quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Em defesa de Medeia

O amor, este degenerado, responsável por umas tantas tragédias na literatura. É por amor que Otelo mata Desdêmona, por amor Romeu e Julieta suicidam-se. Na vida real, foi por amor que a Fera da Penha matou a filhinha de seu amante, inspirada talvez em Medeia, que por amor matou os próprios filhos, filhos do filho da puta que a abandonou. Eis o amor, meus amigos, essa flor roxa.

Jamais saberemos se a doce Bianca lembrava-se destes ancestrais crimes quando cometeu o seu. O que sabemos com certeza é que o gatilho que disparou a vingança foi um telefonema de seu ex.

- Bia? Tudo bem? Escuta, eu e a Regina, nós vamos viajar agora no fim de semana, e a gente tava pensando, será que você podia vir aqui tomar conta do aquário?

Tomar conta do aquário? Do aquario que ela, Bianca, tinha montado, que só ficou com esse filho da puta quando se separaram por que ela não tinha espaço na casa da mamãe? E é sexta-feira, esse traste acha que ela não tinha mais o que fazer do seu fim de semana do que ficar de babá de peixe?

- Claro.

- Eu sabia que podia contar contigo, linda. – A mulher ao lado dele dardeja com o olhar – Falei pra Regina que você adorava cuidar do aquário quando a gente... – “A gente?” Novo projétil – Bom, falei pra Regina que você adorava cuidar do aquário – “Deixa eu falar com ela, Roberto.” – Ó, vou te passar pra Regina! Bei-abraço!

- Alô, Bianca? Tudo bem? Escuta, você sabe, né? Tem que botar comida duas vezes por dia, às oito da manhã e às oito da noite, não pode atrasar. E o termostato, tem que ficar de olho no termômetro por que às vezes o termostato dá pau. A temperatura tem que ficar naquela faixinha verde, nem mais nem menos, viu? E a comida é pra dar só uma medida por vez, você sabe como é kinguio, os bichos comem até morrer. E mesmo que eles deixem alguma coisa, sobra, cria fungo, morre tudo. Tá anotando?

Anotando? Ela havia tomado conta dessa porra desse aquário – do SEU aquário – por um ano antes dessa cadela aparecer, ela ainda acha que pode ensinar missa ao vigário? Quem que essa vaca pensa que é?

- Claro

- Ó, a gente já tá saindo, vamos deixar os bichinhos alimentados, você pode aparecer amanhã de manhã. Tchau.

Esse safado tem a coragem, o desplante de pedir favor depois de tudo o que fez, e além disso essa vagabunda ainda a trata como se Bia fosse sua empregada? Não iria. Os peixinhos que morram secos.
Mas foi. No último minuto, dez pras oito, saiu de casa e foi.

O apartamento, o lindo apartamentinho de dois quartos que eles haviam dividido por um ano, estava uma zona. Roupas pelo chão imundo, poeira nos móveis, os vidros em petição de miséria. Mas nem pra fazer uma faxina essa mulher servia? A pia cheia de louça, um horror. O aquário tinha os vidros turvos, há quanto tempo essa gente não limpa? Acham que é só trocar a água e dar comida que os peixinhos se viram?

Ah, mas os peixinhos. Dava um calorzinho no coração só de olhar. Fora Bianca quem teve primeiro a idéia de montar um aquário. Em princípio, tudo o que ela queria era um parzinho de peixes dourados, adejando gordos e felizes num globo de vidro. Roberto, com suas manias de grandeza, mandara construir um aquário enorme, pra caber sob medida num vão aberto a marretadas entre a parede da sala e a do escritório. Tinham quase todas as variedades de kinguios: bolhas, telescópios, caudas de véu, coisa linda de ver. Podiam lá ter seus desentendimentos, mas se entendiam cuidando dos peixinhos. Mas agora, essa zona! Olha que nojo, esse aquário, não limpa e depois reclama se dá fungo. Mas Bianca é que não ia limpar, não depois daquelazinha tê-la tratado daquele jeito. Deu comida para os bichinhos e saiu.

Ia ao cinema no sábado, mas teve que cancelar. Virar babá de peixe, que fim de carreira. Abriu a porta e não conseguiu deixar de se surpreender, de novo: aquela sujeira, aquela bagunça, no seu lindo apartamentinho era tão absurda, tão fora de contexto que ela havia até esquecido. Decidiu que daria um jeito naquilo, não por Roberto e Regina, aqueles trastes, mas em respeito ao lugar onde fora tão feliz. E aos peixinhos. Eles não mereciam viver no meio daquela zona. Olha o vidro desse aquário, meu deus!
Os peixinhos. Perderia seu sábado à noite por causa deles, mas poxa, eram tão bonitinhos. Se bem que... olha essa caras de bobo. Né? Ali, nadando, os olhões esbugalhados, a boca abrindo, fechando. Abrindo, fechando. O telescópio preto, por exemplo. Não era a cara do Roberto? A mesma expressão aparvalhada, os mesmos olhos de peixe – perdão – morto. Bundão. Olha o cauda-véu dourado, então. Tinha a exata cara de sonso da Regina, da sirigaita da Regina, aquele cabelo ruim alisado descolorido de blondor, amarelo ovo. A mesma cor das escamas, igualzinho. Como ela não tinha reparado antes?

Bianca mergulhou a mão no aquário e a deixou ali, imóvel, por alguns minutos. Primeiro eles se assustaram, depois vieram, curiosos, devagar. Pareciam especialmente interessados em suas unhas pintadas de rosa. Peixinho enxerga cor ou só vê preto e branco? Deve enxergar. Ou por que eles seriam tão coloridos?
De um golpe, agarrou o bicho mais próximo. Tirou da água. Era o telescópio preto, se debatendo viscosamente na concha de sua mão. Aquilo lhe deu um estranho prazer, talvez o poder de ter uma vida nas mãos. Da maneira mais literal possível. Deu uns passos meio sem saber onde ia; parou à porta do banheiro. Entrou (que cheiro), abriu a tampa da privada (que imundície), hesitou. Voltou em passo rápido e derramou o peixinho de volta no aquário. Bobagem.

Dia seguinte, manhã. Roberto e a outra lá voltariam à noite, e ela já tinha decidido dar um jeito no lugar. Trouxe produtos de limpeza de casa, nem isso aqueles porcos tinham ali. Tirou pó dos móveis, recolheu as roupas do chão, varreu, passou pano. Deu jeito no banheiro, meu deus, que nojo daquele banheiro. Lavou a louça, estava até criando limo na pia. Já ia deixando um bilhetinho pregado no aquário: limpei pra vocês, Bia, coraçãozinho. Mas como aquele vidro estava sujo, meu deus. Muito sujo. Por dentro.

Os dois chegariam algumas horas mais tarde. Roberto ficaria mudo, Regina soltaria um grito. Encontrariam ali as armas do crime, detergente e esponja, e as vítimas, boiando no aquário em decúbito dorsal.

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