"Então,
doutor, é que eu tenho um filho... um filho pequeno, sabe? O senhor
entende. E eu tenho me pegado às vezes pensando em umas coisas
estranhas. Às vezes, quando ele está correndo de um canto para o
outro da casa, eu tenho vontade de colocar a perna na frente dele
para que ele caia, para que quebre os dentinhos da frente e fique lá,
jogado no chão, a boca sangrando. E da vez em que ele colocou uma
chave dentro da tomada - eu tapei todas as tomadas da casa com
aqueles protetores, doutor, mas não adianta, ele vai lá e arranca -
eu fiquei imaginando que a voltagem da casa poderia ser bem maior e
ele ficaria ali, uma silhueta negra de cabelo arrepiado com o
esqueleto aparecendo, o senhor sabe, doutor, que nem em desenho
animado, e depois viraria pó, viraria cinza, que eu então varreria
pra debaixo do sofá. E da vez que ele ficou subindo no encosto da
poltrona pra se jogar no chão, doutor, fingindo que voava. Pegou
minha toalha branquinha, nova, quebrou o abajur da mesinha, fez a
poltrona cair - eu pensei em convenientemente encostar o bendito
móvel ali na beira da janela, o senhor sabe? Na minha fantasia a
janela não tinha tela, e ele voava veloz com a força da gravidade
até o chão, doutor, até o chão, e se desfazia como uma bexiga
d'água que a gente joga, espalhando sangue em vez de água por todo
o pátio do prédio
"Começou, eu me lembro, quando ele ainda era bem pequenininho e
tinha me feito passar a noite em
claro, ele não parava de chorar... Eu havia tentando de tudo já,
doutor, cantar pra ele, carregar no colo, mamadeira quentinha,
massagem... Achei que um banho morno não faria mal, e se relaxava a
gente, podia relaxá-lo também. Então estava com ele lá na
banheira, e de repente me peguei segurando sua cabecinha ali no
fundo... ele soltava bolhinhas de ar, se debatia, eu soltava, ele
respirava com um golpe de choro na superfície e eu o empurrava de
novo, a cabecinha dele, distorcida ali no meio das ondas, das
bolhas... Mas quando dei por mim, doutor, estava com ele no trocador,
enxugando com a toalha, e nada daquilo tinha passado.
“Depois
disso vieram os sonhos. Vinham de vez em quando, principalmente nas
noites em que ele me acordava querendo alguma coisa, eu voltava a
dormir e sonhava. Num dos sonhos eu o soltava dali de cima, doutor,
como aquela primeira cena que lhe descrevi, mas ao chegar no chão
ele quicava, quicava e acabava voltando a entrar em casa, antes que
eu tivesse tempo de trancar a janela. Em outro, eu o girava pelas
pernas que nem aqueles martelos olímpicos, o senhor sabe, de
atletismo, e o atirava na parede; no choque, ele se transformava em
mil pombos brancos que voavam em todas as direções a partir do
impacto, e eu detesto pombo, doutor, animalzinho sujo.
"A
verdade, doutor, é que eu não se eu gostaria que esses pensamentos
parassem... Por que eles me relaxam, o senhor entende? Ontem mesmo eu
passei a noite quase toda sem dormir, porque o menino também não
dormia e ficava pulando em sua cama, fazendo barulho, de luz acesa, e
de manhã ele ainda derramou todo o chocolate na toalha branca. Tive
que limpar antes de sair, me atrasei, tomei bronca do chefe. Quando
esse tipo de coisa acontece, eu fico no trabalho imaginando como
seria enfiar mil agulhas por baixo das unhazinhas dele, ou arrancar
seus os dentinhos de leite com uma torquês, e aquilo me dá uma
paz... Então eu consigo ter foco para trabalhar, mesmo com o
cansaço, mas isso é por algumas horas, porque quase sempre alguém
vai me ligar da creche dizendo que ele enfiou a mão no formigueiro
do jardim, ou que jogou tinta guache nos olhos da coleguinha, e tudo
recomeça... O senhor está me escutando, doutor?"
"Perdão,
eu estava pensando em outra coisa aqui, mil perdões. É que eu tenho
uma filhinha pequena, sabe, e hoje ela não me deixou dormir, e eu
estava pensando em como seria se de repente o carrinho dela se
soltasse na escadaria do metrô e de alguma maneira fizesse a curva e
fosse cair direto na via, e..."
a autora gostaria de deixar claro que este é um texto ficcional, que ela não tem filhos, mas que às vezes, bem de vez em quando, ela morre de vontade de testar a teoria das sete vidas em seu querido gato leôncio
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