“Mas são tão diferentes”, a avó nos dizia. “Como são
diferentes. O maiorzinho até chora quando eu digo que alguma coisa
que ele fez está errada, o pequeno discute, bate boca, insiste que
está certo e... Mocinho, volta aqui!”
O pequeno havia acabado de pular da lateral da escada, por baixo do
corrimão, a coisa de um metro do chão. Pousou se agachando ao lado
de nós, e sumiu pela porta da sala, antes que pudesse ouvir a
bronca. O maiorzinho desceu até o fim, sem pular, mas correndo
também, e não escapou da avó, que o agarrou pelo braço.
– Quantas vezes a gente já disse que não é pra descer a escada
correndo?
– Mas o...
– Não importa o que ele fez, nós falamos com os dois. Além disso
você tem a obrigação de vigiar seu irmão. Você é o mais velho,
tem que dar o exemplo.
Dois anos, só, pouco mais, era a diferença entre os meninos. A mãe
teve que dar um jeito de trabalhar em casa, porque era bem complicado
cuidar de dois tão pequenos, sem ajuda, sem tias morando perto, as
duas avós trabalhando fora. E agora, que eles estavam mais ou menos
grandinhos, veio a menina.
Ela fazia doces, pão de mel, bolos por encomenda, chocolates. Festas
de aniversário dos filhos de amigos e parentes eram sua vitrine, e
para a primeira festa da menina ela havia caprichado. Docinhos lindos
em forma de bichinhos, um bolo floresta negra imenso, pirulitos de
chocolate de lembrancinha. Chocolate era uma coisa interessante
porque ele derrete bem na temperatura do nosso corpo, então quando
você o prova, direto do banho maria, não sente nada - nem molhado,
nem quentinho, nada. Um segundo só depois é que você sente a
umidade na boca, como um beijinho frio.
A mãe regulava os doces e chocolates em casa, tinha medo de criar
filhos gordinhos, que sofreriam na escola – criança é cruel, não
perdoa. Mas sempre os deixava provar, uma gotinha só de chocolate
derretido nos lábios de cada um, que eles lambiam, querendo mais.
– Quando eu crescer vou ser dono de uma loja de doce, dizia o
menorzinho.
– Eu vou ser dono de uma fábrica inteira de chocolate, contestava
o maior.
– Ah, é? Eu vou ser dono da cidade, então.
– E eu vou ser o dono do Brasil!
– Eu sou o dono do mundo!
– Eu sou o dono do universo inteiro!, dizia o maior, triunfante. E
o menorzinho o empurrava. Começavam a brigar, brigar feio, de se
bater, chutar e socar. A mãe vinha separá-los.
– Pro castigo, agora!
– Mas ele que começou!
– Não quero saber quem começou, pro castigo os dois!
O castigo do pequeno era no quarto das crianças, o do maior, no do
casal. O maiorzinho não conseguia deixar de pensar que o pequeno
tinha o videogame e todos os brinquedos à disposição, enquanto ele
tinha, no máximo, uma TV que não pegava direito.
O quintal fervilhava de crianças, e era um quintal grande. A casa
era da avó, avó-sogra, mãe do pai – viúva, filhos criados,
gostava de ter pelo menos um deles, mais nora e netos, por perto. E
era só até que a casinha deles ficasse pronta, em construção no
mesmo terreno. Construíam devagarzinho, conforme o dinheiro dava; já
tinham o térreo e o esqueleto do andar de cima, sem laje no topo
ainda, sem portas, nem piso, sem janelas, nem reboco, mas com muito
potencial. Cozinha grande, sala grande, quatro quartos, uma
varandinha na suíte do casal. Já não tinham pressa, como no
começo, e só mudariam com tudo direitinho, finalizado.
E nós sabíamos o quanto era divertido brincar numa casa em
construção. Perigoso, também; o pai já havia proibido. Mas eles
sempre davam um jeito de entrar escondido e ficar quietinhos por lá,
como nós também fazíamos em nosso tempo.
A menina engatinhava no chão da sala, emporcalhando o vestidinho
branco no chão já sujo de refrigerante e brigadeiro. Empilhava os
blocos que havia ganhado de aniversário, e ria quando o pequeno os
derrubava com um pontapé; o maiorzinho recolhia as peças com ela e
empilhavam de novo, e o pequeno derrubava tudo novamente. A menina
ria de tudo.
– Você – a mãe dizia ao menor – vai lavar suas mãos que a
gente já vai cantar parabéns. Você – dizia ao maior – pode recolher os blocos e guardar no quarto de vocês? Aqui bem no meio da sala
alguém pode pisar, se machucar.
Luzes apagadas. A menina, no colo da mãe, ainda não entendia o que
estava acontecendo. As pessoas começaram a cantar parabéns, batendo
palmas; ela ameaçou uma careta de choro, assustada, mas
imediatamente percebeu que aquelas palmas eram para ela. Palminhas
eram uma coisa boa. Sorria, batia palmas junto, dava gritinhos de
alegria.
– Assopra a velinha agora, vai, assopra!
A mãe a inclinava no colo, para perto do bolo. Ela não entendia o
que tinha que fazer, talvez nem soubesse soprar. Os dois meninos
chegaram mais perto e assopraram, um de cada lado, com força. Não
paravam de soprar, mesmo com a vela apagada, não dando chances de
que ela se reacendesse.
– Agora chega, deixa a mamãe cortar o bolo.
O pequeno pegou o primeiro pedaço sem pedir e saiu correndo para o
quintal. O maiorzinho ajudava a mãe e a avó a servir. A mãe
separou para ele um pedaço bem grande, com cereja. “Esse é seu.
Vai comer lá fora com as crianças, tudo bem?”
Sentou-se na mureta do canteiro de ervas da avó, e comeu devagar.
Chocolate, cerejas, chantili. Gostava. Deixou a cereja, enorme,
bonita e vermelha, de lado no pratinho, para comer por último,
apreciando. Era bom, seu bolo preferido. Pensava que seria legal
aprender a cozinhar e fazer seus próprios bolos, e comê-los todos
sozinho, sem ter que dividir.
Foi quando o irmão surgiu do nada, pegou sua cereja do prato, enfiou
na boca e saiu correndo. Rindo.
Cortar o bolo era o sinal do fim da festa. Os adultos iam se
despedindo, montavam marmitinhas de bolo, de docinhos, a mãe
insistia, ia sobrar tanto. As crianças, no entanto, energizadas com
todo aquele açúcar, ainda brincavam. E inventaram de brincar justo
de esconde-esconde, justo a uma hora daquelas. Pais procuravam, doces
numa mão e bexigas na outra, encontravam seus filhos perdidos em
cima de árvores, embaixo de camas, dentro dos armários do quarto da
avó. A mãe, de repente, deu falta dos meninos.
Foi quando todos ouvimos um grito, um choro – choro de dor, não de
manha. Os que estavam mais perto da construção talvez tenham ouvido
o ruído surdo do pequeno corpo rolando pelas escadas, escadas sem
corrimão, cheias de pontas duras. Chegamos correndo, o pai na
frente, a mãe logo atrás, um pano nas mãos. O menino tinha sangue
nos cabelos, sangue nas roupinhas, sangue sobre os olhinhos fechados.
Sangue era uma coisa interessante, porque ele tem bem a mesma
temperatura do nosso corpo, então quando ele cai na gente não
sentimos nada, nem molhado, nem quentinho, nada. Um segundo só
depois é que você sente a umidade, o frio encharcando as roupas da
gente, a vida escorrendo.
Os pais pegaram o primeiro carro que se ofereceu e correram para o
pronto-socorro, a mãe tentando estancar a ferida na cabeça do
menino com um pano de prato. Nenhum de nós viu o maiorzinho descendo
aquelas mesmas escadas sem corrimão, as roupas salpicadas de
vermelho, um grande tijolo manchado nas mãos.
CARALHO
ResponderExcluirpegar a cereja já é demais, mesmo
ResponderExcluirGenial.
ResponderExcluirMuito bom, Dani...dá pra sentir a cena de pertinho..
ResponderExcluirnossa,muito bom
ResponderExcluirJesus Maria José!
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