sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Os olhos (uma história de natal)


 Barata. As mãozinhas de plástico cheias de rebarbas, que na certa vão machucar a pele fina das mãozinhas que brincarão com ela. Os olhos vítreos, azuis, não se mexiam, e nem mesmo um fio de cabelo de náilon loiro ela podia ter. Mas era uma boneca numa caixa, e foi isso, afinal, o que a menininha pediu.
A menininha em questão era a neta da senhora que vinha toda sexta buscar o lixo seco para reciclar. Tinha uns quatro anos e olhos grandes, marrons e redondos. O cabelo armadinho preso num pompom atrás, e chumaços dele vazando pela frente, à guisa de franja. Bochechas redondas e dentes branquinhos, pequenos, de leite. Roupas de malha rosa, meio puídas, mas muito limpas, estampadas com algum desses personagens que as meninas gostam, a Barbie, a Mônica, as princesas da Disney. Vinha de mãos com a avó, uma velha magra de dentes ruins. Ela perguntou, por perguntar, o que a menininha queria ganhar de natal. “Uma boneca numa caixa”, foi a resposta.
Deu um sorriso e passou a mão nos seus cabelos fofos. A senhora dos recicláveis sorriu amarelo de volta. Até semana que vem, ela se despediu, Deus lhe abençoe, a velha respondeu. Uma boneca numa caixa. A fantasia, talvez, de ganhar um presente numa caixa bonita com laço de fita, como se vê na tevê, em vez de pacotes disformes de papel estampado.
No dia seguinte, passeando no shopping depois do cinema, a vista da vitrine de uma loja de brinquedos a levou de volta mais de vinte anos, ao grande quintal de terra da casa de uma amiga, ali no seu velho bairro, quando ainda havia quintais de terra naquele bairro. Porque quintais civilizados, aplainados e cimentados, eram uma prova de riqueza de gente que tinha tão pouco a ostentar. O quintal da colega era inteiro de terra, mas um caminho de cascalho mantinha a gente sem lama até chegar à casinha de tijolos no fundo. Caiada. Três cômodos cobertos com brasilit, goteiras aparadas por latas e panelas. Num dia de chuva assim não se tinha muito o que fazer além de brincar de qualquer coisa lá dentro.
Ela adorava o sofá daquela casa, um carmim hollywoodiano, ainda que desbotado. Em dias de chuva assim ela gostava mesmo de jogar ludo no tabuleiro de papel cartão, mas a amiga queria brincar de casinha, então brincariam de casinha. Afastaram o sofá da parede delimitando o pequeno cômodo inexistente com um muro carmim, e os dois muros caiados, da sala real, e a porta, que era só um vazio. Caixas de sapatos eram os móveis, fogão. Ela era o papai, a amiguinha a mamãe. Os filhos, um urso encardido e descosturado, as tripas de enchimento mal presas por uma cicatriz de pontos visíveis em linha grossa; uma solitária boneca, talvez mais velha que as duas meninas, que havia sido de alguém; isso era denunciado por seu cabelo loiro emaranhado e o vestidinho costurado à mão, mas muito limpo, de tecido rosa.

A mãe trabalhava. A menininha era cuidada pela avó porque não conseguiram vaga na creche municipal. Moravam, as três e um avô, numa casa sem reboco num terreninho de fundos cedido de favor. O velho tinha a profissão de engraxate, mas ao que parece saía de casa apenas para beber, sob o pretexto de ir trabalhar. O dinheiro não chegava para brinquedos e roupas novas; tudo o que a menininha tinha era usado, comprado nos bazares da igreja ou recebido de conhecidos, esmola disfarçada de presente.
Às vezes, nos recicláveis, talvez surgisse uma caixa cor de rosa amassada, da boneca nova de alguém. A avó separaria o plástico que servia de vitrine e desmontava o resto para a pilha de papelão. Nunca uma caixa rosa, fechada e nova, brilhante, com uma boneca presa nos arames lá dentro, como as que luziam na vitrine da loja iluminada. Prateleiras e prateleiras cobertas de cor-de-rosa, pequenas vitrines exibindo manequins em forma de bebês ou miniaturas de mulheres adultas, de olhos grandes e vítreos, cabelos de náilon loiros, luzidios. Bochechas redondas e lábios meio abertos, meio sorrindo, braços plásticos terminando em mãos gorduchas, roupinhas em tons pastéis. Um cartaz amarelo anunciava uma bonequinha muito simples, muito limpa, sem sapatos nem mamadeira, um vestidinho que não era mais que dois pedaços de pano franzido. Barata. Olhos luzidios de azul olhavam para ela sem piscar, sem pedir nada. Olhavam, só. Pegou, passou no caixa, sem nem pensar. Barata. Uma boneca numa caixa.
Colocou o brinquedo em sua caixa rosa aos pés da árvore de natal, seus olhos azuis brilhando com as luzinhas de enfeite. Pelo menos um presente, novinho, só dela, a menininha teria. Teve muito orgulho de sua atitude, afinal o mundo seria um lugar melhor de se viver se todos fizessem sua parte, os que têm partilhando com os que não têm, etc. etc.
Os olhos azuis da boneca refletiam o brilho multicor da árvore e do presépio. Uma miríade de cores luminosas dançava no fundo da lapinha de fibra ótica, iluminando o menininho Jesus em sua manjedoura. Pobrezinho, nasceu em Belém. E pobrezinho assim ainda ganhou presentes, mesmo que com um pouco de atraso, presentes de ouro, incenso e mirra. O que era uma bonequinha barata comparada o ouro, incenso e mirra? Mas pensando bem, o que é que uma menininha de quatro anos vai fazer com ouro, incenso e mirra? E continuou tomando seu café da manhã de domingo.
Segunda, cansada como as segundas. A boneca a recebeu com seu meio sorriso, os olhos lânguidos espelhando a luz multicor do presépio. Cara de sonsa, ela pensou, sem se dar conta. Fez um chá para si e voltou para a sala, e a boneca ainda lá, olhando. Sentou-se em outro lugar, outro ângulo, de onde não poderia ser vista.
No dia seguinte, tentando jantar, teve a sensação de estar num restaurante de grandes janelas, repleto de meninos de rua do lado de fora. A comida, lasanha congelada, nem era muito de se cobiçar, mas ainda assim se sentia observada. O garfo parava no meio do caminho; a comida fazia força para descer. Mas estava ruim mesmo, insossa. Uma refeição de dez reais, assim, sem sabor; se ela tivesse feito arroz com ovo estaria melhor, e muito mais barato. Certeza.
O que a menininha estaria comendo agora?
Talvez ela pudesse – devesse – dar alguma coisinha a mais para a família da menina. Talvez um franguinho, para eles assarem, um panetone. Talvez até uma bonequinha melhor. Uma caixinha. Não, a caixinha é melhor não. Se o avô achar o dinheirinho delas vai beber tudo.
Na quarta era dia de rodízio, e ela voltava de ônibus. Uma chuva dessas mitológicas, de dezembro, travava o trânsito ainda mais do que o normal. Estava esperando terminar as prestações do carro novo para comprar um de reserva, que fosse um fusquinha velho, até para não pagar IPVA. Lembrou do primeiro carro do pai: um fusca verde bandeira, já muito velho quando ela ainda era nova, mas o pai o guiava com o orgulho de um rolls royce. Seu próprio primeiro carro tinha sido um chevetinho prata, ancião, mas ela batalhou muito e foi trocando, até enfim conseguir comprar um zero. Alguns anos de prestações, mas valia a pena. IPVA e seguro, mas valia a pena. A mensalidade abusiva do estacionamento perto do escritório, um roubo, mas um roubo que valia a pena. O que não valia a pena era ficar aqui, presa nesse ar viciado, repleto de gente suada, barulhenta.
Sentou a seu lado uma mãe, um bebê de colo, outra criança. Ajeitou a mais velha de pé, entre o encosto da frente e suas próprias pernas, para que ela não caísse nem fosse esmagada pela massa do corredor. O ônibus sacolejava, a turba balançava junto para lá, para cá, como um pasto de capim alto ao vento. A menina balançava, quase caía, se apoiava nela; o bebê não parava de chorar. “Quietinha”, dizia a mãe, “quietinha, senão a moça vai achar ruim”. Ela balançava a cabeça num sorriso condescendente: “Tudo bem”. Não estava tudo bem, mas tudo bem. Tudo bem.
Em casa a boneca a recebeu com seus olhos de sempre, o mesmo meio sorriso de escárnio. “Você queria que eu fizesse o quê?” Se assustou ao ouvir a própria voz, e alta.
Falando sozinha. Estava ficando maluca. É o cansaço, pensou, trabalho demais, mas logo teria uns dias de recesso para descansar. Praia. Sol. Fazer nada, pensar em nada. Paz.
Dormiu pouco e mal naquela noite. Gritou com o estagiário e destratou a mocinha da faxina, no dia seguinte. Pediu desculpas aos dois, mas o escritório inteiro já havia espalhado que ela estava “naqueles dias”.
Na volta, passou no mercado. Não um supermercado. Um hipermercado, desses enormes, imensos, na marginal. Lembrava dos grandes magazines da sua infância, onde era fácil demais se perder nos corredores de balas e brinquedos e encontrar a mãe desesperada procurando entre as araras de roupas infantis. A luz fria inexorável contrastava com o lusco-fusco lá fora; lá dentro, fileiras e fileiras coloridas de embalagens plásticas padronizadas seguiam em sequência, como as fileiras de uma legião romana. Uma seção de roupas, de eletrônicos, de jardinagem, até de brinquedos.
Caixas e mais caixas de papelão brilhante, cor de rosa, estampado; dentro, centenas, milhares talvez, de cabeleiras louras e dedos gorduchos de plástico, meios sorrisos entreabertos e vestidinhos em tons pastéis. E olhos, uma infinitude de olhos azuis, fazendo o que olhos fazem: olhando.
Uma criança pequena, desgarrada da mãe, levava uma grande caixa rosa no colo. Uma boneca loura, meiga, a boca entreaberta em meio sorriso, os enormes olhos redondos. Azuis. Vinha em sua direção.
Virou o carrinho, quase correndo, no rumo dos congelados. Um frango, não, um chester. Um peru, colossal, daqueles que alimentam cinco famílias; a ave devia pesar mais que o menino jesus aos dois anos. Mamíferos também: um pernil gordo, gigantesco, um tender, o maior que encontrou. Frutas secas, cristalizadas, carameladas de açúcar brilhante; cerejas vermelhas como uma bola de vidro espelhado. Panetones de todos os tipos, todos os recheios possíveis, alguns improváveis; farofa e salpicão da rotisseria. No caixa, a conta, um polpudo valor de três dígitos, pago à vista.
“Os natalinos a gente parcela em três vezes.”
“Não, não, mocinha. À vista.”

Fileiras e fileiras de caixas cor de rosa, empilhadas. Uma escada para o céu de prateleiras, repletas de caixas brilhantes. A de baixo avançava alguns centímetros; a imediatamente superior descia e tomava o seu lugar. Então avançava também, tomando o lugar da primeira, que já estava à frente, seguindo e formando as filas de um exército, uma organizada centúria de bonecas louras e meigas. Liderando a tropa, aquela: a bonequinha barata, sem cabelos louros, a boca entreaberta num esgar de escárnio, os olhos fixos, azuis, mortais. As mãozinhas de plástico barato, cheias de rebarbas, machucaram bem mais que o necessário quando a boneca arrancou os olhos dela.

As luzes coloridas no pinheirinho plástico dançavam sua dança costumeira. Longe, na rua, uma motocicleta ruge. Sente um frio molhado em suas costas. Acorda. Vê.
As compras em sacolas brancas farfalhantes jazem, silenciosamente, no chão. As carnes lentamente descongelam, encharcando o tapete onde ela está deitada. A caixa cor de rosa da boneca jaz, caída ao lado da árvore; ela não vê os seus olhos. Duas da manhã. Vai dormir.
A velha vem buscar o lixo, como sempre, a menininha grudada em sua mão. O cabelo fofo, os olhos redondos, bonitos, marrons.
"A gente não vem semana que vem, nem na outra."
"Ah, vocês vão viajar?"
A avó cora sob a pele ocre. "Não", começa a dizer sem jeito, "é que o ferro velho não abre... Só em janeiro, agora".
"Ah..."
Saem sem saber de nenhum presente. Nem uma caixinha, nada. O saco preto reluzente, no entanto, segue cheio e pesado no carrinho como poucas vezes. Em casa, no quintal, a separar, a primeira coisa que a avó vê é a grande caixa cor de rosa. Mas não está vazia.
Dentro, as mãozinhas gorduchas de plástico barato têm rebarbas feias, que machucam. Um vestidinho rosa, bem limpo, e a cabeça emborrachada sem cabelos. A boca, rosada, estava entreaberta num meio sorriso doce. E no lugar em que estariam os olhos, tudo o que havia eram dois grãos de treva.

Um comentário:

  1. Narrativa meticulosa. Me fez refletir sobre esse falso altruísmo que surge às vésperas das datas comemorativas de final de ano. E acaba logo após findadas as festas.

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