sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Meninos


 A carne é rígida e frágil. Uma esponja, uma esponja repleta, sólida de sangue; corpo cavernoso, eles chamam, estranho nome subterrâneo para o corpo orgulhoso que aponta para o céu. A pele é lisa, tesa, envolta de veias azuis ou verdes, saltadas ou não, como as trepadeiras que cingem a única árvore que se ergue soberba no centro de um jardim.
Mas frágil; minutos de movimento e ele se dissolve num buquê de flores brancas, que se espalham, se desfazem; o corpo se retrai e se esconde sob seu véu humilde e amarrotado. Torna-se um potencial, apenas, um pedacinho de pele pendurada. Vacilante. Pequeno. Que pode falhar numa próxima vez, e às vezes falha.
O medo eterno de falhar acompanha vocês para sempre, ainda que nunca se tenha falhado, ainda que nunca se falhe. A defesa de vocês contra esse medo é essa eterna superafirmação de seu poder, que todos os meninos, em todas as culturas, têm. Vocês compram carros potentes, relógios enormes, contam histórias da carochinha tendo a si próprios como protagonistas. Constroem imensas pirâmides, obeliscos, arranha-céus, castelos no ar.
Meninos. A gente tem que amar os seus disfarces.
Nenhum de vocês se ilude quanto ao próprio poder – pelo contrário, muitos acham que podem menos do que realmente são capazes. Alguns ainda acreditam que conseguem nos enganar; outros já perderam essa ilusão há muito tempo, mas muitos ainda tentam, por que é seu instinto. Algumas de nós talvez ainda caiam na conversa – as mais novas, ingênuas, as bobas. Talvez por isso alguns de vocês prefiram as jovenzinhas.
Mas mesmo nós que não nos enganamos mais, nós amamos o seu teatrinho, meninos. Amamos cada coisa que vocês fazem pela gente.
Claro, há exceções. Os que não são capazes sequer dos castelos no ar se afirmarão pela violência: a força dos braços, o tom da voz que levanta, numa tentativa de fazer parecer que tudo em vocês é maior. Nós não somos fortes como vocês. Algumas de nós conseguirão fugir, outras se submeterão, e então vocês vencem. E vocês terão para si uma mulher incompleta, que só permanece a seu lado pelo medo – o medo de ficar sozinha, de ser incapaz, o puro e simples medo físico. E essa é a única submissão imperdoável.
Aceitamos muita coisa por vocês. Toleramos muita coisa. Perdoamos até mesmo uma língua que não nos representa, em que apenas um átomo de presença masculina muda nosso gênero. Relevamos palavras que quase nos humilham; engolimos nosso próprio orgulho em benefício do seu. Por que para nós é bobagem. Para vocês é importante.
Na má literatura, o homem possui, a mulher se entrega. Na vulgaridade, ele come, ela dá; na vida, dançam. Conduzem, cada um a seu tempo, mãos que levam, pernas que embalam, línguas trançando-se tolas, olhos que fecham, que abrem, penumbra, a umbra, o jogo. Ninguém ganha. Ninguém deve ganhar. Ninguém perde, tampouco. A luz - o estrondo, o clarão - um holofote entre nuvens, pairando longos segundos, ou o raio, colosso, tonitruante e breve - a luz há de vir. Há de vir para os dois. Vem uma vez ou mais, em separado ou juntos, ápice de cada dança, mas há de vir. Ao menos é assim que deve ser.

6 comentários:

  1. Adorei! E finalmente um blog com textos justificados nessa internet.

    ResponderExcluir
  2. Sensacional, Danieli.
    Nunca tinha nos visto por esse ângulo - ou tento mais uma vez me enganar, como os garotos do seu texto.
    Parabéns. E obrigado por participar da nossa corrente!

    ResponderExcluir
  3. Nossa! Que força, que delícia de ler, parabéns!

    Acho que todos nós ganhamos algo - com textos como este.
    AMEI.

    ResponderExcluir
  4. Meninos são tão complicados mas o seu texto ficou ótimo! :)

    ResponderExcluir
  5. Moça, que texto lindo. Apaixonei-me desde o início. Início, aliás, espetacular.

    ResponderExcluir