quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Lembrança


 A grande e barulhenta geladeira vermelha da minha infância havia sido trocada por um modelo novo, moderno, de aço, mil prestações. Os móveis de pé de palito e fórmica colorida ainda eram os mesmos. Ainda era o mesmo forro de oleado estampado de grandes frutas forrando as prateleiras, gasto nas juntas e dobras, a mesma passadeira no chão e a pia de mármore, mais encardida. Os azulejos decorados iam quase até a minha altura toda, naquele tempo, hoje chegavam no máximo até a altura do meu peito. A tinta era nova, as manchas de umidade, as mesmas. A mesma tia Lucrécia, sentada na cadeira de pé de palito, cabelos pintados de preto e os lábios de vermelho, um pouco mais gorda, mas a mesma.
Era uma casa pequena e cheia, cheia até a borda. A churrasqueira, montada no quintalzinho do fundo, ao lado da velha máquina de lavar azul, que nem funcionava mais, subindo a fumaça por entre os varais esvaziados das roupas, de plástico azul desbotado com pedaços ancestrais de pregadores quebrados junto aos festões prateados, três boás de plumas fininhos vindos não se sabe de onde, os balões coloridos pendurados feito os berenguendéns de uma baiana de carnaval. O chão de concreto rachado era tão preto de umidade e tão cheio de musgo quanto eu me lembrava.
O pequeno jardim, de roseiras mirradas e secas e treliças onde cresciam pés de bucha ou chuchu - não me lembro mais – já não tinha mais nada. O que era conveniente, uma vez que as crianças insistiam em pisar e pular tanto nele. O muro baixo, o portão baixo, tudo dando direto para a rua - o que protegia a casa eram as grades nas janelas, mas não havia quase medo nenhum de furtos. Era uma rua tão deserta, tão isolada - sem saída - que ladrão nenhum sequer perceberia que ela existe.
Eu tinha a recordação de que a rua era de paralelepípedos, mas o asfalto velho, negro e rachado parece negar minha memória – o chão assim, numa rua sem movimento, tem que ter mais de trinta anos. E a minha memória era um pouco mais recente do que isso. Eu também não me lembrava dessa abertura na mureta do fundo da rua, que dava numa escada íngreme, feita pelos próprios moradores, descendo a encosta do morro até a rua de baixo. O morro repleto de mato, bananeiras e grandes pedras nuas - nuas, a não ser por aquela uma com a monumental pichação de "Pedro (coração) Sonia - 11/07/88" em spray preto, misteriosamente sobrevivente aos tantos anos das chuvas torrenciais dessa cidade. Talvez eu não me lembre porque naquele dia, há vinte anos, como hoje, a abertura foi fechada com retalhos de madeirite cedidos por um vizinho, para evitar que alguma criança vazasse e rolasse morro abaixo, porque àquela altura a festa já ganhava a rua inteira.
Os parentes todos, filhos, sobrinhos, netos, sobrinhos netos, alguns bisnetos já, que eram tantos, se somavam aos vizinhos da pequena rua sem saída no alto de um morro da zona noroeste de São Paulo, que se somavam à praticamente toda a comunidade da pequena cidade de onde tinha vindo a tia - e minha avó, e meu pai, e metade da minha família -, lá do meio do interior da Bahia, uma cidade minúscula, que nem constava no mapa na minha geografia da quinta série, vinte anos atrás. Havia, talvez, mais gente daquela cidade em São Paulo - e ali, naquela rua sem saída, naquela festa de um sem contar de gente - do que na própria cidade, que era tão pequena.
Ela estava pagando, a tia disse, uma viagem para voltar à cidadezinha dela, ver os parentes, uma irmã que ficou lá, os primos. De avião, a tia disse, mas a senhora não tem medo, eu perguntei, mas medo do que, a tia disse, tanta coisa aqui na terra pra ter medo, vou ter medo de voar, de avião.
A essa altura as crianças já haviam enfeitado a tia com o boá de plumas, rosa-choque com brilhinhos de glitter, roubado dos enfeites no varal. Já tinham colocado nela um dos óculos de plástico da lembrança, de coração, lolita, rosa bebê. Eu também tinha o meu, também rosa, de estrela. Pedi para o pai tirar foto, nós duas, as bochechas pintadas da tia nas minhas bochechas, o boá de plumas com brilhinhos emoldurando, a tia e eu. Bonita, a tia disse, ao ver a foto pronta pelo visor da máquina. E quando fomos embora, eu vi a noite cor-de-rosa através das estrelas de plástico dos óculos da lembrança.
Na segunda-feira seguinte àquele domingo, voltando do trabalho, encontro a minha família inteira na cozinha, comendo e falando baixo. Estou deixando as chaves no prego da porta e cumprimentando um tudo-bem, quando meu pai chega perto e me diz, baixo, sem cochichar: mais ou menos. A tia Lucrécia faleceu de ontem pra hoje, meu pai disse. Dormindo, ele falou, morreu dormindo.
É preciso ir ao velório dar um abraço na minha velha avó. Há gente demais, os parentes todos, filhos, sobrinhos, netos, sobrinhos netos – bisnetos não, as crianças devem ficar em casa. Tem os vizinhos, a comunidade quase toda da cidadezinha do interior da Bahia de onde metade da minha família vem.
Não quero ficar para o enterro. Vejo de longe apenas o corpo coberto de flores brancas; o rosto, não. Quero a memória dos cabelos pintados de preto e dos lábios vermelhos, da moldura rosa com brilhinhos e das lentes de coração, cor-de-rosa, como as duas estrelas que ainda guardo no bolso, comigo, agora.

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