Não era nada, era o quê? Dois, três pelinhos a mais ali no meio?
Mas parece que a mãe dela não deixava tirar, e o pessoal não
perdoava. Às vezes era Jeca Tatu, de outras era Lobisomem, mas
quase sempre era só Taturana mesmo. Lobisomem a gente achava cruel,
os meninos não tinham noção. Taturana era até carinhoso,
pensávamos. Acho que até as serventes da faxina a chamavam de
Taturana.
Mas sobrancelhas grossas eram a moda da época, e eu até invejava um
pouco, sabe? A minha era cheia de falhas, minha mãe não deixava
pintar, e pra Taturana bastava tirar aqueles pelinhos. A gente já
raspava a axila, também as pernas, a Taturana ainda não. A gente
usava sutiã, mesmo que não precisasse, a Taturana ainda não. A
gente combinava as mentiras quando o pai não deixava ir na
danceteria, a Taturana nunca.
Quando a gente saía, a Taturana não usava minissaia nem vestidinho
de viscose, e não era nem por não se depilar: é que qualquer
saia lhe dava uma terrível sensação de escancaramento. As duas
pernas cobertas pelas pernas da calça eram uma segurança frente à
liberdade de uma saia soltinha, por mais comprida que fosse. Ela
usava o cabelo sempre preso num rabo de cavalo alto, a camiseta do
uniforme solta, pra fora da calça, e uma mochila azul que a gente
sabia que era a mochila velha do seu irmão mais velho, já no
colegial. Costumava ser a última a ser escolhida na educação
física, antes da menina vesga e do garoto fanho entrarem na escola.
Não era gorda nem magra, inteligente nem burra, e na verdade a única
coisa por que ela se fazia notar era mesmo a taturana.
Outra que tinha as sobrancelhas grossas, fortes, lindas, era a
professora Soraya, de português Tinha o cabelo preto bem preto de
libanesa, armado, enorme, caindo em cachos nas costas, e um sorriso
eterno de vendedora no rosto. Usava um batom vermelho trazido dos
anos 80 e uma colônia da Avon que faziam parte da sua figura, a
gente jamais a imaginaria sem. Tinha seus trinta e tantos anos e uns
peitos, uma bunda enorme, um pouco de barriga também, mas pros
meninos que nunca tinham visto um decote na vida aquilo era pura
fartura. Entrava na sala e a preenchia inteira, cada átomo do ar
entre nós era dela, sua risada ressoava pelos corredores. Era uma
dessas baixinhas que parecia ter dois metros de altura, só pela
presença. Todas nós eramos completamente apaixonadas por ela. Todas
nós.
A Taturana passava os intervalos do recreio lendo, sozinha, na
biblioteca. Acho. Pelo menos eu a via lá de vez em quando, e nunca
no pátio, nem na cantina, muito menos escondida com a gente no
parquinho abandonado, aonde íamos para fumar. Nesse dia encontramos o
parque trancado, e as meninas se dispersaram. Eu, na fissura, fui
para o banheiro, fumar em pé sobre a privada, assoprando a fumaça na
janela alta do reservado do canto. O barulho de gente entrando me
assustou, primeiro um claque claque de saltos, depois um rumor
silencioso de tênis. A voz da professora Soraya reboava pelos
azulejos, e eu quase engoli o cigarro no medo de ser descoberta.
- Não tem nada de mais, Tatiana. Depois você tira, sua mãe não
vai brigar. Faz a boca em O, assim.
Não vi. Mas podia imaginar a cena que passava atrás da minha porta
de madeira. A professora Soraya pintando um coração na boca da
Taturana, um coração vermelho, demodê, pulsando sobre a pele
branca. A estranha no espelho, o nervoso, o coração na boca. O
cabelo.
- Sabe que eu nunca tinha reparado que seu cabelo era tão clarinho?
Quase loiro. Você devia dar um corte, deixar solto assim.
Eu não podia sair dali, o medo de descobrirem que eu fumava. Uma
mosca entrou pela janela, deu duas voltas em torno da minha cabeça,
voou por baixo da porta. Daria minha alma para ser aquela mosquinha.
- Você pode tirar, se quiser. Tem uns minutos de intervalo ainda. Eu
tenho que pegar o material na sala dos professores, mas se eu fosse
você, deixava.
O claque claque dos saltos foi embora. Saí.
A Taturana estava tão absorta com a própria imagem que jamais teria
me notado. Era outra ali. A camisa do uniforme pra dentro da calça
de helanca, mostrando a cintura fina e os quadris em formação. O
cabelo, ondulado e brilhante, quase loiro mesmo, caindo sobre os
ombros. O coração na boca. E a ponte entre uma sobrancelha e outra,
os três pelinhos no meio da testa, não estavam mais lá. Talvez
fosse impressão minha. Mas não vi. Na hora tive certeza.
Não disse nada, estava preocupada demais com o meu cheiro de cigarro
e com o sino que soaria a qualquer momento. Estava na sala, já
escondida no fundo, quando o sinal tocou. O claque claque dos saltos
e um sorriso branco emoldurado em vermelho entraram na sala. Era aula
de português.
Momentos depois, já no silêncio da sala em ordem, surgia na porta a
Taturana, irreal. A professora de costas, passando matéria na lousa,
alguns de nós copiando, concentrados. Foi o Batatinha, o alemãozinho
gordo que sentava na frente, quem deu o alarme:
- A lá, a Taturana passou batom!
Sessenta e quatro olhos se ergueram dos cadernos e se voltaram para a
porta. Encontraram a figura magra e meio curvada, peitinhos perdidos
na camiseta larga, cabelos fartos abaixo dos ombros, brilhantes e
quase louros, e um coração na boca. Mas foi por dois segundos.
(Por muito tempo não conseguimos chegar a um acordo quanto à
sobrancelha dela, se havia tirado. Eu e metade da sala
achávamos que sim, os outros tinham a certeza que não.)
Do que aconteceu depois, a gente não sabe muito bem. Sabemos que ela
correu para o banheiro e que a professora Soraya saiu correndo atrás,
o claque claque dos saltos ecoando pelo corredor. Não terminamos
aquela aula de português. Dizem que chamaram os pais da Taturana
para virem buscá-la no colégio, e por muitos dias disseram que ela
estava doente, de atestado, em casa. Por fim descobrimos que havia
mudado de escola, e sempre que tentávamos ligar pra ela, a empregada
dizia que estava no inglês, na natação, ou que simplesmente havia
saído.
Já achei ter visto o rosto dela, com e sem taturana, umas tantas
vezes nesses anos. A moça que tocava violão e cantava no
barzinho, com uma voz rouca que podia ser a de qualquer pessoa. A
recepcionista mal-educada no laboratório de análises clínicas. Uma
caixa de supermercado, cujo crachá não dizia Tatiana. Só fui
encontrá-la anos depois, visitando o velho bairro, no dia de natal.
Usava camisa fechada até o pescoço, sapatos baixos, e estranhei que
estivesse de saia. Os óculos eram para hipermetropia pesada, se
podia ver pelas lentes, e ela engordou um pouco. Os cabelos, cheios
de branco sem tingir, eram presos atrás com um coque, e a taturana
ainda estava lá. Se ela me reconheceu, fingiu não me perceber muito
bem.
Parece – me contaram – que ela virou pastora de uma igrejinha
pentecostal aqui da rua mesmo. Casou com um cara de um metro e meio e
metade do seu peso, crente também, mas que tomava umazinha
escondido. Moravam nos fundos da igreja, um salão alugado que já
foi uma padaria, e nunca tiveram filhos.