Barata. As mãozinhas de plástico cheias de rebarbas, que na certa
vão machucar a pele fina das mãozinhas que brincarão com ela. Os
olhos vítreos, azuis, não se mexiam, e nem mesmo um fio de cabelo
de náilon loiro ela podia ter. Mas era uma boneca numa caixa, e foi
isso, afinal, o que a menininha pediu.
A menininha em questão era a neta da senhora que vinha toda sexta
buscar o lixo seco para reciclar. Tinha uns quatro anos e olhos
grandes, marrons e redondos. O cabelo armadinho preso num pompom
atrás, e chumaços dele vazando pela frente, à guisa de franja.
Bochechas redondas e dentes branquinhos, pequenos, de leite. Roupas
de malha rosa, meio puídas, mas muito limpas, estampadas com algum
desses personagens que as meninas gostam, a Barbie, a Mônica, as
princesas da Disney. Vinha de mãos com a avó, uma velha magra de
dentes ruins. Ela perguntou, por perguntar, o que a menininha queria
ganhar de natal. “Uma boneca numa caixa”, foi a resposta.
Deu um sorriso e passou a mão nos seus cabelos fofos. A senhora dos
recicláveis sorriu amarelo de volta. Até semana que vem, ela se
despediu, Deus lhe abençoe, a velha respondeu. Uma boneca numa
caixa. A fantasia, talvez, de ganhar um presente numa caixa bonita
com laço de fita, como se vê na tevê, em vez de pacotes disformes
de papel estampado.
No dia seguinte, passeando no shopping depois do cinema, a vista da
vitrine de uma loja de brinquedos a levou de volta mais de vinte
anos, ao grande quintal de terra da casa de uma amiga, ali no seu
velho bairro, quando ainda havia quintais de terra naquele bairro.
Porque quintais civilizados, aplainados e cimentados, eram uma prova
de riqueza de gente que tinha tão pouco a ostentar. O quintal da
colega era inteiro de terra, mas um caminho de cascalho mantinha a
gente sem lama até chegar à casinha de tijolos no fundo. Caiada.
Três cômodos cobertos com brasilit, goteiras aparadas por latas e
panelas. Num dia de chuva assim não se tinha muito o que fazer além
de brincar de qualquer coisa lá dentro.
Ela adorava o sofá daquela casa, um carmim hollywoodiano, ainda que
desbotado. Em dias de chuva assim ela gostava mesmo de jogar ludo no
tabuleiro de papel cartão, mas a amiga queria brincar de casinha,
então brincariam de casinha. Afastaram o sofá da parede delimitando
o pequeno cômodo inexistente com um muro carmim, e os dois muros
caiados, da sala real, e a porta, que era só um vazio. Caixas de
sapatos eram os móveis, fogão. Ela era o papai, a amiguinha a
mamãe. Os filhos, um urso encardido e descosturado, as tripas de
enchimento mal presas por uma cicatriz de pontos visíveis em linha
grossa; uma solitária boneca, talvez mais velha que as duas meninas,
que havia sido de alguém; isso era denunciado por seu cabelo loiro
emaranhado e o vestidinho costurado à mão, mas muito limpo, de
tecido rosa.
A mãe trabalhava. A menininha era cuidada pela avó porque não
conseguiram vaga na creche municipal. Moravam, as três e um avô,
numa casa sem reboco num terreninho de fundos cedido de favor. O
velho tinha a profissão de engraxate, mas ao que parece saía de
casa apenas para beber, sob o pretexto de ir trabalhar. O dinheiro
não chegava para brinquedos e roupas novas; tudo o que a menininha
tinha era usado, comprado nos bazares da igreja ou recebido de
conhecidos, esmola disfarçada de presente.
Às vezes, nos recicláveis, talvez surgisse uma caixa cor de rosa
amassada, da boneca nova de alguém. A avó separaria o plástico que
servia de vitrine e desmontava o resto para a pilha de papelão.
Nunca uma caixa rosa, fechada e nova, brilhante, com uma boneca presa
nos arames lá dentro, como as que luziam na vitrine da loja
iluminada. Prateleiras e prateleiras cobertas de cor-de-rosa,
pequenas vitrines exibindo manequins em forma de bebês ou miniaturas
de mulheres adultas, de olhos grandes e vítreos, cabelos de náilon
loiros, luzidios. Bochechas redondas e lábios meio abertos, meio
sorrindo, braços plásticos terminando em mãos gorduchas, roupinhas
em tons pastéis. Um cartaz amarelo anunciava uma bonequinha muito
simples, muito limpa, sem sapatos nem mamadeira, um vestidinho que
não era mais que dois pedaços de pano franzido. Barata. Olhos
luzidios de azul olhavam para ela sem piscar, sem pedir nada.
Olhavam, só. Pegou, passou no caixa, sem nem pensar. Barata. Uma
boneca numa caixa.
Colocou o brinquedo em sua caixa rosa aos pés da árvore de natal,
seus olhos azuis brilhando com as luzinhas de enfeite. Pelo menos um
presente, novinho, só dela, a menininha teria. Teve muito orgulho de
sua atitude, afinal o mundo seria um lugar melhor de se viver se
todos fizessem sua parte, os que têm partilhando com os que não
têm, etc. etc.
Os olhos azuis da boneca refletiam o brilho multicor da árvore e do
presépio. Uma miríade de cores luminosas dançava no fundo da
lapinha de fibra ótica, iluminando o menininho Jesus em sua
manjedoura. Pobrezinho, nasceu em Belém. E pobrezinho assim ainda
ganhou presentes, mesmo que com um pouco de atraso, presentes de
ouro, incenso e mirra. O que era uma bonequinha barata comparada o
ouro, incenso e mirra? Mas pensando bem, o que é que uma menininha
de quatro anos vai fazer com ouro, incenso e mirra? E continuou
tomando seu café da manhã de domingo.
Segunda, cansada como as segundas. A boneca a recebeu com seu meio
sorriso, os olhos lânguidos espelhando a luz multicor do presépio.
Cara de sonsa, ela pensou, sem se dar conta. Fez um chá para si e
voltou para a sala, e a boneca ainda lá, olhando. Sentou-se em outro
lugar, outro ângulo, de onde não poderia ser vista.
No dia seguinte, tentando jantar, teve a sensação de estar num
restaurante de grandes janelas, repleto de meninos de rua do lado de
fora. A comida, lasanha congelada, nem era muito de se cobiçar, mas
ainda assim se sentia observada. O garfo parava no meio do caminho; a
comida fazia força para descer. Mas estava ruim mesmo, insossa. Uma
refeição de dez reais, assim, sem sabor; se ela tivesse feito arroz
com ovo estaria melhor, e muito mais barato. Certeza.
O que a menininha estaria comendo agora?
Talvez ela pudesse – devesse – dar alguma coisinha a mais para a
família da menina. Talvez um franguinho, para eles assarem, um
panetone. Talvez até uma bonequinha melhor. Uma caixinha. Não, a
caixinha é melhor não. Se o avô achar o dinheirinho delas vai
beber tudo.
Na quarta era dia de rodízio, e ela voltava de ônibus. Uma chuva
dessas mitológicas, de dezembro, travava o trânsito ainda mais do
que o normal. Estava esperando terminar as prestações do carro novo
para comprar um de reserva, que fosse um fusquinha velho, até para
não pagar IPVA. Lembrou do primeiro carro do pai: um fusca verde
bandeira, já muito velho quando ela ainda era nova, mas o pai o
guiava com o orgulho de um rolls royce. Seu próprio primeiro carro
tinha sido um chevetinho prata, ancião, mas ela batalhou muito e foi
trocando, até enfim conseguir comprar um zero. Alguns anos de
prestações, mas valia a pena. IPVA e seguro, mas valia a pena. A
mensalidade abusiva do estacionamento perto do escritório, um roubo,
mas um roubo que valia a pena. O que não valia a pena era ficar
aqui, presa nesse ar viciado, repleto de gente suada, barulhenta.
Sentou a seu lado uma mãe, um bebê de colo, outra criança. Ajeitou
a mais velha de pé, entre o encosto da frente e suas próprias
pernas, para que ela não caísse nem fosse esmagada pela massa do
corredor. O ônibus sacolejava, a turba balançava junto para lá,
para cá, como um pasto de capim alto ao vento. A menina balançava,
quase caía, se apoiava nela; o bebê não parava de chorar.
“Quietinha”, dizia a mãe, “quietinha, senão a moça vai achar
ruim”. Ela balançava a cabeça num sorriso condescendente: “Tudo
bem”. Não estava tudo bem, mas tudo bem. Tudo bem.
Em casa a boneca a recebeu com seus olhos de sempre, o mesmo meio
sorriso de escárnio. “Você queria que eu fizesse o quê?” Se
assustou ao ouvir a própria voz, e alta.
Falando sozinha. Estava ficando maluca. É o cansaço, pensou,
trabalho demais, mas logo teria uns dias de recesso para descansar.
Praia. Sol. Fazer nada, pensar em nada. Paz.
Dormiu pouco e mal naquela noite. Gritou com o estagiário e
destratou a mocinha da faxina, no dia seguinte. Pediu desculpas aos
dois, mas o escritório inteiro já havia espalhado que ela estava
“naqueles dias”.
Na volta, passou no mercado. Não um supermercado. Um hipermercado,
desses enormes, imensos, na marginal. Lembrava dos grandes magazines
da sua infância, onde era fácil demais se perder nos corredores de
balas e brinquedos e encontrar a mãe desesperada procurando entre as
araras de roupas infantis. A luz fria inexorável contrastava com o
lusco-fusco lá fora; lá dentro, fileiras e fileiras coloridas de
embalagens plásticas padronizadas seguiam em sequência, como as
fileiras de uma legião romana. Uma seção de roupas, de
eletrônicos, de jardinagem, até de brinquedos.
Caixas e mais caixas de papelão brilhante, cor de rosa, estampado;
dentro, centenas, milhares talvez, de cabeleiras louras e dedos
gorduchos de plástico, meios sorrisos entreabertos e vestidinhos em
tons pastéis. E olhos, uma infinitude de olhos azuis, fazendo o que
olhos fazem: olhando.
Uma criança pequena, desgarrada da mãe, levava uma grande caixa
rosa no colo. Uma boneca loura, meiga, a boca entreaberta em meio
sorriso, os enormes olhos redondos. Azuis. Vinha em sua direção.
Virou o carrinho, quase correndo, no rumo dos congelados. Um frango,
não, um chester. Um peru, colossal, daqueles que alimentam cinco
famílias; a ave devia pesar mais que o menino jesus aos dois anos.
Mamíferos também: um pernil gordo, gigantesco, um tender, o maior
que encontrou. Frutas secas, cristalizadas, carameladas de açúcar
brilhante; cerejas vermelhas como uma bola de vidro espelhado.
Panetones de todos os tipos, todos os recheios possíveis, alguns
improváveis; farofa e salpicão da rotisseria. No caixa, a conta, um
polpudo valor de três dígitos, pago à vista.
“Os natalinos a gente parcela em três vezes.”
“Não, não, mocinha. À vista.”
Fileiras e fileiras de caixas cor de rosa, empilhadas. Uma escada
para o céu de prateleiras, repletas de caixas brilhantes. A de baixo
avançava alguns centímetros; a imediatamente superior descia e
tomava o seu lugar. Então avançava também, tomando o lugar da
primeira, que já estava à frente, seguindo e formando as filas de
um exército, uma organizada centúria de bonecas louras e meigas.
Liderando a tropa, aquela: a bonequinha barata, sem cabelos louros, a
boca entreaberta num esgar de escárnio, os olhos fixos, azuis,
mortais. As mãozinhas de plástico barato, cheias de rebarbas,
machucaram bem mais que o necessário quando a boneca arrancou os
olhos dela.
As luzes coloridas no pinheirinho plástico dançavam sua dança
costumeira. Longe, na rua, uma motocicleta ruge. Sente um frio
molhado em suas costas. Acorda. Vê.
As compras em sacolas brancas farfalhantes jazem, silenciosamente, no
chão. As carnes lentamente descongelam, encharcando o tapete onde
ela está deitada. A caixa cor de rosa da boneca jaz, caída ao lado
da árvore; ela não vê os seus olhos. Duas da manhã. Vai dormir.
A velha vem buscar o lixo, como sempre, a menininha grudada em sua
mão. O cabelo fofo, os olhos redondos, bonitos, marrons.
"A gente não vem semana que vem, nem na outra."
"Ah, vocês vão viajar?"
A avó cora sob a pele ocre. "Não", começa a dizer sem
jeito, "é que o ferro velho não abre... Só em janeiro, agora".
"Ah..."
Saem sem saber de nenhum presente. Nem uma caixinha, nada. O saco preto reluzente, no entanto,
segue cheio e pesado no carrinho como poucas vezes. Em casa, no
quintal, a separar, a primeira coisa que a avó vê é a grande caixa
cor de rosa. Mas não está vazia.
Dentro, as mãozinhas gorduchas de plástico barato têm rebarbas
feias, que machucam. Um vestidinho rosa, bem limpo, e a cabeça
emborrachada sem cabelos. A boca, rosada, estava entreaberta num meio
sorriso doce. E no lugar em que estariam os olhos, tudo o que havia
eram dois grãos de treva.