domingo, 8 de janeiro de 2012

A gaiola dourada


A gordura na panela borbulhava dourada, rumorejante, como uma nascente em dia de sol. A cebola, de um claro verde de limo, de pedrinhas de fundo, ia ficando transparente, enquanto o alho, descascado e espremido na hora, se tornava opaco. Duas medidas de arroz branco, exatas, mexidas e reviradas com a colher de pau, até que o branco se torne mais branco se torne mais branco; quatro medidas de água, sal, e a panela tampada, até secar. Era assim que o arroz ficava soltinho, soltinho como ele gostava.
É que eles tiveram que dispensar a empregada depois que ela foi demitida. Ele não se importava de segurar as contas, mas é claro que teriam que cortar despesas, e ela ia ficar em casa mesmo... Com ela, o arroz ficava mais soltinho, as camisas mais bem passadas, a casa muito mais limpa. Empregada não tem cuidado, ele dizia, faz tudo de qualquer jeito; a gente cuida muito melhor do que é da gente mesmo.
Graças a Deus o menino tinha passado numa universidade pública, e o cursinho da menina era só pro ano que vem. E a casa – um sobradinho de três quartos, quintal, num bairro distante mas muito tranquilo – estava quitada. Claro que continuava a procurar emprego, mas o marido se recusava a aceitar que ela ganhasse menos do que no trabalho anterior: “Pra você ganhar essa miséria é melhor ficar em casa”. Mas as empresas agora só queriam jovenzinhos recém-formados ganhando salário de fome, e ela já tinha, afinal, quarenta anos.
Ela ainda tinha quarenta anos. Ela só tinha quarenta anos.
Quarenta anos e dois filhos quase adultos, um menino que deixava a toalha molhada na cama e uma menina que estragava todos os seus sapatos bons, além de um marido incapaz de fritar um ovo. Quarenta anos e sua única viagem para o exterior havia sido um pacote quatro-dias-três-noites para Buenos Aires, que o marido havia comprado porque todos no escritório estavam indo para lá. Quarenta anos e sua maior ousadia havia sido uma vez descer de tirolesa no hotel fazenda, num feriado de Corpus Christi, apavorada, para nunca mais.
Os grãos escuros do feijão caíam da concha e se espalhavam pelo fundo do prato. O branco do arroz era servido por cima, contrastando no escuro do caldo grosso, cheiroso de toicinho e alho. Esse era o prato dele. O menino exigia o feijão por cima do arroz, e a menina queria os dois lado a lado, separados, para não misturar. As crianças pegavam seu prato, brigavam pelo bife maior e se sentavam no sofá, para ver a tevê. Ele sentava à cabeceira da mesa, de onde podia ver o jornal, pela porta da cozinha. Do lugar dela, só dava para ouvir. Algo sobre desabrigados, vítimas, perícia, bombeiros. “O que é que houve, amor?”
“Um incêndio. Aquela favela lá que a gente vê no caminho da sua mãe, sabe?”
“Deus do céu.”
“Morreu uma moça grávida, parece.”
Ela se contorceu para ver. Na tela, uma senhora que não devia ter quarenta anos, mas parecia ter mais, chorava a morte da filha, de dezesseis. Cortava para um homem de trinta que parecia ter quarenta, de voz embargada e uma criança pela mão. “Era nossa vida, ali. A gente trabalha tanto pra ver tudo sumindo do dia para a noite. Geladeira, fogão, tudo. A televisão, acabamos de comprar”.
O filho e a filha assistiam indiferentes; já tinham terminado de jantar. O garoto fazia Administração; a menina queria Psicologia. Os dois iam bem na escola, eram responsáveis, não saíam muito. Encaminhados na vida. O marido estava bem na empresa, era de confiança lá dentro e tinha bons contatos e propostas caso acontecesse alguma coisa. O bairro era tranquilo, sem enchentes no verão, nem roubos a casas, nem pedintes nas ruas. Era bom assim.
Melhor que a sua irmã, que tinha quase a sua idade e estava sendo enrolada pelo noivo havia tantos anos. Melhor que uma de suas amigas, que praticamente sustentava o companheiro, que nunca conseguia emprego fixo. Melhor que a prima, que morava naquele bairro horrível e volta e meia apanhava do marido bêbado, mas não o largava, jurando amar. Tinham dois filhos, também, e “é horrível uma criança crescer sem pai”, não é mesmo? Melhor assim.
Ele tirava com cuidado sua camisa branca e a pendurava num cabide, para não amassar. Não estava suja ainda e sua mulher poderia ser poupada do trabalho de lavar. Pendurou as calças, dobradas no vinco, nas costas de uma cadeira, e enrolou as meias dentro do sapato, porque tinha ideia de que era muito ridícula a imagem de um homem nu usando meias. A mulher já estava de camisola; tinha quarenta anos, mas era linda.
Ele apertava demais os seios dela, sempre. Ele não sabia nunca o que fazer com a língua, e ele sempre entrava sem pedir, sem perguntar. Penetrava num ângulo que a incomodava, apoiava o peso do corpo sobre o corpo dela, tinha pelos nos ombros, nas costas. Quando começava a ficar quase agradável e ela gemia um pouquinho, ele já aumentava o ritmo, achando que ela estava para gozar. No fim, se enlaçava com ela, quente, sufocante, suado.
“Preciso tomar banho.”
“Fica só mais um pouquinho aqui, juntinho.”
Ela, então, esperava até que ele dormisse, e muito delicadamente afastava o seu braço, peludo e pesado. Tomava um banho demorado, lavando o suor do outro, o alho das mãos, o cansaço do dia, o cheiro da obrigação.
Naquele dia escolheu o vestido preto, um pouco apertado, que ele sempre achou curto demais. Escolheu o batom vermelho, que só usava em casamentos e nas raras festas. Escolheu deixar os cabelos soltos, em vez de presos com uma piranha de plástico, como sempre usava em casa. Deu uma última olhada no sono do homem que amava, na sua respiração regular, ritmada; podia ouvir, ou pensava que ouvia, o som de seu coração dali, ao lado da cama, em frente ao espelho de corpo inteiro do guarda-roupa aberto. Pegou a bolsa que todos achavam que era a da academia, e saiu. Descalça.
O carro dela ficava estacionado na calçada, porque o sobrado tinha uma vaga só. Era melhor; as crianças não escutariam o barulho do portão, e a partida poderia ser a de qualquer carro na rua. Ao chegar, tirou um par de botas daquela bolsa e as calçou; eram saltos altos, altíssimos, finos, finíssimos, que a filha nunca soube que ela tinha, ou já teria pegado, sem pedir, e estragado. Detestava ter que se anunciar para o porteiro da noite, mas era preciso; era a obrigação do funcionário. Melhor que não se lembrasse da sua cara, mesmo. Subiu o elevador. Ele a recebeu na porta.
“Você demorou...”
“Isso é problema meu.”
“Perdão.”
“Perdão o caralho. Me traz logo alguma coisa para beber.”
Ela escolheu a melhor poltrona da sala, sem pedir. Ele veio da cozinha, correndo, trêmulo, um copo na mão direita.
“O que é isso?”
“Água?”, ele disse, inseguro do próprio conteúdo do copo. Ela se levantou de uma vez; o cenho franzido, os olhos muito abertos, furiosos. Ele era mais alto, mesmo com os saltos dela, mas parecia menor, muito menor.
“Água!? É assim que eu sou recebida? Com água? Isso é coisa que se sirva, seu infeliz?!” Ergueu o braço direito e baixou de uma vez, marcando a cara dele com cinco dedos vermelhos; com o golpe, ele derrubou o copo no chão, espatifando. “E agora isso! Não tem o menor cuidado, seu inútil. Vai limpar. Espera. Tira a roupa antes, infeliz.”
Um homem de meia idade, pelos grisalhos, um pouco de barriga, o pau triste e flácido, pendurado ali, como se não pertencesse. Uma figurinha patética, de cabeça baixa, como uma criança com medo.
“Os sapatos também.”
“Mas os cacos...”
“Fodam-se os cacos. São culpa sua, os cacos. Quero mais é que você pise num deles, que te vare o pé, que perfure uma artéria, infeliz. Quero ver você se esvaindo em sangue no chão da sua própria sala, desgraçado. Sabe o que eu vou fazer? Vou deixar você aqui, sangrando feito um porco, cortar o fio do telefone, levar o seu celular. Trancar o seu quarto, jogar pela janela as suas roupas. Você vai ter que bater na casa de um vizinho se não quiser morrer. Vai ter que pedir ajuda a qualquer um, com esse pau mole que não serve para nada à mostra. E eu estarei na minha casa, rindo de você, desgraçado. Agora vai. Limpa.”
Limpou. Ajoelhado no chão, descalço, de cabeça baixa, enxugou a água com um pano e recolheu os cacos maiores. Varreu, com cuidado. Ela assistia, sentada da melhor poltrona, indiferente.
“Agora me serve alguma coisa. Alguma coisa decente. E faz direito, como eu te ensinei da outra vez.”
Trouxe uma taça borbulhante da cozinha e se ajoelhou na frente dela, curvando a cabeça até o chão. Ergueu então as duas mãos e ofereceu a bebida, como uma dádiva preciosa a uma deusa. Ela a tomou de suas mãos com um golpe e provou. Não disse nada. Era uma aprovação.
Com ele ainda na mesma posição – ela não havia dado ordem para que se movesse – apoiou um dos saltos-agulha sobre sua nuca, pinçando um nervo. De pernas cruzadas, as coxas grossas à mostra, bebericava o champagne, devagar, olhando para o nada, pensando. Lembrava que não havia tirado nada do congelador para o dia seguinte, e teria então que passar no açougue e comprar uns bifes para o jantar, talvez bistecas, talvez umas asas de frango.

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