terça-feira, 25 de setembro de 2012

Irmãos


“Mas são tão diferentes”, a avó nos dizia. “Como são diferentes. O maiorzinho até chora quando eu digo que alguma coisa que ele fez está errada, o pequeno discute, bate boca, insiste que está certo e... Mocinho, volta aqui!”
O pequeno havia acabado de pular da lateral da escada, por baixo do corrimão, a coisa de um metro do chão. Pousou se agachando ao lado de nós, e sumiu pela porta da sala, antes que pudesse ouvir a bronca. O maiorzinho desceu até o fim, sem pular, mas correndo também, e não escapou da avó, que o agarrou pelo braço.
– Quantas vezes a gente já disse que não é pra descer a escada correndo?
– Mas o...
– Não importa o que ele fez, nós falamos com os dois. Além disso você tem a obrigação de vigiar seu irmão. Você é o mais velho, tem que dar o exemplo.
Dois anos, só, pouco mais, era a diferença entre os meninos. A mãe teve que dar um jeito de trabalhar em casa, porque era bem complicado cuidar de dois tão pequenos, sem ajuda, sem tias morando perto, as duas avós trabalhando fora. E agora, que eles estavam mais ou menos grandinhos, veio a menina.
Ela fazia doces, pão de mel, bolos por encomenda, chocolates. Festas de aniversário dos filhos de amigos e parentes eram sua vitrine, e para a primeira festa da menina ela havia caprichado. Docinhos lindos em forma de bichinhos, um bolo floresta negra imenso, pirulitos de chocolate de lembrancinha. Chocolate era uma coisa interessante porque ele derrete bem na temperatura do nosso corpo, então quando você o prova, direto do banho maria, não sente nada - nem molhado, nem quentinho, nada. Um segundo só depois é que você sente a umidade na boca, como um beijinho frio.
A mãe regulava os doces e chocolates em casa, tinha medo de criar filhos gordinhos, que sofreriam na escola – criança é cruel, não perdoa. Mas sempre os deixava provar, uma gotinha só de chocolate derretido nos lábios de cada um, que eles lambiam, querendo mais.
– Quando eu crescer vou ser dono de uma loja de doce, dizia o menorzinho.
– Eu vou ser dono de uma fábrica inteira de chocolate, contestava o maior.
– Ah, é? Eu vou ser dono da cidade, então.
– E eu vou ser o dono do Brasil!
– Eu sou o dono do mundo!
– Eu sou o dono do universo inteiro!, dizia o maior, triunfante. E o menorzinho o empurrava. Começavam a brigar, brigar feio, de se bater, chutar e socar. A mãe vinha separá-los.
– Pro castigo, agora!
– Mas ele que começou!
– Não quero saber quem começou, pro castigo os dois!
O castigo do pequeno era no quarto das crianças, o do maior, no do casal. O maiorzinho não conseguia deixar de pensar que o pequeno tinha o videogame e todos os brinquedos à disposição, enquanto ele tinha, no máximo, uma TV que não pegava direito.
O quintal fervilhava de crianças, e era um quintal grande. A casa era da avó, avó-sogra, mãe do pai – viúva, filhos criados, gostava de ter pelo menos um deles, mais nora e netos, por perto. E era só até que a casinha deles ficasse pronta, em construção no mesmo terreno. Construíam devagarzinho, conforme o dinheiro dava; já tinham o térreo e o esqueleto do andar de cima, sem laje no topo ainda, sem portas, nem piso, sem janelas, nem reboco, mas com muito potencial. Cozinha grande, sala grande, quatro quartos, uma varandinha na suíte do casal. Já não tinham pressa, como no começo, e só mudariam com tudo direitinho, finalizado.
E nós sabíamos o quanto era divertido brincar numa casa em construção. Perigoso, também; o pai já havia proibido. Mas eles sempre davam um jeito de entrar escondido e ficar quietinhos por lá, como nós também fazíamos em nosso tempo.
A menina engatinhava no chão da sala, emporcalhando o vestidinho branco no chão já sujo de refrigerante e brigadeiro. Empilhava os blocos que havia ganhado de aniversário, e ria quando o pequeno os derrubava com um pontapé; o maiorzinho recolhia as peças com ela e empilhavam de novo, e o pequeno derrubava tudo novamente. A menina ria de tudo.
– Você – a mãe dizia ao menor – vai lavar suas mãos que a gente já vai cantar parabéns. Você – dizia ao maior – pode recolher os blocos e guardar no quarto de vocês? Aqui bem no meio da sala alguém pode pisar, se machucar.
Luzes apagadas. A menina, no colo da mãe, ainda não entendia o que estava acontecendo. As pessoas começaram a cantar parabéns, batendo palmas; ela ameaçou uma careta de choro, assustada, mas imediatamente percebeu que aquelas palmas eram para ela. Palminhas eram uma coisa boa. Sorria, batia palmas junto, dava gritinhos de alegria.
– Assopra a velinha agora, vai, assopra!
A mãe a inclinava no colo, para perto do bolo. Ela não entendia o que tinha que fazer, talvez nem soubesse soprar. Os dois meninos chegaram mais perto e assopraram, um de cada lado, com força. Não paravam de soprar, mesmo com a vela apagada, não dando chances de que ela se reacendesse.
– Agora chega, deixa a mamãe cortar o bolo.
O pequeno pegou o primeiro pedaço sem pedir e saiu correndo para o quintal. O maiorzinho ajudava a mãe e a avó a servir. A mãe separou para ele um pedaço bem grande, com cereja. “Esse é seu. Vai comer lá fora com as crianças, tudo bem?”
Sentou-se na mureta do canteiro de ervas da avó, e comeu devagar. Chocolate, cerejas, chantili. Gostava. Deixou a cereja, enorme, bonita e vermelha, de lado no pratinho, para comer por último, apreciando. Era bom, seu bolo preferido. Pensava que seria legal aprender a cozinhar e fazer seus próprios bolos, e comê-los todos sozinho, sem ter que dividir.
Foi quando o irmão surgiu do nada, pegou sua cereja do prato, enfiou na boca e saiu correndo. Rindo.
Cortar o bolo era o sinal do fim da festa. Os adultos iam se despedindo, montavam marmitinhas de bolo, de docinhos, a mãe insistia, ia sobrar tanto. As crianças, no entanto, energizadas com todo aquele açúcar, ainda brincavam. E inventaram de brincar justo de esconde-esconde, justo a uma hora daquelas. Pais procuravam, doces numa mão e bexigas na outra, encontravam seus filhos perdidos em cima de árvores, embaixo de camas, dentro dos armários do quarto da avó. A mãe, de repente, deu falta dos meninos.
Foi quando todos ouvimos um grito, um choro – choro de dor, não de manha. Os que estavam mais perto da construção talvez tenham ouvido o ruído surdo do pequeno corpo rolando pelas escadas, escadas sem corrimão, cheias de pontas duras. Chegamos correndo, o pai na frente, a mãe logo atrás, um pano nas mãos. O menino tinha sangue nos cabelos, sangue nas roupinhas, sangue sobre os olhinhos fechados.
Sangue era uma coisa interessante, porque ele tem bem a mesma temperatura do nosso corpo, então quando ele cai na gente não sentimos nada, nem molhado, nem quentinho, nada. Um segundo só depois é que você sente a umidade, o frio encharcando as roupas da gente, a vida escorrendo.
Os pais pegaram o primeiro carro que se ofereceu e correram para o pronto-socorro, a mãe tentando estancar a ferida na cabeça do menino com um pano de prato. Nenhum de nós viu o maiorzinho descendo aquelas mesmas escadas sem corrimão, as roupas salpicadas de vermelho, um grande tijolo manchado nas mãos.

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