segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Álbum

Coletava meticulosamente as imagens da mãe enquanto era tempo.
Puxava do fundo das gavetas. As vezes em que ela a levava ao médico, pequena – as longas horas em um, dois, três ônibus, o metrô. O metrô, aquela estranha esfinge, os ícones gravados nas paredes com uma criança irremediavelmente perdida no vão entre o trem e a plataforma. Nunca chegou a perder o medo do metrô. Sonhava com ele, com descidas temerárias à via, com a arqueologia dos túneis estranhos, escuros, abafados, uterinos.
A voz. Aos doze anos, treinava a voz para que se parecesse com a da mãe, aveludada como um licor de creme. A cadência suave, cantada. Grave. Era grave desde que ela se lembrava. A idade e o cigarro lhe trouxeram um toque harmonioso de rouquidão.
A cara concentrada e meio frustrada de quando errava o ponto no crochê, desmanchava e o refazia. Os dedos lépidos, sobrancelhas franzidas. Aquela era nova, ou ela nunca havia prestado atenção. Fotografava com os olhos, recortava, colava cuidadosamente no álbum da memória. Suspirou. Um suspiro longo, pesado, do fundo do diafragma.
- Que foi?
- Estou pensando se ainda tem algo para comer na cozinha.
“Vocês precisam ser fortes por mim”, a mãe havia dito. “Por que eu preciso ser forte. Não quero ver ninguém de cabeça baixa. Ou eu fico de cabeça baixa também”.
Talvez estivesse sofrendo por antecipação. Talvez não fosse nada. Não – nada não era, não se perde os cabelos por nada – mas podia ser aquilo só, e ela se recuperaria e voltaria ao seu sempre normal. Independente disso, o sempre – sabia agora – não era mais para sempre. Ela se remoía por dentro, tentando aceitar a súbita certeza da finitude.
Fotografava avidamente a mãe ao telefone, cruzando as pernas, bebendo água. Subindo as escadas para ir dormir – uma última imagem para aquele dia. Subiu ao seu quarto também, e se deitou. A luz acesa, os olhos vidrados no teto.
O branco irremediável do teto. O branco impoluto, rígido e inevitável. A escuridão das origens ainda podia ser macia, quente, acolhedora, mas a inevitável eternidade por vir era branca e dura, imensa e fria como uma planície polar. A matéria negra do universo talvez contenha tudo oculto em si, mas se na luz absoluta não se vê nada, nada haverá.

2 comentários:

  1. Conciso e maduro. Ótimo conto.

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  2. Não sabia que você escrevia contos! ;-)) Só conhecia teu talento para ótimos tweets.
    Gostei do carinho com o qual você trata as palavras. Teu estilo é bonito, lembra o dos grandes autores Modernistas brasileiros.
    Ver a palavra ''arqueologia'' me fez sorrir!
    Parabéns, Daniele.

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