Cheiro de venda. Cheiro de doce e de álcool, de cana barata e de
açúcar, da pinga deitada para o santo, numa libação pagã. O avô
me pegava pela mão, depois do almoço, dizendo que me levaria para
escolher um doce. A avó olhava, com aquele olhar bravo, meio
desconsolado, mas ia proibir? Sabia que o que ele queria era beber.
Adiantava alguma coisa proibir? Quase todas as mulheres do bairro se
perguntavam, adiantava alguma coisa proibir? Proibiam – eles faziam
escondido. Então deixavam. E meu avô, como tantos avôs e pais
daquela rua, pegava a menina pela mão e ia até a venda, depois de
cada almoço. E a minha avó, como as outras avós, as outras mães,
se trancava no quartinho dos fundos em oração, uma vela votiva que
se consumia.
A venda. Não era mais do que um balcão, um cubículo erguido em
tábuas à beira do quintal de alguém, um buraco retangular abrindo
para a rua. A janela basculante, presa por duas dobradiças em cima,
se abria e servia como toldo, apoiada por um sarrafo de madeira crua.
Fechada, era uma parede cinza de tábuas pintadas, de uma cor que um
dia fora verde, verde clarinho, de cal tingida. O balcão, outra
tábua, onde os clientes bebiam ao lado de dois vidros enormes cheios
de bolinhas de gude. O avô me pegava no colo para que eu visse de
perto e me deixava escolher.
Mas a primeira coisa que eu sentia era o cheiro da venda. Aquele
cheiro forte do álcool seco, cachaça ordinária, cerveja rançosa,
conhaque. As garrafas forrando a parede nas prateleiras mais altas.
Duas ou três marcas de pinga, os rótulos alinhadinhos, olhando para
você. Conhaques, licores, batidas, um uísque nacional que não
valia nada, estava ali para inglês ver. Vidros imensos de conservas,
cebolinhas, tremoços, picles coloridos feitos de vários legumes
afogados em vinagre. Abaixo, as prateleiras de doces. Corações
alaranjados de abóbora, roxos de batata-doce, nas caixas cobertas de
tule transparente, inclinadas para que a gente pudesse ver. Docinhos
de amendoim, os grandes vidros de paçoca rolha, o gibi em barrinhas
marrons nas caixas cobertas também. Palitinhos de doce escuro de
banana cobertos de açúcar cristal; aquele docinho em copinhos
comestíveis com textura de isopor. As geléias de amarelo brilhante
e cor de maravilha, grudentas e azedinhas, aquelas nuvenzinhas de
mocotó em rosa e branco, sem graça, mas tão lindas.
O lindo vidro das balas, giratório, de dois andares, de várias
divisões. As várias marcas de caramelos de frutas, aglomeradas em
seus tons pastéis, que grudavam nos dentes de trás quando a gente
mastigava. As balas duras de cores brilhantes, lindas como contas de
vidro, embrulhadas em seus papéis transparentes. Chicletes de
figurinhas, de tatuagens – minha avó não queria que eu mascasse
chiclete, tão feio mulher mascando chiclete, vovô me dava
escondido. E os dois enormes vidros das bolinhas de gude. Um era o
das bolinhas comuns, verdes como o musgo dos muros úmidos nas
encostas em que não bate o sol. O outro, o que eu queria, era o
vidro das bolinhas americanas.
Eu não jogava bolinha de gude. Isso era coisa de menino. Mas pedia
sempre uma daquelas bolinhas americanas, tão lindas, de vidro
transparente e ondas coloridas, que eu me perguntava como colocavam
lá dentro. Ondas amarelas e cor de laranja eram as mais comuns;
vermelhas, mais raras. Às vezes você achava uma onda azul,
brilhante no meio do amarelo; uma vez, uma única vez, ganhei uma de
onda roxa e laranja. Eram grandes e bonitas e transparentes e
maravilhosas, e eu poderia passar minhas horas olhando para apenas
uma, a sua superfície lisa, suas microbolhas lá dentro, as suas
ondas coloridas, seu universo fechado em si. Eu tinha muito tempo
naquele tempo.
A hora do almoço era a minha avó de cara amarrada, o meu avô
cabisbaixo, o feijão aguado, o arroz insosso, a carne dura. A
televisão ligada no jornal que passava às tardes: alguma desgraça,
uma greve, um acidente no centro da cidade. Eu quase não comia. A
avó me subornava, me ameaçava; eu não comia. Não comia porque
sabia que depois do almoço meu avô me pegaria pela mão, até a
venda. Eu escolheria um doce, talvez uma bolinha de gude se ele
tivesse dinheiro, uma dúzia de balas ou algum chiclete. Vovô
apoiava o braço no balcão e bebericava o seu quinhão da vida,
devagar, olhando o mundo. Eu me sentava na beira da calçada, comendo
meus doces, colando as tatuagens de chiclete no braço com cuspe,
admirando o universo dentro das minhas bolinhas de gude americanas.
Não ia para a escola ainda, mas já sabia ler. Meu tio vinha uma vez
por semana e me trazia um bocado de gibis, que eu lia trancada no quarto. Preenchia os passatempos. Acabavam logo. Desenhos
animados, só tinha de manhã. Às vezes eu dobrava o espelho triplo
da penteadeira que havia sido da bisavó, deixando os dois espelhos
laterais paralelos, e ficava ali, vendo um espelho se refletir no
outro, se refletir no outro, se refletir no outro. Não havia muitas
crianças da minha idade na rua, e eu não queria brincar com elas.
Eu não queria sair da minha bolha, da minha bolinha de gude
americana, transparente e colorida dos doces que havia na venda.
Não saíamos. Médico, de vez em quando. Teve aquela vez em que a
avó me levou ao dentista tratar dos meus dentinhos de leite
cariados, a desgraça que os doces da venda estavam me causando.
Centro da cidade. Paramos numa igreja: vovó queria acender uma vela.
“Pro seu avô parar de beber”.
Um quartinho na lateral da igreja guardava as velas dos esperançosos.
Prateleiras cobriam as paredes, repletas de votivas brancas pingando,
grandes e pequenas, altas e baixas, como uma fileira de dentes
podres. Quente, abafado, sem janelas; as paredes se cobriam de
fuligem negra.
“Tá vendo essa camada preta? É assim que seus dentes ficam quando
você come muito doce.”
Me arrancaram dois molares. Nunca parei de comer doces.
Uma única vez eu pedi e o meu avô me deixou provar um pouco do copo
dele. Deixou sabendo o que aconteceria, e riu da minha cara feia
quando eu engoli. Um golezinho só, que me fez arder. Era cachaça,
álcool puro, e me desceu pela garganta fervendo, queimando, furioso.
O fogo que me descia na garganta era o mesmo fogo das velas do
quartinho, o mesmo fogo que consumia o corpo do meu avô, o fogo que
consumia o coração da minha avó.
Lindo. Suas palavras hipnotizam, e vão me guiando até o último ponto final; o pesaroso ponto final.
ResponderExcluirMuito bom.
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