Tomei um boa-noite cinderela e acordei numa banheira com gelo. Sem os
rins.
Da cozinha, que aparecia aos bocados desvelados por uma cortina
de peixinhos, vinha um cheiro bom – salsinha, noz moscada, pimenta.
Demorou um pouco para a vista ficar nítida, e quando eu pude ver, o
que eu via era um par de pernas longas e brancas e estreitas sobre
saltos altíssimos vindo em minha direção. Um pedaço de carne
surgiu bem na minha cara, espetado por um garfo prateado de dentes
longos e agudos, segurado por uma mão branca de dedos longos e unhas
vermelhas e agudas. Provei. Rins ao molho madeira.
As horas passam devagar quando você está imobilizado numa banheira
com gelo. A cirurgia de extração do fígado foi minha maior
distração durante aqueles dias, depois de contar os azulejos
visíveis, que eram oitenta e dois, três quebrados, e os peixinhos
da cortina, que eram setenta e cinco, os verdes com um a mais que os
azuis. A operação foi interessante também porque durou vários
dias, e ela arrancava um pouquinho só de cada vez, um lance meio
Prometeu Acorrentado. Primeiro me serviu o fígado acebolado, o que
trouxe péssimas recordações de uma anemia na infância. Depois o
trouxe numa pastinha fria, à moda judaica, servida com torradas. Por
último, ela adaptou uma receita de foie gras para fígados magros e
humanos, e me serviu uma bela fatia retangular do meu próprio pâté.
Textura riquíssima, untuoso, muito macio; motivo pelo qual eu
preferia que ela tivesse guardado um pouco para o dia seguinte,
quando tirou a minha língua, que serviu fervida e fria, em fatias
finas, ao molho vinaigrette.
Quando ela arrancou minhas tripas, achei que ia jogar para os
cachorros. O que ela atirou para os cães, depois, foram meus
pulmões, os bofes, e outros órgãos menores; para as tripas ela
tinha outros planos. Um barulho de motor vindo da cozinha me chamou a
atenção, e eu tentei me mexer para ver: era uma máquina de encher
linguiças. Qual era a carne do recheio, eu percebi quando me movi e
os ossos nus da bacia bateram contra a parede fria da banheira.
Aquela mulher estava comendo a minha bunda.
No último dia, acordei com o aroma e o chiadinho ligeiro de fritura
vindo da cozinha. Me inclino para ver: sobre a pia, shoyu, vinagre,
açúcar, uma lata de abacaxi. Ela apenas salteava as fatias finas
na frigideira, para que a carne não ficasse dura.
Aquela receita eu conhecia. Os chineses fazem com porco, mas porcos
gritam demais ao morrer – morrem de um golpe só, no pescoço, e
jorra sangue, e como gritam. Mas a receita, como eu ia dizendo, era
coração ao molho agridoce.
Só posso usar um outro órgão para falar o que penso desse conto: Caralho...!
ResponderExcluirfiquei meio ano tentando DESselecionar SEGUNDA-FEIRA, 24 DE OUTUBRO DE 2011
ResponderExcluirQue belo texto!
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