“Não repara a bagunça”, ela dizia, e a primeira coisa em que
reparávamos é que não havia bagunça. Nenhuma. Um grão de poeira
no piano, um caminho de mesa desalinhado, nada do tipo; tudo parecia
ter sido medido e organizado com esquadro e régua, e executado por
robôs. Até a mantinha do sofá, displicentemente jogada sobre o
encosto, havia sido estendida ali da maneira que causasse o melhor
efeito sobre o conjunto da sala, com o nível adequado de
displicência para quebrar o gelo, mas não o suficiente para parecer
bagunçado. Mesmo o enorme gato amarelo não parecia mais que um
bibelô vivo, dormindo em algum canto onde combinaria perfeitamente
com a decoração. E a prima Judite, em seus sessenta e tantos anos
(quarenta e poucos para os íntimos) completava a cena, irretocável,
de pé no seu vestido chemisier bem passado, com seus cabelos brancos
ligeiramente lilases, alguma maquiagem e as mãos juntas, uma sobre a
outra, na exata altura do peito magro.
A prima Judite nunca havia se casado. Vovó falou que ela escolheu
demais, e uma mulher alta e magra, naquele tempo, não tinha valor
como agora. Tia Rita, bêbada de Porto, uma vez contou que ela teve
um noivo, por uns seis meses, “porteiro de hotel, aquele uniforme
grená, mais baixinho que a Rosa do 62. Mas tinha dinheiro, o
infeliz, não muito, mas tinha. Dava até jóias”. Achavam que ele
agenciava as apostas dos cavalinhos para os hóspedes do hotel,
assim, por fora, “ou coisa pior. Imagina a figura, a Judite lá com
seu quase metro e oitenta e aquele cisco de gente, de braço dado,
passeando pela calçada da Augusta. Imagina a cena, imagina!”. Tia
Ritinha não soube precisar por que é que não deu certo, afora as
incompatibilidades físicas. Mas achava que a Judite é que havia
terminado, no fim das contas.
Na estante, um Marcelino de Carvalho, a Bíblia e algumas boas dúzias
dos romances clássicos, Machados e Alencares. Edições bonitas de
capa dura e dourado nas letras das lombadas, herança do pai dela, o
tio Agamenon, que eu não conheci. Vivia da renda de um predinho
alugado no centro, para pobres, que com um dinheirinho investido na
reforma poderia triplicar de valor. Tentávamos convencê-la havia
uns três natais, aproveitar o mercado aquecido, até emprestaríamos
o capital se fosse o caso. “Depois você vende, boba, e vive da
renda do dinheiro no banco, é muito melhor”. Mas a prima Judite
não mudava as coisas.
A prima Judite não tinha sonhos. Não que se lembrasse, pelo menos.
Uns pesadelos, aqui e ali, mas sempre os mesmos – um pesadelo
inédito seria demais para o coração dela, coitada. Num deles, ela,
criança, quebrava algo – às vezes a sopeira de porcelana com
filetes de ouro, às vezes o grande vaso Baccarat – e seu pai
vinha, enorme, sombreando a porta, a cinta de couro cru na mão.
E ela nunca havia apanhado, que se soubesse. Vovó garantia que não.
O outro era numa festa, – um pesadelo desses comuns, que muitos
temos – uma festa chique, chiquérrima, um Baile da Ilha Fiscal.
Casais giravam esvoaçantes, valsando; pirâmides de frutas sobre a
mesa, leitões dourados como as rocalhas da decoração e tomates
cortados em flor. No exato centro geográfico do salão, a prima
Judite, sozinha, toda arrumada em seu vestido malva de chiffon de
seda, percebia, de repente, que estava descalça. Ou de havaianas. E
todos a olhavam.
A nossa família se reunia em todo natal, nos velórios e nos
casamentos. Na média, dava umas duas vezes por ano – era raro
quando morria alguém e alguém se casava no mesmo ano, então era só
o natal e mais um evento esporádico mesmo. Como no ano passado havia
morrido a tia Lucy, de câncer, esse ano a nossa sobrinha Tati se
casaria. O convite era um desses moderninhos com a caricatura do
casal; a prima Judite lamentava o fim da caligrafia manual e da
tipografia dourada em letras góticas. Queria dar um faqueiro bonito,
talvez uma bandeja de prata; mas o faqueiro que eles tinham pedido na
lista da loja era horroroso, com cabos de plástico verde, e de
bandeja só queriam uma daquelas de café da manhã. Coisas práticas,
toalhas de banho felpudas, uns jogos americanos (só bárbaros comem
nisso), nenhuma decoração. Acabou escolhendo um acolchoado. Perdão,
um edredon.
A festa era em outra cidade. Oferecemos carona, mas a prima Judite
preferiu ir com seu taxista de confiança, combinando a viagem.
Ar-condicionado no carro era uma dessas poucas novidades que ela
aceitava. Com um xale nos ombros, mas aceitava, para não derreter a
maquilagem enquanto descia a serra.
O lugar parecia uma espécie de clube. Desceu do carro e ajeitou o
chapéu, porque durante o dia era de bom tom usar chapéu em
casamentos e ela não perderia essa oportunidade. Um tailleurzinho
bege bem cortado, com lapelas de cetim no mesmo tom, mandado fazer na
costureira. As unhas vermelhas, as meias finas trazidas da França,
extravagâncias que se permitia. Os sapatos de salto enganchavam nos
vãos do deque de madeira, que descia até o local da cerimônia. Uma
coisa muito precária, coisa daquelas favelinhas de palafita no meio
do mangue, pensava. Quando percebeu, já havia chegado ao local da
cerimônia. No meio da areia da praia, como dizia o convite que ela
não havia lido.
Já estavam lá o tio Antônio, de camiseta e bermuda. A tia Cleide,
de vestidinho floral. O Zé Roberto de jeans, a esposa dele de
shorts, branco com a barra desfiada. Os convidados chegando, sem
cerimônia, de camiseta regata, as pernas nuas, até um biquíni
aparecendo aqui e ali sob uma alça ou outra. Nos pés, chinelos,
papetes, rasteirinhas, sandálias franciscanas.
O noivo, de algodão cru, aguardava ansioso, bonitão, barba de três
dias, no meio do altar. A noiva vinha, etérea, os cabelos soltos, no
meio de um oceano de cambraia branca. Linda. Jovem. Descalça.
Acho que a prima Judite faleceu pouco antes do natal do ano seguinte,
do coração. Reformamos o predinho e o vendemos. Triplicou de valor,
mesmo.
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