sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

O nascimento de Vênus


Imposto sobre o beijo. Já tem.
Você pode pagar numa conta com franquia mensal, com a quantidade de beijos que acha que vai dar no mês (o excedente sai bem mais caro, evidente), ou comprar fichas de beijo pré-pagas nas lotéricas. O controle dos beijos do cidadão, eles dizem, é em prol da família brasileira, uma benesse, eles dizem, não um encargo. A esposa zelosa compara seu extrato de beijos com o do marido; o marido infiel compra fichas pré-pagas para suas escapadas. No fim do ano fiscal, na hora da prestação de contas, o esperto marido manda a de ambos para um discreto contador, de total confiança.
Aos pobres, mesmo os dez centavos de uma fichinha da lotérica fazem falta. Alguns casais acabam cortando o beijo do orçamento doméstico, nem tem mesmo tempo para isso, é tanta coisa, criança, dois empregos, conta pra pagar. Outros, que ainda não se apagaram, fazem as fichas durarem com beijos longos, profundos, de novela, de cinema.
Eles já faziam isso com o imposto do sexo, que veio antes. Como é bem difícil, às vezes, saber quando começa e quando terminou, o governo cobra por orgasmo, de cada indivíduo em separado. Em parte é uma medida de controle de natalidade também. Daí que os pobres se tornaram praticamente especialistas em tantra – nos salões de beleza as mulheres trocam dicas, aberta e escandalosamente, nos bares, os homens conspiram na surdina, e se ensinam maneiras de segurar ao máximo, de fazer durar, de gozar depois de uma, duas, três horas de prazer ininterrupto.
Mães e pais ciosos recebem chocados a correspondência de cobrança das atividades dos filhos. “A gente precisa ter uma conversa séria”, todos dizem, às vezes em tom de bronca, às vezes de condescendência. Às vezes, a conversa séria é só sobre dinheiro mesmo; castigos e mesadas cortadas até que a enorme conta seja paga. Alguns recorrem, como se recorre à multas. Poucos ganham. Sempre há provas.
Um jovem casal, na praia. Eles são belos e tem em si a paixão furiosa, o desejo sem comportas de uma tempestade. Os corpos grudam de sal, de areia. Eles entram no mar de mãos dadas e vão se afastando, para longe dos pais, da sociedade, das câmeras, dos controles. Vão sem medo.
O mar já está na altura de seus quadris, que mãos sôfregas agarram. Puxam seus corpos de encontro um ao outro; mãos se entrelaçam nas costas, onde as ondas batem, amalgamando troncos; as bocas engolem uma à outra. O sal do suor já é o mesmo sal do mar; as pernas dela enlaçam as dele; sexos se soltam, se tocam.
“Vem”, ela diz. A água já cobre suas cabeças, os cabelos flutuando como águas-vivas em meio à espuma do mar, ao caldo primordial, à própria origem da vida.

Um comentário:

  1. O delírio vs. a realidade. Estão distantes? Se estão as dobras do tempo ajudam a resolver isto, afinal, já não se paga por beijo, sexo ou amor? Não falo de prostituição, falo de amor mesmo. Tudo é uma contribuição pecuniária. E longe deste comentário de soar como crítica, não, a natureza inteira tem a sua forma de separar indivíduos, pelo porte, pelo tamanho da cauda, pela bravura. Nós temos a nossa: dinheiro, poder. Por sorte o governo ainda não se meteu nisso Mas há algo bem mais tocante e importante: sexo é violência. Até na espuma branca do mar. Ou principalmente quando nela.

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