domingo, 26 de agosto de 2012

Tradução: Morri por Beleza - Emily Dickinson

Morri por Beleza, e nem tinha
Me ajeitado ao caixão
Quando um morto por Verdade pousou
Na vizinha mansão

Perguntou educado por que tombei
“Por Beleza”, respondi
“E eu por Verdade; são iguais.
Irmãos somos”. Assenti.

E então, parentes reencontrados
Pelas paredes conversamos
Até o mato nos chegar aos lábios
E cobrir os nossos nomes
____________________
Tradução minha. O original:

I died for beauty, but was scarce
Adjusted in the tomb,
When one who died for truth was lain
In an adjoining room.

He questioned softly why I failed?
"For beauty," I replied.
"And I for truth, -the two are one;
We brethren are," he said.

And so, as kinsmen met a night,
We talked between the rooms,
Until the moss had reached our lips,
And covered up our names.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Bolinhas de gude americanas


Cheiro de venda. Cheiro de doce e de álcool, de cana barata e de açúcar, da pinga deitada para o santo, numa libação pagã. O avô me pegava pela mão, depois do almoço, dizendo que me levaria para escolher um doce. A avó olhava, com aquele olhar bravo, meio desconsolado, mas ia proibir? Sabia que o que ele queria era beber.
Adiantava alguma coisa proibir? Quase todas as mulheres do bairro se perguntavam, adiantava alguma coisa proibir? Proibiam – eles faziam escondido. Então deixavam. E meu avô, como tantos avôs e pais daquela rua, pegava a menina pela mão e ia até a venda, depois de cada almoço. E a minha avó, como as outras avós, as outras mães, se trancava no quartinho dos fundos em oração, uma vela votiva que se consumia.
A venda. Não era mais do que um balcão, um cubículo erguido em tábuas à beira do quintal de alguém, um buraco retangular abrindo para a rua. A janela basculante, presa por duas dobradiças em cima, se abria e servia como toldo, apoiada por um sarrafo de madeira crua. Fechada, era uma parede cinza de tábuas pintadas, de uma cor que um dia fora verde, verde clarinho, de cal tingida. O balcão, outra tábua, onde os clientes bebiam ao lado de dois vidros enormes cheios de bolinhas de gude. O avô me pegava no colo para que eu visse de perto e me deixava escolher.
Mas a primeira coisa que eu sentia era o cheiro da venda. Aquele cheiro forte do álcool seco, cachaça ordinária, cerveja rançosa, conhaque. As garrafas forrando a parede nas prateleiras mais altas. Duas ou três marcas de pinga, os rótulos alinhadinhos, olhando para você. Conhaques, licores, batidas, um uísque nacional que não valia nada, estava ali para inglês ver. Vidros imensos de conservas, cebolinhas, tremoços, picles coloridos feitos de vários legumes afogados em vinagre. Abaixo, as prateleiras de doces. Corações alaranjados de abóbora, roxos de batata-doce, nas caixas cobertas de tule transparente, inclinadas para que a gente pudesse ver. Docinhos de amendoim, os grandes vidros de paçoca rolha, o gibi em barrinhas marrons nas caixas cobertas também. Palitinhos de doce escuro de banana cobertos de açúcar cristal; aquele docinho em copinhos comestíveis com textura de isopor. As geléias de amarelo brilhante e cor de maravilha, grudentas e azedinhas, aquelas nuvenzinhas de mocotó em rosa e branco, sem graça, mas tão lindas.
O lindo vidro das balas, giratório, de dois andares, de várias divisões. As várias marcas de caramelos de frutas, aglomeradas em seus tons pastéis, que grudavam nos dentes de trás quando a gente mastigava. As balas duras de cores brilhantes, lindas como contas de vidro, embrulhadas em seus papéis transparentes. Chicletes de figurinhas, de tatuagens – minha avó não queria que eu mascasse chiclete, tão feio mulher mascando chiclete, vovô me dava escondido. E os dois enormes vidros das bolinhas de gude. Um era o das bolinhas comuns, verdes como o musgo dos muros úmidos nas encostas em que não bate o sol. O outro, o que eu queria, era o vidro das bolinhas americanas.
Eu não jogava bolinha de gude. Isso era coisa de menino. Mas pedia sempre uma daquelas bolinhas americanas, tão lindas, de vidro transparente e ondas coloridas, que eu me perguntava como colocavam lá dentro. Ondas amarelas e cor de laranja eram as mais comuns; vermelhas, mais raras. Às vezes você achava uma onda azul, brilhante no meio do amarelo; uma vez, uma única vez, ganhei uma de onda roxa e laranja. Eram grandes e bonitas e transparentes e maravilhosas, e eu poderia passar minhas horas olhando para apenas uma, a sua superfície lisa, suas microbolhas lá dentro, as suas ondas coloridas, seu universo fechado em si. Eu tinha muito tempo naquele tempo.
A hora do almoço era a minha avó de cara amarrada, o meu avô cabisbaixo, o feijão aguado, o arroz insosso, a carne dura. A televisão ligada no jornal que passava às tardes: alguma desgraça, uma greve, um acidente no centro da cidade. Eu quase não comia. A avó me subornava, me ameaçava; eu não comia. Não comia porque sabia que depois do almoço meu avô me pegaria pela mão, até a venda. Eu escolheria um doce, talvez uma bolinha de gude se ele tivesse dinheiro, uma dúzia de balas ou algum chiclete. Vovô apoiava o braço no balcão e bebericava o seu quinhão da vida, devagar, olhando o mundo. Eu me sentava na beira da calçada, comendo meus doces, colando as tatuagens de chiclete no braço com cuspe, admirando o universo dentro das minhas bolinhas de gude americanas.
Não ia para a escola ainda, mas já sabia ler. Meu tio vinha uma vez por semana e me trazia um bocado de gibis, que eu lia trancada no quarto. Preenchia os passatempos. Acabavam logo. Desenhos animados, só tinha de manhã. Às vezes eu dobrava o espelho triplo da penteadeira que havia sido da bisavó, deixando os dois espelhos laterais paralelos, e ficava ali, vendo um espelho se refletir no outro, se refletir no outro, se refletir no outro. Não havia muitas crianças da minha idade na rua, e eu não queria brincar com elas. Eu não queria sair da minha bolha, da minha bolinha de gude americana, transparente e colorida dos doces que havia na venda.
Não saíamos. Médico, de vez em quando. Teve aquela vez em que a avó me levou ao dentista tratar dos meus dentinhos de leite cariados, a desgraça que os doces da venda estavam me causando. Centro da cidade. Paramos numa igreja: vovó queria acender uma vela. “Pro seu avô parar de beber”.
Um quartinho na lateral da igreja guardava as velas dos esperançosos. Prateleiras cobriam as paredes, repletas de votivas brancas pingando, grandes e pequenas, altas e baixas, como uma fileira de dentes podres. Quente, abafado, sem janelas; as paredes se cobriam de fuligem negra.
“Tá vendo essa camada preta? É assim que seus dentes ficam quando você come muito doce.”
Me arrancaram dois molares. Nunca parei de comer doces.
Uma única vez eu pedi e o meu avô me deixou provar um pouco do copo dele. Deixou sabendo o que aconteceria, e riu da minha cara feia quando eu engoli. Um golezinho só, que me fez arder. Era cachaça, álcool puro, e me desceu pela garganta fervendo, queimando, furioso. O fogo que me descia na garganta era o mesmo fogo das velas do quartinho, o mesmo fogo que consumia o corpo do meu avô, o fogo que consumia o coração da minha avó.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Álbum

Coletava meticulosamente as imagens da mãe enquanto era tempo.
Puxava do fundo das gavetas. As vezes em que ela a levava ao médico, pequena – as longas horas em um, dois, três ônibus, o metrô. O metrô, aquela estranha esfinge, os ícones gravados nas paredes com uma criança irremediavelmente perdida no vão entre o trem e a plataforma. Nunca chegou a perder o medo do metrô. Sonhava com ele, com descidas temerárias à via, com a arqueologia dos túneis estranhos, escuros, abafados, uterinos.
A voz. Aos doze anos, treinava a voz para que se parecesse com a da mãe, aveludada como um licor de creme. A cadência suave, cantada. Grave. Era grave desde que ela se lembrava. A idade e o cigarro lhe trouxeram um toque harmonioso de rouquidão.
A cara concentrada e meio frustrada de quando errava o ponto no crochê, desmanchava e o refazia. Os dedos lépidos, sobrancelhas franzidas. Aquela era nova, ou ela nunca havia prestado atenção. Fotografava com os olhos, recortava, colava cuidadosamente no álbum da memória. Suspirou. Um suspiro longo, pesado, do fundo do diafragma.
- Que foi?
- Estou pensando se ainda tem algo para comer na cozinha.
“Vocês precisam ser fortes por mim”, a mãe havia dito. “Por que eu preciso ser forte. Não quero ver ninguém de cabeça baixa. Ou eu fico de cabeça baixa também”.
Talvez estivesse sofrendo por antecipação. Talvez não fosse nada. Não – nada não era, não se perde os cabelos por nada – mas podia ser aquilo só, e ela se recuperaria e voltaria ao seu sempre normal. Independente disso, o sempre – sabia agora – não era mais para sempre. Ela se remoía por dentro, tentando aceitar a súbita certeza da finitude.
Fotografava avidamente a mãe ao telefone, cruzando as pernas, bebendo água. Subindo as escadas para ir dormir – uma última imagem para aquele dia. Subiu ao seu quarto também, e se deitou. A luz acesa, os olhos vidrados no teto.
O branco irremediável do teto. O branco impoluto, rígido e inevitável. A escuridão das origens ainda podia ser macia, quente, acolhedora, mas a inevitável eternidade por vir era branca e dura, imensa e fria como uma planície polar. A matéria negra do universo talvez contenha tudo oculto em si, mas se na luz absoluta não se vê nada, nada haverá.