Já não acreditava mais nele como em criança, mas era um conforto. Fechava os olhos e estava lá, sempre. Às vezes ele vinha, cabeça baixa, os cílios brancos e grossos cobrindo o negror daqueles olhos que lhe custava fitar, até que ela pudesse lhe alcançar a face. De outras, ele ficava ali, soltava um relinchar murmurado e balançava a crina, como se chamasse. Às vezes, ela ia. Mas tinha sempre um pouco de medo.
Quase sempre aparecia naquele cenário de conto de fadas. A clareira de uma floresta européia, de árvores baixas e galhos retorcidos, no meio de uma neblina azul-esverdeada. O cheiro que exalava era de lírios brancos e violetas, não dessas comuns que todo mundo tem em casa, mas violetas especiais, que não existiam em nenhum outro lugar. E essas violetinhas de supermercado nem têm cheiro mesmo.
Outro dia ela o tinha visto no parque, naquele cercado das nascentes, tinha certeza. Ele a olhava do meio do mato, o pelo branco brilhando onde o sol batia através do rendilhado das folhas. Os olhos cintilavam como duas gemas negras, escuras como água de poço, e ela já não conseguia olhar diretamente neles; lhe davam sempre estranhas vertigens de cair. Era mais baixo que um cavalo, de modo que metade do corpo esguio de gazela estava escondido no mato. Seus cascos eram fendidos como os de uma cabra, e a cauda era fina, terminando em um tufo de pelos. O pescoço forte, a face alongada, o focinho cinzento, todo o resto era de cavalo. E tinha o chifre. O maravilhoso, o extraordinário chifre, pétreo, apontando para cima, branco como nada no mundo, perfeitamente reto, torcido em espiral. Era branco como glacê de bolo, como vestidinhos de primeira comunhão, como papel de desenhar. E brilhava como duzentas colherinhas de prata, como os diamantes da coroa da princesa, como mil luzinhas de natal. Ele a olhava de frente, aquelas gemas negras direto nos seus olhos. Teve a vertigem de sempre, desviou o olhar. Quando voltou, já sabia que ele não estaria mais lá.
Acho que tinha uns quatro anos na primeira vez que o viu. A memória desse tempo era confusa, mas tinha certeza que havia sido depois de ser mandada para a escolinha. Quando as outras crianças não se davam ao trabalho de chamá-la para brincar, ela fechava os olhos e brincava com o unicórnio. Naquela época, ainda conseguia olhar nos seus olhos, e se atrevia a chegar perto sem nenhum medo, e chegava até a montar. Ele ajoelhava nas patas da frente para que ela lhe alcançasse o dorso, e os dois saíam pela floresta escura. Ia agarrada no pescoço do unicórnio, sentindo o macio da crina contra o rosto, e sempre acabava dormindo, embalada pelo trote lento.
O unicórnio estava sempre lá. Se era deixada sozinha no recreio, ela o procurava; se estava triste por uma nota baixa ou um presente que não veio, era só fechar os olhos. Nos dias felizes, também: quando o pai voltava de viagem, ela ia correndo abraçar o unicórnio; quando a mãe a ensinou a pintar as unhas, foi correndo mostrar. O esmalte era branco, cheio de brilhinhos, mas é claro que não cintilava com o brilho das mil estrelas de belém do chifre do unicórnio.
Quando descobriu o calor estranho e diferente de tocar onde não podia, foi correndo contar ao unicórnio. Pode ter sido por essa época que seus olhos negros começaram a lhe dar a vertigem de um poço fundo.
Às vezes estava distraída, quando percebia o unicórnio chegando a seu lado. Acontecia quase sempre quando estava entre árvores, num jardim ou parque, e a luz do dia começava a ficar mais fraca. Aprendera a não se virar para olhar, ou ele fugiria, mas tinha a certeza que era o unicórnio pelo cheiro dos lírios brancos e das violetas que não existiam. Só a sua presença já dava conforto, um calorzinho no peito, e deixava que ficasse lá, pastando flores. Ele só comia flores, por isso cheirava tão bem.
Floriam as quaresmeiras no fim do verão, em violeta e rosa; floriam os ipês no fim do inverno, em amarelos e brancos. Voltava o verão, e as quaresmas depois; voltava o inverno, e os ipês seguiam. Os seios da menina brotavam, e a cálida flor vermelha já se tinha desabrochado. Ela já quase não acreditava no unicórnio; só era capaz de ter certeza quando o perfume dos lírios brancos e das violetas inexistentes vinha tão forte, tão imperativo e real que não poderia negar. Então ela fechava os olhos e ele estava lá, os olhos negros como o céu de noite, o chifre branco como a última estrela.
Quando ela conheceu o rapaz, chegava a fugir do unicórnio. Se percebia o cheiro de flores, corria a beijar o moço, deixar que o cheiro acre de homem misturado ao amargo do perfume dele lhe invadisse as narinas, que dominasse o odor dos lírios brancos e das violetas que não existiam.
Um dia, uma noite aliás, como era inevitável, as coisas tomaram seu rumo natural. O rapaz queria, a moça também; ele tratou de arranjar um lugar, e ela tratou de arrumar a coragem. No semi-escuro, em meio ao cheiro forte da saliva, sexo e suor, ela se atreveu a abrir os olhos. Podia ver a expressão abobalhada na cara do moço, o jângal dos pêlos do peito e aquela coisa ali, cujo nome sua timidez não ousava pronunciar.
Jamais o imaginava assim. Pensava num sexo pétreo e perfeitamente reto, apontando para cima, o corpo cor de carne, a cabeça cor de rosa, as veias azuis como vinhas em volta. O que via, no meio dos pelos, era um estranho pedaço de carne, curvado para cima, inclinado para a direita, e com aquele horrível volume de pele enrugada pendurado, um lado maior do que o outro. Fechou os olhos e deixou que ele entrasse. Doeu.
Com o tempo, o sexo ia deixando de ser desagradável. Ainda havia a umidade e o cheiro forte de carne, mas ela se acostumaria.
Um dia, como era inevitável, ele a deixou. Deu as piores desculpas; falava em “viver a vida”, em “liberdade”, que “não é você, sou eu”. Sentiu-se sozinha como num pátio de recreio, entre mil crianças que não queriam brincar com ela. Depois de chorar um rio, lembrou de seu companheiro de sempre e fechou os olhos, mas ele não estava lá. Tentou imaginá-lo, a cabeça de cavalo, o corpo de gazela, o chifre de um milhão de sóis, e não conseguiu. Tentou desenhá-lo, em todos os detalhes, invocando um ritual pagão, e ainda assim ele não veio.
Estava sozinha como nunca, nunca. Chorou até secar. Caiu a noite.
Os ipês floriram, as quaresmas, e novamente os ipês. A menina crescia. A solidão fez com que ela procurasse pessoas, e por incrível que fosse, algumas (talvez até a maioria) aceitavam sua companhia. Fez amigos, conheceu homens; uns mais, outros menos bonitos, uns mais, outros menos afetuosos, uns mais, outro menos tortos, mas quase todos mais habilidosos que o primeiro. Um deles estava sempre lá se ela se sentia triste, e a deixava sempre mais alegre quando estava feliz. Passavam ipês, quaresmeiras; brigavam um pouco no inverno, faziam amor nos verões. E tanto fizeram que acabaram fazendo uma filha.
Um dia desses, no parque, ela sentava num banco enquanto a menina brincava. Sentiu então o perfume que era tão familiar, o cheiro dos lírios brancos e o aroma das violetas inexistentes, que agora ela reconhecia como o cheiro de tudo o que era bom. Cheiro de neném saído do banho, de roupa branquinha no varal, pão quente com muita manteiga, bolinho de chuva com canela, saliva de quem a gente ama, perfume de colo de mãe. Não se atreveu a olhar para o lado, ou ele fugiria; bastava saber que estava ali, no canteiro, pastando flores. Ele só comia flores. Por isso cheirava tão bem.
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