A gordura na panela borbulhava dourada, rumorejante, como uma nascente em dia de sol. A cebola, de um claro verde de limo, de pedrinhas de fundo, ia ficando transparente, enquanto o alho, descascado e espremido na hora, se tornava opaco. Duas medidas de arroz branco, exatas, mexidas e reviradas com a colher de pau, até que o branco se torne mais branco se torne mais branco; quatro medidas de água, sal, e a panela tampada, até secar. Era assim que o arroz ficava soltinho, soltinho como ele gostava.
É
que eles tiveram que dispensar a empregada depois que ela foi
demitida. Ele não se importava de segurar as contas, mas é claro
que teriam que cortar despesas, e ela ia ficar em casa mesmo... Com
ela, o arroz ficava mais soltinho, as camisas mais bem passadas, a
casa muito mais limpa. Empregada não tem cuidado, ele dizia, faz
tudo de qualquer jeito; a gente cuida muito melhor do que é da gente
mesmo.
Graças
a Deus o menino tinha passado numa universidade pública, e o
cursinho da menina era só pro ano que vem. E a casa – um
sobradinho de três quartos, quintal, num bairro distante mas muito
tranquilo – estava quitada. Claro que continuava a procurar
emprego, mas o marido se recusava a aceitar que ela ganhasse menos do
que no trabalho anterior: “Pra você ganhar essa miséria é melhor
ficar em casa”. Mas as empresas agora só queriam jovenzinhos
recém-formados ganhando salário de fome, e ela já tinha, afinal,
quarenta anos.
Ela
ainda tinha quarenta anos. Ela só tinha quarenta anos.
Quarenta
anos e dois filhos quase adultos, um menino que deixava a toalha
molhada na cama e uma menina que estragava todos os seus sapatos
bons, além de um marido incapaz de fritar um ovo. Quarenta anos e
sua única viagem para o exterior havia sido um pacote
quatro-dias-três-noites para Buenos Aires, que o marido havia
comprado porque todos no escritório estavam indo para lá. Quarenta
anos e sua maior ousadia havia sido uma vez descer de tirolesa no
hotel fazenda, num feriado de Corpus Christi, apavorada, para nunca
mais.
Os
grãos escuros do feijão caíam da concha e se espalhavam pelo fundo
do prato. O branco do arroz era servido por cima, contrastando no
escuro do caldo grosso, cheiroso de toicinho e alho. Esse era o prato
dele. O menino exigia o feijão por cima do arroz, e a menina queria
os dois lado a lado, separados, para não misturar. As crianças
pegavam seu prato, brigavam pelo bife maior e se sentavam no sofá,
para ver a tevê. Ele sentava à cabeceira da mesa, de onde podia ver
o jornal, pela porta da cozinha. Do lugar dela, só dava para ouvir.
Algo sobre desabrigados, vítimas, perícia, bombeiros. “O que é
que houve, amor?”
“Um
incêndio. Aquela favela lá que a gente vê no caminho da sua mãe,
sabe?”
“Deus
do céu.”
“Morreu
uma moça grávida, parece.”
Ela
se contorceu para ver. Na tela, uma senhora que não devia ter
quarenta anos, mas parecia ter mais, chorava a morte da filha, de
dezesseis. Cortava para um homem de trinta que parecia ter quarenta,
de voz embargada e uma criança pela mão. “Era nossa vida, ali. A
gente trabalha tanto pra ver tudo sumindo do dia para a noite.
Geladeira, fogão, tudo. A televisão, acabamos de comprar”.
O
filho e a filha assistiam indiferentes; já tinham terminado de
jantar. O garoto fazia Administração; a menina queria Psicologia.
Os dois iam bem na escola, eram responsáveis, não saíam muito.
Encaminhados na vida. O marido estava bem na empresa, era de
confiança lá dentro e tinha bons contatos e propostas caso
acontecesse alguma coisa. O bairro era tranquilo, sem enchentes no
verão, nem roubos a casas, nem pedintes nas ruas. Era bom assim.
Melhor
que a sua irmã, que tinha quase a sua idade e estava sendo enrolada
pelo noivo havia tantos anos. Melhor que uma de suas amigas, que
praticamente sustentava o companheiro, que nunca conseguia emprego
fixo. Melhor que a prima, que morava naquele bairro horrível e volta
e meia apanhava do marido bêbado, mas não o largava, jurando amar.
Tinham dois filhos, também, e “é horrível uma criança
crescer sem pai”, não é mesmo? Melhor assim.
Ele
tirava com cuidado sua camisa branca e a pendurava num cabide, para
não amassar. Não estava suja ainda e sua mulher poderia ser poupada
do trabalho de lavar. Pendurou as calças, dobradas no vinco, nas
costas de uma cadeira, e enrolou as meias dentro do sapato, porque
tinha ideia de que era muito ridícula a imagem de um homem nu usando
meias. A mulher já estava de camisola; tinha quarenta anos, mas era
linda.
Ele
apertava demais os seios dela, sempre. Ele não sabia nunca o que
fazer com a língua, e ele sempre entrava sem pedir, sem perguntar.
Penetrava num ângulo que a incomodava, apoiava o peso do corpo sobre
o corpo dela, tinha pelos nos ombros, nas costas. Quando começava a
ficar quase agradável e ela gemia um pouquinho, ele já aumentava o
ritmo, achando que ela estava para gozar. No fim, se enlaçava com
ela, quente, sufocante, suado.
“Preciso
tomar banho.”
“Fica
só mais um pouquinho aqui, juntinho.”
Ela,
então, esperava até que ele dormisse, e muito delicadamente
afastava o seu braço, peludo e pesado. Tomava um banho demorado,
lavando o suor do outro, o alho das mãos, o cansaço do dia, o
cheiro da obrigação.
Naquele
dia escolheu o vestido preto, um pouco apertado, que ele sempre achou
curto demais. Escolheu o batom vermelho, que só usava em casamentos
e nas raras festas. Escolheu deixar os cabelos soltos, em vez de
presos com uma piranha de plástico, como sempre usava em casa. Deu
uma última olhada no sono do homem que amava, na sua respiração
regular, ritmada; podia ouvir, ou pensava que ouvia, o som de seu
coração dali, ao lado da cama, em frente ao espelho de corpo
inteiro do guarda-roupa aberto. Pegou a bolsa que todos achavam que
era a da academia, e saiu. Descalça.
O
carro dela ficava estacionado na calçada, porque o sobrado tinha uma
vaga só. Era melhor; as crianças não escutariam o barulho do
portão, e a partida poderia ser a de qualquer carro na rua. Ao
chegar, tirou um par de botas daquela bolsa e as calçou; eram saltos
altos, altíssimos, finos, finíssimos, que a filha nunca soube que
ela tinha, ou já teria pegado, sem pedir, e estragado. Detestava ter
que se anunciar para o porteiro da noite, mas era preciso; era a
obrigação do funcionário. Melhor que não se lembrasse da sua
cara, mesmo. Subiu o elevador. Ele a recebeu na porta.
“Você
demorou...”
“Isso
é problema meu.”
“Perdão.”
“Perdão
o caralho. Me traz logo alguma coisa para beber.”
Ela
escolheu a melhor poltrona da sala, sem pedir. Ele veio da cozinha,
correndo, trêmulo, um copo na mão direita.
“O
que é isso?”
“Água?”,
ele disse, inseguro do próprio conteúdo do copo. Ela se levantou de
uma vez; o cenho franzido, os olhos muito abertos, furiosos. Ele era
mais alto, mesmo com os saltos dela, mas parecia menor, muito menor.
“Água!?
É assim que eu sou recebida? Com água? Isso é coisa que se sirva,
seu infeliz?!” Ergueu o braço direito e baixou de uma vez,
marcando a cara dele com cinco dedos vermelhos; com o golpe, ele
derrubou o copo no chão, espatifando. “E agora isso! Não tem o
menor cuidado, seu inútil. Vai limpar. Espera. Tira a roupa antes,
infeliz.”
Um
homem de meia idade, pelos grisalhos, um pouco de barriga, o pau
triste e flácido, pendurado ali, como se não pertencesse. Uma
figurinha patética, de cabeça baixa, como uma criança com medo.
“Os
sapatos também.”
“Mas
os cacos...”
“Fodam-se
os cacos. São culpa sua, os cacos. Quero mais é que você pise num
deles, que te vare o pé, que perfure uma artéria, infeliz. Quero
ver você se esvaindo em sangue no chão da sua própria sala,
desgraçado. Sabe o que eu vou fazer? Vou deixar você aqui,
sangrando feito um porco, cortar o fio do telefone, levar o seu
celular. Trancar o seu quarto, jogar pela janela as suas roupas. Você
vai ter que bater na casa de um vizinho se não quiser morrer. Vai
ter que pedir ajuda a qualquer um, com esse pau mole que não serve
para nada à mostra. E eu estarei na minha casa, rindo de você,
desgraçado. Agora vai. Limpa.”
Limpou.
Ajoelhado no chão, descalço, de cabeça baixa, enxugou a água com
um pano e recolheu os cacos maiores. Varreu, com cuidado. Ela
assistia, sentada da melhor poltrona, indiferente.
“Agora
me serve alguma coisa. Alguma coisa decente. E faz direito, como eu
te ensinei da outra vez.”
Trouxe
uma taça borbulhante da cozinha e se ajoelhou na frente dela,
curvando a cabeça até o chão. Ergueu então as duas mãos e
ofereceu a bebida, como uma dádiva preciosa a uma deusa. Ela a tomou
de suas mãos com um golpe e provou. Não disse nada. Era uma
aprovação.
Com
ele ainda na mesma posição – ela não havia dado ordem para que
se movesse – apoiou um dos saltos-agulha sobre sua nuca, pinçando
um nervo. De pernas cruzadas, as coxas grossas à mostra, bebericava
o champagne, devagar, olhando para o nada, pensando. Lembrava que não
havia tirado nada do congelador para o dia seguinte, e teria então
que passar no açougue e comprar uns bifes para o jantar, talvez
bistecas, talvez umas asas de frango.
UAU!!! Nada mais a declarar.
ResponderExcluirHahahahahahahahahah!
ResponderExcluirÓtimo!
A incrível mágica dos finais inesperados.
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