O pessoal da firma era calado, quieto. Era bom-dia, boa-tarde,
fassavor e obrigado, e olhe lá. O chefe, sisudo, seco. Mas o que
mais me incomodava no serviço era a sensação constante de estar
sendo observada.
Você sabe como é. Aquele tinido mudo de través na garganta, uma
picadinha muito suave com o lado rombudo de uma agulha morna, na
nuca, meio de lado; a gente se vira para olhar e não tem nada ali.
Vai ver eram os ratos olhando a gente.
Isso, e os furtos à geladeira; quase qualquer coisa que se
esquecesse de um dia para o outro, sumia. O chefe dizia que as
faxineiras tiravam para limpar, e descartavam o que quer que houvesse
lá por ordem da empresa; os colegas tinham certeza que elas comiam,
levavam para casa. Até das gavetas, às vezes, sumiam chocolates. A
Socorro, no entanto, jurava que a ordem era limpar uma vez só nas
sextas e descartar aos fins de semana, pra não correr o risco de
estragar nada numa possível falta de luz e ficar ali largado,
fedendo. Era avisado, inclusive, penduravam cartazinho e tudo. Do que
sumia, não sabia dizer, só tirava o dela da reta: eu é que não
fui.
Vai ver eram os ratos também.
Mas trabalhar era isso, né? A gente aceita quase qualquer coisa
quando tem conta pra pagar, jura que vai procurar outro emprego
melhor, mas acaba ficando. Aquele medo de trocar o certo pelo
duvidoso, e há empregos bem piores, afinal. O bom de todo mundo ser
fechadão e conversar pouco era que deixavam fazer meu trabalho em
paz, e não rolava fofoca nem mexericagem. Não muita, pelo menos. A
rádio-peão, como se diz, em qualquer lugar, sempre tem histórias
para contar.
Um dos rumores mais estranhos ali da empresa era a respeito do meu
predecessor, desaparecido havia coisa de um ano. Dizem que o fulano
simplesmente sumiu após descobrirem uma mancada feia dele, que nem
bateu o ponto de saída no dia fatídico, e que depois ninguém nunca
mais o encontrou. Não atendia telefone, não tinha família que se
conhecesse, não veio nem dar baixa na carteira. Fora tragado pela
terra, ao que parecia. Havia até o boato, circulando entre os
terceirizados, de que ele teria se enforcado com a própria gravata
no armarinho de vassouras, e a empresa encobriu para não manchar a
própria imagem. A tal da falha? Ninguém sabia ou queria me dizer.
Por tudo o que eu pude apurar, ele teria escrito o nome do presidente
da empresa, Dr. Mario Pinto Machado, como Dr. Caio Pinto Brochado,
numa apresentação em PowerPoint exibida para grandes investidores
numa reunião importantíssima. Dei um sorrisinho fingindo achar
graça quando me contaram, sem acreditar, na certeza de que estavam
mesmo era tirando um barato com a novata.
Nosso setor dividia o décimo segundo andar, o último, com a
zeladoria. Os seguranças e o pessoal da limpeza eram mais amigáveis
que os meus colegas, e, no almoço e pausas para o café, ali na
copa, era com eles que eu conversava. A faxineira Socorro, mãe
solteira de dois meninos, trinta anos, tinha vindo do Piauí havia dois
e fazia curso de manicure, "pra melhorar de vida, né".
Carlão, segurança, negão do tipo armário, falava grosso e metia
medo em qualquer um, mas era mais crédulo que a minha avozinha. Era
ele o mais fervoroso propagador do mito do suicídio do meu
desaparecido colega, e jurava, pela alma de sua mãe mortinha, que o
fantasma do fulano ainda pairava por ali. "Vocês não passam as
madrugadas nessa firma, não sabem o que eu escuto. Os passos do
cidadão parece que vêm do teto, ecoam pelo andar inteiro. Dá
sempre a impressão de que tem alguém te vigiando. Eles falam que
não aconteceu nada pra não sujar a imagem da firma, mas por que é
que você acha que trocaram a equipe inteira da segurança naquela
época? O pessoal sabia demais, certeza".
"Larga de ser frouxo", dizia a Socorro. "Esses
barulhos que vocês escutam aí de madrugada é rato, isso aqui tá
infestado. Ninguém faz nada, depois aparece um aí passeando em
plena luz do dia e aí a culpa vai ser da faxineira que não tá
limpando direito".
Eu honestamente não sei se rato chega a subir tão alto num prédio,
mas vai saber. Sei nem se eles teriam o que comer ali, nunca
encontramos papéis roídos nem nada, a não ser que eles tenham
mesmo aprendido a abrir gavetas e geladeira. Que a gente escutava de
vez em quando uns ruídos ali no teto, lá era verdade, mas eram sons
pesados demais para passos de rato. Rangidos, baques, pancadas; da
primeira vez fiquei assustadíssima, mas meu chefe e os colegas
juraram que não ouviram nada. A minha teoria é de que era o barulho
natural das placas do forro se expandindo e se ajeitando, como
acontece em casas de madeira. Não que eu já tenha morando numa casa
de madeira, mas ouvi dizer. Acho que foi no Mundo de Beakman.
A explicação me parecia perfeitamente racional até o dia em que eu
tive que ficar até tarde na firma.
Precisava terminar uma apresentação até o dia seguinte sem falta,
concentrada no computador com uma caneca de café e cacófatos
involuntários surgindo à minha mente no meio da sonolência.
Precisei escrever o nome do presidente da empresa e me lembrei da tal
suposta mancada do meu "falecido" colega. Dr. Caio Pinto
Brochado, haha. É besta, mas com o sono que eu estava e a falta de
vontade de ficar ali trabalhando, poderia rir até do pior dos
trocadilhos. Do nada, no entanto, aquela sensação de novo – a
agulhadinha suave na base da nuca. Virei para ver. Ninguém.
Vai ver eram os ratos.
Tomei mais um gole de café e continuei com o serviço. Era o sono,
devia ser. Não faltava muito para terminar, e logo eu estaria na
minha cama quentinha, na minha casa, onde não há barulhos estranhos
nem ratos, nem grandes executivos de nome engraçado, nem fantasmas.
Estava desligando o computador e guardando as minhas coisas, quando
senti de novo a agulhada. Meu deus.
Olhei para cima. Um dos painéis do forro se moveu.
Um centímetro ou dois, fechando uma fresta. Mas se moveu. Eu vi.
Ratos não fazem isso.
Fui beber um gole d'água. Bobagem, eu estava cansada. Foi uma
alucinação, causada pelo sono, só podia ser. Peguei a minha bolsa
e estava quase saindo, quando me deu na telha subir na mesa de trás,
onde eu havia visto o movimento, e dar uma olhadinha no forro mais de
perto, só para garantir.
O painel parecia firme, não consegui mexer. O som, batendo com os
nós dos dedos, era oco. Se havia alguma coisa, não estava mais lá,
com certeza. Nem um rato. Besteira minha, mesmo.
No dia seguinte, antes de apertar o botão de "enviar" no
email com a apresentação anexa, me ocorreu abrir o arquivo e dar
uma revisada. Não custava nada, e o chefe não havia chegado ainda,
mesmo.
Meu deus.
Meu coração pela boca quando percebi que o nome do presidente
estava escrito errado, com aquele maldito trocadilho idiota.
Será que eu estava com tanto sono assim que escrevi aquilo sem
querer? Será que um espírito de porco modificou o arquivo através
da rede? Será que era uma maldita auto-correção do próprio
programa, que talvez tenha sido a desgraça do meu predecessor? Revisei
tudo vinte vezes, desativei as auto-correções e salvei uma cópia
do arquivo numa pasta inacessível em minha própria máquina, e foi
essa a cópia que enviei para o chefe. Aquele dia eu tive dor de
cabeça pelo expediente quase todo, e só sosseguei quando o chefe
voltou da reunião, sem falar nada, sem olhar feio, em silêncio.
Graças a deus. Graças a deus.
Nem fiquei estressada quando percebi que os iogurtes que havia
deixado na geladeira do dia anterior para esse haviam sumido. Os
ratos também têm que se alimentar, afinal.
Estava fazendo um ano e um mês do desaparecimento daquele meu
colega, o que nunca foi. A vida continuava como sempre. Meus companheiros calados, o chefe, rígido e sisudo, Carlão contando histórias,
Socorro não acreditando. Dessa vez era o quartinho das vassouras,
que amanhecera desarrumado, uma zona, tudo jogado no chão. Socorro
havia tomado uma bronca enorme da sua supervisora e acusava Carlão,
porque ele, de plantão, era a única pessoa na empresa que poderia
ter feito aquilo. O segurança jurava que não, que ele nem tinha a
chave do armarinho, afinal, que ouvira o barulho e correra para ver,
mas não pode entrar, e que o culpado, claro, era o fantasma do
falecido.
"Olha lá o banquinho caído no chão, o alçapão no forro
aberto. Foi assim que ele se enforcou, amarrou a gravata no puxador e
pulou do tamborete. Hoje é aniversário da morte dele, sabia?".
Quis corrigir, eram treze meses na verdade. Mas achei melhor não me
meter.
"Você que fez isso, seu espírito de porco, pra provar pra todo
mundo a sua lorota. Minha chefe quis me matar hoje de manhã. Eu
tenho dois filhos pra sustentar, seu desgraçado, sozinha, sabia? Eu
pago aluguel, sabia?"
Se alguém havia morrido ali, se debateu muito antes de morrer. Só
os ratos também não teriam sido capazes de fazer aquela baderna
toda. Não era só o banquinho; a estante de metal com os produtos de
limpeza estava caída, na diagonal, atravancando o pequeno cômodo
inteiro; os produtos, espalhados pelo chão, enchendo o corredor com
um pot-pourri de aromas químicos. A porta do alçapão aberta,
balançando numa brisa inexistente, no movimento pendular que
lembrava mesmo, um pouco, um corpo enforcado, pendurado.
Bobagem. Chega de maus agouros. Era meu último dia antes das minhas
primeiras férias – por isso sabia que estava fazendo treze meses
do desaparecimento lá do cara – e eu é que não ia me meter na
briga. Cumprimentei os dois e voltei para o escritório, louca para
resolver absolutamente tudo e amarrar qualquer ponta solta que se
atrevesse a ficar pendurada, para que ninguém fosse me perturbar durante meu descanso.
Não tive tempo de relaxar um único músculo, no entanto. Já em
casa, à noite, bem depois do fim do expediente, me dei conta que
havia esquecido alguns documentos numa gaveta, numa bolsinha
vermelha, e não poderia viajar sem eles. Foi fácil entrar na
empresa, já que era o Carlos que estava de plantão, novamente. Difícil era
subir doze andares com os elevadores desligados.
O edifício vazio de uma grande empresa era algo assustador. Não me
surpreendia que o segurança insistisse naquela história de fantasmas.
Mesmo nos momentos de maior silêncio ali dentro, durante o dia,
havia sempre passos no corredor, alguém falando ao telefone, um
celular tocando. Ali, no vácuo das paredes cor de gelo, apenas o
ruído dos reatores das lâmpadas enchia o ar. Tive uma náusea
quando olhei para o fundo do poço formado pelas espirais em retas
das escadas; um grão de poeira, voando no ar naquele momento, teria
um longo caminho a percorrer até o térreo.
Nunca tive vertigens de altura. Devia ser o cansaço, o sangue já
faltando à cabeça. Eu ia ficar bem.
Meus próprios passos ecoam no corredor ermo, como se alguém me
seguisse, quase em sincronia comigo. Paro e olho para trás; o
barulho parece continuar ainda por uma fração de segundo, mas pára.
Dou mais dois passos; o som suave como o pulsar do coração de um
minúsculo animal, que cessa antes que meu próprio coração volte a
bater. É claro que era o eco.
Por meio momento antes de acender a luz do escritório, tenho a
impressão de ouvir o barulho distante de plásticos sendo amassados,
baratas abrindo as asas, um rato roendo a roupa de um morto e
enterrado rei de Roma em seu sepulcro. A sensação de mil agulhinhas
mornas encostando seu lado rombudo por toda a minha coluna inteira.
Há alguém ali.
Acende-se a luz. As janelas repousam, sem vista, cerradas. Os
rodízios das cadeiras não rangem, não rolam. Os telefones não
tocarão.
Mas a minha gaveta está aberta.
Eu me aproximo, devagar. Esbarro na correntinha de uma das persianas,
que se move um mínimo, para lá e para cá, num movimento pendular
que me lembra algo de que não quero lembrar. O zumbido silencioso
das lâmpadas é perturbado pelo suave rumor que vem da minha gaveta.
Me inclino.
Me inclino e ele se levanta, súbito, sopetão. Os olhos redondos
rebrilham na luz fria, os dentes agudos levam um vermelho de sangue
na boca. Um rato, uma ratazana enorme, imensa, do tamanho de um gato,
de um cão, de um tiranossauro, carregando consigo minha bolsinha de
documentos. Ele se aproveita da minha surpresa e salta; protejo meu
rosto sem ver que não é um ataque, mas uma fuga. O animal escapa
pela porta, levando na boca toda a minha existência legal. Não há
tempo para ter nojo, eu tenho que correr.
No fim do corredor iluminado, uma fresta de escuro se abre; é o
armarinho da limpeza, onde o rato se esconde. Me estranha estar
aberto, mas corro até lá. Acendo a luz. Ele desapareceu.
Procuro. Não há nada lá além de vassouras, rodos, químicos,
venenos, líquidos coloridos com cheiro de flores falsas em garrafas
enfileiradas. Uma agulhada morna me faz olhar para cima; o
alçapãozinho do forro está aberto.
Subo, não sem esforço, usando o tamborete do enforcado e as
estantes de ferro como escada. Com meio corpo apoiado lá no alto, o
único sentido que funciona, a princípio, é o olfato; poeira,
bolor, o odor pungente de secreções corpóreas, de animal, de
mamífero.
Usando o celular como lanterna, os olhos devagar devassam a
escuridão. O forro tem a altura exata para que um ser humano se
arraste, de gatinhas; as bolas fofas de poeira cinza dividem o espaço
com a fiação e as teias penduradas de aranhas que já não habitam o lugar.
Pedaços de plástico, talvez coloridos, amassados; levo muito tempo
para discernir que são embalagens de doces, iogurtes, refrigerantes.
De longe, algo reflete o brilho da mínima luz que trago: um par,
dois pares, duas dúzias de minúsculas gemas em pares paralelos,
pequenos olhos mirando de volta: ratos.
Toda uma família de ratos cinzentos, de mãozinhas cor de rosa e
olhos brilhantes, olhando para mim.
Quase no topo do teto, a minha parca luz é refletida por um par de
gemas um pouco maiores, coroadas por uma teia de cabelos
desgrenhados, cinzentos de poeira. As roupas estão imundas,
esfarrapadas, da cor da sujeira gris, mas no pescoço, atado num
perfeito nó Windsor, brilha o tecido vermelho de uma gravata
impecável. Magro, esquálido, mas muito vivo, com minha bolsinha de
documentos na mão, o meu ex-colega me observa com seus olhinhos
apertados de rato, e milhões de minúsculas agulhas mornas parecem
espetar o meu corpo todo.