a doce Bianca lembrava-se destes ancestrais crimes quando cometeu o seu. O que sabemos com certeza é que o gatilho que disparou a vingança foi um telefonema de seu ex.

- Bia? Tudo bem? Escuta, eu e a Regina, nós vamos viajar agora no fim de semana, e a gente tava pensando, será que você podia vir aqui tomar conta do aquário?

Tomar conta do aquário? Do aquario que ela, Bianca, tinha montado, que só ficou com esse filho da puta quando se separaram por que ela não tinha espaço na casa da mamãe? E é sexta-feira, esse traste acha que ela não tinha mais o que fazer do seu fim de semana do que ficar de babá de peixe?

- Claro.

- Eu sabia que podia contar contigo, linda. – A mulher ao lado dele dardeja com o olhar – Falei pra Regina que você adorava cuidar do aquário quando a gente... – “A gente?” Novo projétil – Bom, falei pra Regina que você adorava cuidar do aquário – “Deixa eu falar com ela, Roberto.” – Ó, vou te passar pra Regina! Bei-abraço!

- Alô, Bianca? Tudo bem? Escuta, você sabe, né? Tem que botar comida duas vezes por dia, às oito da manhã e às oito da noite, não pode atrasar. E o termostato, tem que ficar de olho no termômetro por que às vezes o termostato dá pau. A temperatura tem que ficar naquela faixinha verde, nem mais nem menos, viu? E a comida é pra dar só uma medida por vez, você sabe como é kinguio, os bichos comem até morrer. E mesmo que eles deixem alguma coisa, sobra, cria fungo, morre tudo. Tá anotando?

Anotando? Ela havia tomado conta dessa porra desse aquário – do SEU aquário – por um ano antes dessa cadela aparecer, ela ainda acha que pode ensinar missa ao vigário? Quem que essa vaca pensa que é?

- Claro

- Ó, a gente já tá saindo, vamos deixar os bichinhos alimentados, você pode aparecer amanhã de manhã. Tchau.

Esse safado tem a coragem, o desplante de pedir favor depois de tudo o que fez, e além disso essa vagabunda ainda a trata como se Bia fosse sua empregada? Não iria. Os peixinhos que morram secos.
Mas foi. No último minuto, dez pras oito, saiu de casa e foi.

O apartamento, o lindo apartamentinho de dois quartos que eles haviam dividido por um ano, estava uma zona. Roupas pelo chão imundo, poeira nos móveis, os vidros em petição de miséria. Mas nem pra fazer uma faxina essa mulher servia? A pia cheia de louça, um horror. O aquário tinha os vidros turvos, há quanto tempo essa gente não limpa? Acham que é só trocar a água e dar comida que os peixinhos se viram?

Ah, mas os peixinhos. Dava um calorzinho no coração só de olhar. Fora Bianca quem teve primeiro a idéia de montar um aquário. Em princípio, tudo o que ela queria era um parzinho de peixes dourados, adejando gordos e felizes num globo de vidro. Roberto, com suas manias de grandeza, mandara construir um aquário enorme, pra caber sob medida num vão aberto a marretadas entre a parede da sala e a do escritório. Tinham quase todas as variedades de kinguios: bolhas, telescópios, caudas de véu, coisa linda de ver. Podiam lá ter seus desentendimentos, mas se entendiam cuidando dos peixinhos. Mas agora, essa zona! Olha que nojo, esse aquário, não limpa e depois reclama se dá fungo. Mas Bianca é que não ia limpar, não depois daquelazinha tê-la tratado daquele jeito. Deu comida para os bichinhos e saiu.

Ia ao cinema no sábado, mas teve que cancelar. Virar babá de peixe, que fim de carreira. Abriu a porta e não conseguiu deixar de se surpreender, de novo: aquela sujeira, aquela bagunça, no seu lindo apartamentinho era tão absurda, tão fora de contexto que ela havia até esquecido. Decidiu que daria um jeito naquilo, não por Roberto e Regina, aqueles trastes, mas em respeito ao lugar onde fora tão feliz. E aos peixinhos. Eles não mereciam viver no meio daquela zona. Olha o vidro desse aquário, meu deus!
Os peixinhos. Perderia seu sábado à noite por causa deles, mas poxa, eram tão bonitinhos. Se bem que... olha essa caras de bobo. Né? Ali, nadando, os olhões esbugalhados, a boca abrindo, fechando. Abrindo, fechando. O telescópio preto, por exemplo. Não era a cara do Roberto? A mesma expressão aparvalhada, os mesmos olhos de peixe – perdão – morto. Bundão. Olha o cauda-véu dourado, então. Tinha a exata cara de sonso da Regina, da sirigaita da Regina, aquele cabelo ruim alisado descolorido de blondor, amarelo ovo. A mesma cor das escamas, igualzinho. Como ela não tinha reparado antes?

Bianca mergulhou a mão no aquário e a deixou ali, imóvel, por alguns minutos. Primeiro eles se assustaram, depois vieram, curiosos, devagar. Pareciam especialmente interessados em suas unhas pintadas de rosa. Peixinho enxerga cor ou só vê preto e branco? Deve enxergar. Ou por que eles seriam tão coloridos?
De um golpe, agarrou o bicho mais próximo. Tirou da água. Era o telescópio preto, se debatendo viscosamente na concha de sua mão. Aquilo lhe deu um estranho prazer, talvez o poder de ter uma vida nas mãos. Da maneira mais literal possível. Deu uns passos meio sem saber onde ia; parou à porta do banheiro. Entrou (que cheiro), abriu a tampa da privada (que imundície), hesitou. Voltou em passo rápido e derramou o peixinho de volta no aquário. Bobagem.

Dia seguinte, manhã. Roberto e a outra lá voltariam à noite, e ela já tinha decidido dar um jeito no lugar. Trouxe produtos de limpeza de casa, nem isso aqueles porcos tinham ali. Tirou pó dos móveis, recolheu as roupas do chão, varreu, passou pano. Deu jeito no banheiro, meu deus, que nojo daquele banheiro. Lavou a louça, estava até criando limo na pia. Já ia deixando um bilhetinho pregado no aquário: limpei pra vocês, Bia, coraçãozinho. Mas como aquele vidro estava sujo, meu deus. Muito sujo. Por dentro.

Os dois chegariam algumas horas mais tarde. Roberto ficaria mudo, Regina soltaria um grito. Encontrariam ali as armas do crime, detergente e esponja, e as vítimas, boiando no aquário em decúbito dorsal.

sábado, 2 de outubro de 2010

A Estranha Confraria dos Escritores que Não Escrevem

"Escreveu, não leu, o pau comeu"
- Ovídio

Primeira regra da Confraria dos Escritores que Não Escrevem: jamais escrever sobre a Confraria dos Escritores que Não Escrevem. Segunda regra da Confraria dos Escritores que Não Escrevem: jamais escrever, ponto, parágrafo.

Evidente que estas regras não estavam escritas em pedra, ou mesmo escritas, fosse qual fosse o suporte (jamais escrever, lembrem-se). Na verdade, sequer se falava sobre isso. Mas era uma coisa a que todos pareciam obedecer, e tão cegamente, que ficava como regra tácita. Cada um de nós tinha uma desculpa, é claro. O velho juiz poeta, por exemplo, muito prolífico em seu tempo. Um ou dois livros publicados, até, mas as musas o tinham abandonado, dizia. Tinha a mãe dos trigêmeos – tratamento pra fertilidade, né? – , dona de um cargo importante numa multinacional. Ela mal tinha tempo para as nossas reuniões, que dirá para escrever. A minha desculpa era o famigerado bloqueio criativo. Eu tinha todas as idéias do mundo, quando era mais nova, mas a fonte parecia ter secado. Achei que o convívio com outras mentes criadoras pudesse ajudar de alguma maneira, e talvez até ajudasse, se as tais mentes criassem mesmo alguma coisa.

Éramos um bando bem diverso, ali. Tinha, por exemplo, aquele sujeito que prestava concursos porque Machado de Assis e Drummond, entre outros luminares da nossa literatura, eram funcionários públicos; assim que eu passar, dizia ele, começo a escrever. Tinha também aquela senhora da alta sociedade que não conseguia fazer nada, escrever inclusive, por causa de uma estranha doença, de diagnóstico impreciso, chamada fibromialgia. Pela descrição que ela dava, eu fico imaginando que devia ser mais ou menos como a escusa de consciência, garantida pela constituição. Não posso servir o exército, senhor, tenho fibromialgia – bota aí, escrivão, a religião do garoto não permite.

Cabe mencionar, por que talvez não tenha ficado claro, que nome dessa nossa ilustre plêiade era só Confraria dos Escritores. Ninguém ali admitiria o “que não escrevem”, nós só não estávamos escrevendo “no momento”. Assim que eu tiver tempo, diziam uns, quando bater a inspiração, diziam outros, e íamos tocando.

Até que uma novata começa a frequentar o grupo. Ela se apresentou como Maria Eugênia Mendes Faria, dizia que era contadora, mas que sua grande paixão era escrever. Desde o primeiro dia, me parecia estranhamente familiar; uma bela tarde, do nada, lembrei de onde a conhecia: uma noite de autógrafos. A desgraçada era a autora, eu lembro, lembro bem, só não lembrava do que. Joguei no google: nada. Tentei combinações, Maria Mendes, Eugênia Faria, e nada ainda. Puxei pela memória: eu não ia a tantos lançamentos de livro assim, vamos ver. Botei lá no campo de texto: dia tal, livraria tal, lançamento. Logo no primeiro resultado, uma nota num portal de notícias famoso: lançamento do livro X, da autora Pétala Rosa. Tinha até uma foto da mulher, mas de cabelos compridos e tingidos de loiro. Eu bem que tinha estranhado aquele cabelo curto e preto que ela usava na confraria, mas é claro que era peruca.

Na reunião seguinte, eu a chamei de canto: eu sei quem você é, eu vi o que você fez. Ela admitiu, mas implorou que eu não dissesse nada. Queria continuar anônima, mas se eu quisesse, a gente podia conversar ali no café da esquina.

- Caramba, Pétala Rosa, um dos grandes nomes do nosso tempo, aqui, entre nós. Sabe que eu sempre achei muito bonito o seu pseudônimo.
- Não é pseudônimo. Meus pais eram hippies. Maria Eugênia é que é inventado.
- Mas que diabo você, uma escritora de verdade, faz aqui nessa confraria de frustrados?
- Eu sinto falta de convívio social, sabe? Essa vida de escrever em tempo integral, trabalhar em casa, isso me mata de tédio. Com vocês eu pelo menos tenho assunto, vocês são pessoas que leem, que têm cultura, né?

Era verdade. Na real, o nosso grupo se parecia muito mais com o Clube de Leitura de Jane Austen do que com um clube de escritores. Como era desconfortável ficar falando o tempo todo dos livros que não escrevíamos, falávamos dos livros que estávamos lendo. Obviamente, não só da Jane Austen.

- Sabe, eu até fazia parte de um Clube de Escritores que escrevem, mas estava meio decepcionada com o pessoal de lá. Por isso vim para cá.
- Um clube? Tipo a nossa confraria?
- Mais ou menos. Na verdade, quando o descreveram para mim, eu disse, empolgada: tipo uma confraria, né? Me responderam que não, que lá a gente não faz bolo, só escreve. Eu não deveria ter ignorado esse sinal de alerta.

O problema, ela dizia, é que os membros desse dito clube escreviam bastante, mas não eram, por assim dizer, grandes leitores. Mas o fato é que entre eles havia até alguns autores publicados, a maioria por conta própria, e mesmo entre os não-publicados, eram todos muito prolíficos. Implorei para que ela me levasse lá. Precisava falar com gente que escreve, que produz, que faz alguma coisa. Não aguentava mais os procrastinadores da Confraria.

- Mas olha, a maioria são adolescentes escritores de livro de vampiro. E péssimos poetas. E gente muito chata escrevendo autobiografias.
- Não importa. Me leva, pelo amor de deus.

Levou. A reunião desse mês era numa bela casa num bairro fino, residência de um dos membros, o advogado que rimava amor com dor. Tinha vinhozinhos e comidinhas muito chiques, bem mais que os sanduíches de metro e os petit-fours de padaria das nossas reuniões. Houve uma pequena introdução, fui apresentada, e depois as pessoas começaram a conversar em pequenos grupos. Puxei conversa em um.

- Estou escrevendo uma trilogia de três livros (juro por deus que ele disse assim mesmo). Os títulos vão se chamar (ele disse que os títulos vão se chamar, a sério) Céu Claro, Tempo Nublado e Pancadas de Chuva Torrencial no Decorrer do Período.
- Bacana. É sobre meteorologia?
- Não (fez cara de irritado) é sobre vampiros.

Não ia desistir fácil. Tentei a garotinha pálida.

- Escrevi um romance chamado Lua de Cristal.
- Legal, é sobre a Xuxa?
- Não (irritada), é sobre vampiros.

Eugênia-Pétala não estava exagerando.

- Meu livro vai se chamar Entrevista com o Ornitólogo.
- Deixa eu adivinhar. Sobre vampiros?
- Claro que não (irritado, irritadíssimo). É sobre um ornitólogo (revoltado até). É uma autobiografia (achei que eu fosse apanhar).

Pétala-Eugênia estava conversando com alguém em um canto. Olhando bem, conversando não,  uma vez que só o outro falava. A pobre havia sido sequestrada pelo advogado dos poemas de amor e respondia com sorrisos amarelos e arrãs. Olhava em volta desesperada, à procura de alguém que a resgatasse da teia em que a enredaram. Talvez fosse ingratidão da minha parte, mas eu também não ia correr o risco de ser abduzida pela conversinha mole do causídico bardo. Recuei discreta até que minhas costas encostassem na parede, e fui me achegando à porta, de mansinho. Saí. Correndo.

Chego em casa, ligo o computador, abro o editor de texto, decidida a quebrar a primeira regra da Confraria. Escrevo essas linhas como exercício; já que não me ocorrem histórias para contar, é melhor então que eu conte as histórias que me ocorrem, pelo menos mantenho os dedos em movimento. Enquanto isso, procuro na internet alguma Confraria de Escritores Que Escrevem e Leem: deve existir, ou devia. Talvez seja o caso de fundar uma.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O unicórnio - v1.0

Já não acreditava mais nele como em criança, mas era um conforto. Fechava os olhos e estava lá, sempre. Às vezes ele vinha, cabeça baixa, os cílios brancos e grossos cobrindo o negror daqueles olhos que lhe custava fitar, até que ela pudesse lhe alcançar a face. De outras, ele ficava ali, soltava um relinchar murmurado e balançava a crina, como se chamasse. Às vezes, ela ia. Mas tinha sempre um pouco de medo.
Quase sempre aparecia naquele cenário de conto de fadas. A clareira de uma floresta européia, de árvores baixas e galhos retorcidos, no meio de uma neblina azul-esverdeada. O cheiro que exalava era de lírios brancos e violetas, não dessas comuns que todo mundo tem em casa, mas violetas especiais, que não existiam em nenhum outro lugar. E essas violetinhas de supermercado nem têm cheiro mesmo.
Outro dia ela o tinha visto no parque, naquele cercado das nascentes, tinha certeza. Ele a olhava do meio do mato, o pelo branco brilhando onde o sol batia através do rendilhado das folhas. Os olhos cintilavam como duas gemas negras, escuras como água de poço, e ela já não conseguia olhar diretamente neles; lhe davam sempre estranhas vertigens de cair. Era mais baixo que um cavalo, de modo que metade do corpo esguio de gazela estava escondido no mato. Seus cascos eram fendidos como os de uma cabra, e a cauda era fina, terminando em um tufo de pelos. O pescoço forte, a face alongada, o focinho cinzento, todo o resto era de cavalo. E tinha o chifre. O maravilhoso, o extraordinário chifre, pétreo, apontando para cima, branco como nada no mundo, perfeitamente reto, torcido em espiral. Era branco como glacê de bolo, como vestidinhos de primeira comunhão, como papel de desenhar. E brilhava como duzentas colherinhas de prata, como os diamantes da coroa da princesa, como mil luzinhas de natal. Ele a olhava de frente, aquelas gemas negras direto nos seus olhos. Teve a vertigem de sempre, desviou o olhar. Quando voltou, já sabia que ele não estaria mais lá.
Acho que tinha uns quatro anos na primeira vez que o viu. A memória desse tempo era confusa, mas tinha certeza que havia sido depois de ser mandada para a escolinha. Quando as outras crianças não se davam ao trabalho de chamá-la para brincar, ela fechava os olhos e brincava com o unicórnio. Naquela época, ainda conseguia olhar nos seus olhos, e se atrevia a chegar perto sem nenhum medo, e chegava até a montar. Ele ajoelhava nas patas da frente para que ela lhe alcançasse o dorso, e os dois saíam pela floresta escura. Ia agarrada no pescoço do unicórnio, sentindo o macio da crina contra o rosto, e sempre acabava dormindo, embalada pelo trote lento.
O unicórnio estava sempre lá. Se era deixada sozinha no recreio, ela o procurava; se estava triste por uma nota baixa ou um presente que não veio, era só fechar os olhos. Nos dias felizes, também: quando o pai voltava de viagem, ela ia correndo abraçar o unicórnio; quando a mãe a ensinou a pintar as unhas, foi correndo mostrar. O esmalte era branco, cheio de brilhinhos, mas é claro que não cintilava com o brilho das mil estrelas de belém do chifre do unicórnio.
Quando descobriu o calor estranho e diferente de tocar onde não podia, foi correndo contar ao unicórnio. Pode ter sido por essa época que seus olhos negros começaram a lhe dar a vertigem de um poço fundo.
Às vezes estava distraída, quando percebia o unicórnio chegando a seu lado. Acontecia quase sempre quando estava entre árvores, num jardim ou parque, e a luz do dia começava a ficar mais fraca. Aprendera a não se virar para olhar, ou ele fugiria, mas tinha a certeza que era o unicórnio pelo cheiro dos lírios brancos e das violetas que não existiam. Só a sua presença já dava conforto, um calorzinho no peito, e deixava que ficasse lá, pastando flores. Ele só comia flores, por isso cheirava tão bem.
Floriam as quaresmeiras no fim do verão, em violeta e rosa; floriam os ipês no fim do inverno, em amarelos e brancos. Voltava o verão, e as quaresmas depois; voltava o inverno, e os ipês seguiam. Os seios da menina brotavam, e a cálida flor vermelha já se tinha desabrochado. Ela já quase não acreditava no unicórnio; só era capaz de ter certeza quando o perfume dos lírios brancos e das violetas inexistentes vinha tão forte, tão imperativo e real que não poderia negar. Então ela fechava os olhos e ele estava lá, os olhos negros como o céu de noite, o chifre branco como a última estrela.
Quando ela conheceu o rapaz, chegava a fugir do unicórnio. Se percebia o cheiro de flores, corria a beijar o moço, deixar que o cheiro acre de homem misturado ao amargo do perfume dele lhe invadisse as narinas, que dominasse o odor dos lírios brancos e das violetas que não existiam.
Um dia, uma noite aliás, como era inevitável, as coisas tomaram seu rumo natural. O rapaz queria, a moça também; ele tratou de arranjar um lugar, e ela tratou de arrumar a coragem. No semi-escuro, em meio ao cheiro forte da saliva, sexo e suor, ela se atreveu a abrir os olhos. Podia ver a expressão abobalhada na cara do moço, o jângal dos pêlos do peito e aquela coisa ali, cujo nome sua timidez não ousava pronunciar.
Jamais o imaginava assim. Pensava num sexo pétreo e perfeitamente reto, apontando para cima, o corpo cor de carne, a cabeça cor de rosa, as veias azuis como vinhas em volta. O que via, no meio dos pelos, era um estranho pedaço de carne, curvado para cima, inclinado para a direita, e com aquele horrível volume de pele enrugada pendurado, um lado maior do que o outro. Fechou os olhos e deixou que ele entrasse. Doeu.
Com o tempo, o sexo ia deixando de ser desagradável. Ainda havia a umidade e o cheiro forte de carne, mas ela se acostumaria.
Um dia, como era inevitável, ele a deixou. Deu as piores desculpas; falava em “viver a vida”, em “liberdade”, que “não é você, sou eu”. Sentiu-se sozinha como num pátio de recreio, entre mil crianças que não queriam brincar com ela. Depois de chorar um rio, lembrou de seu companheiro de sempre e fechou os olhos, mas ele não estava lá. Tentou imaginá-lo, a cabeça de cavalo, o corpo de gazela, o chifre de um milhão de sóis, e não conseguiu. Tentou desenhá-lo, em todos os detalhes, invocando um ritual pagão, e ainda assim ele não veio.
Estava sozinha como nunca, nunca. Chorou até secar. Caiu a noite.
Os ipês floriram, as quaresmas, e novamente os ipês. A menina crescia. A solidão fez com que ela procurasse pessoas, e por incrível que fosse, algumas (talvez até a maioria) aceitavam sua companhia. Fez amigos, conheceu homens; uns mais, outros menos bonitos, uns mais, outros menos afetuosos, uns mais, outro menos tortos, mas quase todos mais habilidosos que o primeiro. Um deles estava sempre lá se ela se sentia triste, e a deixava sempre mais alegre quando estava feliz. Passavam ipês, quaresmeiras; brigavam um pouco no inverno, faziam amor nos verões. E tanto fizeram que acabaram fazendo uma filha.
Um dia desses, no parque, ela sentava num banco enquanto a menina brincava. Sentiu então o perfume que era tão familiar, o cheiro dos lírios brancos e o aroma das violetas inexistentes, que agora ela reconhecia como o cheiro de tudo o que era bom. Cheiro de neném saído do banho, de roupa branquinha no varal, pão quente com muita manteiga, bolinho de chuva com canela, saliva de quem a gente ama, perfume de colo de mãe. Não se atreveu a olhar para o lado, ou ele fugiria; bastava saber que estava ali, no canteiro, pastando flores. Ele só comia flores. Por isso cheirava tão bem.