quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Sete vidas


"Então, doutor, é que eu tenho um filho... um filho pequeno, sabe? O senhor entende. E eu tenho me pegado às vezes pensando em umas coisas estranhas. Às vezes, quando ele está correndo de um canto para o outro da casa, eu tenho vontade de colocar a perna na frente dele para que ele caia, para que quebre os dentinhos da frente e fique lá, jogado no chão, a boca sangrando. E da vez em que ele colocou uma chave dentro da tomada - eu tapei todas as tomadas da casa com aqueles protetores, doutor, mas não adianta, ele vai lá e arranca - eu fiquei imaginando que a voltagem da casa poderia ser bem maior e ele ficaria ali, uma silhueta negra de cabelo arrepiado com o esqueleto aparecendo, o senhor sabe, doutor, que nem em desenho animado, e depois viraria pó, viraria cinza, que eu então varreria pra debaixo do sofá. E da vez que ele ficou subindo no encosto da poltrona pra se jogar no chão, doutor, fingindo que voava. Pegou minha toalha branquinha, nova, quebrou o abajur da mesinha, fez a poltrona cair - eu pensei em convenientemente encostar o bendito móvel ali na beira da janela, o senhor sabe? Na minha fantasia a janela não tinha tela, e ele voava veloz com a força da gravidade até o chão, doutor, até o chão, e se desfazia como uma bexiga d'água que a gente joga, espalhando sangue em vez de água por todo o pátio do prédio
"Começou, eu me lembro, quando ele ainda era bem pequenininho e tinha me feito passar a noite em claro, ele não parava de chorar... Eu havia tentando de tudo já, doutor, cantar pra ele, carregar no colo, mamadeira quentinha, massagem... Achei que um banho morno não faria mal, e se relaxava a gente, podia relaxá-lo também. Então estava com ele lá na banheira, e de repente me peguei segurando sua cabecinha ali no fundo... ele soltava bolhinhas de ar, se debatia, eu soltava, ele respirava com um golpe de choro na superfície e eu o empurrava de novo, a cabecinha dele, distorcida ali no meio das ondas, das bolhas... Mas quando dei por mim, doutor, estava com ele no trocador, enxugando com a toalha, e nada daquilo tinha passado.
Depois disso vieram os sonhos. Vinham de vez em quando, principalmente nas noites em que ele me acordava querendo alguma coisa, eu voltava a dormir e sonhava. Num dos sonhos eu o soltava dali de cima, doutor, como aquela primeira cena que lhe descrevi, mas ao chegar no chão ele quicava, quicava e acabava voltando a entrar em casa, antes que eu tivesse tempo de trancar a janela. Em outro, eu o girava pelas pernas que nem aqueles martelos olímpicos, o senhor sabe, de atletismo, e o atirava na parede; no choque, ele se transformava em mil pombos brancos que voavam em todas as direções a partir do impacto, e eu detesto pombo, doutor, animalzinho sujo.
"A verdade, doutor, é que eu não se eu gostaria que esses pensamentos parassem... Por que eles me relaxam, o senhor entende? Ontem mesmo eu passei a noite quase toda sem dormir, porque o menino também não dormia e ficava pulando em sua cama, fazendo barulho, de luz acesa, e de manhã ele ainda derramou todo o chocolate na toalha branca. Tive que limpar antes de sair, me atrasei, tomei bronca do chefe. Quando esse tipo de coisa acontece, eu fico no trabalho imaginando como seria enfiar mil agulhas por baixo das unhazinhas dele, ou arrancar seus os dentinhos de leite com uma torquês, e aquilo me dá uma paz... Então eu consigo ter foco para trabalhar, mesmo com o cansaço, mas isso é por algumas horas, porque quase sempre alguém vai me ligar da creche dizendo que ele enfiou a mão no formigueiro do jardim, ou que jogou tinta guache nos olhos da coleguinha, e tudo recomeça... O senhor está me escutando, doutor?"
"Perdão, eu estava pensando em outra coisa aqui, mil perdões. É que eu tenho uma filhinha pequena, sabe, e hoje ela não me deixou dormir, e eu estava pensando em como seria se de repente o carrinho dela se soltasse na escadaria do metrô e de alguma maneira fizesse a curva e fosse cair direto na via, e..."

Um comentário:

  1. a autora gostaria de deixar claro que este é um texto ficcional, que ela não tem filhos, mas que às vezes, bem de vez em quando, ela morre de vontade de testar a teoria das sete vidas em seu querido gato leôncio

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