Esse conto é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com a realidade é nossa culpa.
Já estava quente. Mesmo no escuro já estava quente, e os guinchos
do trem sobre os trilhos cortavam o silêncio, acordando a cidade. A
luz incerta da madrugada cedia aos poucos, bem devagar, seu ar azul e
denso aos primeiros raios vermelhos do horizonte leste, um vermelho
quente, cruel. Enquanto o dia rompia, um outro vermelho quente, e
muito mais cruel crepitava, mais próximo, ao lado.
A luz vacilante e intensa começa a entrar pelas frestas da janela
fechada, junto com o inconfundível odor de fumaça, de cinza e de
destruição. Uma mulher magra e morena abre os olhos, reconhecendo
de imediato o inimigo familiar.
– Fogo!
Acorda o companheiro, as crianças. O homem faz menção de vestir
uma roupa, dorme só de calção; não há tempo. O fogo contamina o
alto da parede de madeira, passa para o armário e já dominou a
cortina improvisada com um lençol. O ar é irrespirável lá dentro,
mas ela se lembra de pegar a lata de leite ninho do bebê, com o
menino no colo.
Portas se abrem pelo beco estreito, pessoas acordam, gritam, correm.
Vera tropeça sem querer no próprio filho pequeno, machucando a
criança; levanta e pega ele no colo, mesmo sabendo que não pode
carregar peso por conta de um problema na coluna. Neide estufa uma
bolsa de mão com roupas, as primeiras da gaveta, documentos, o
material escolar da menina que esfrega os olhos e tosse, uma tosse
árida e má.
À distância, Lúcia e Rico veem a coluna de fumaça negra, sólida,
subindo lenta e voluptuosa pelo céu sem nuvens.
– Incêndio? Onde será que foi, Rico?
– Algum galpão, deve ser.
– Não foi por aquele lado que pegou fogo naquela favela da outra
vez?
– De novo, será?
Os rolos de fumaça densa sobem pelo viaduto, formando um túnel de
escuridão. Não o tinham interditado, ainda. Havia quem arriscasse
passar. Rogério, atrasado para o trabalho, acelera temerariamente, e
mesmo com os vidros fechados, seu estofamento e roupas fedem a
fumaça. Marta chegou a subir um pouquinho e amarelou; voltou de ré,
enfrentando o buzinaço. Valdir parou antes da entrada do viaduto,
desligou o ônibus, se levantou e anunciou aos passageiros:
– Quem quiser que passe a pé. Não posso arriscar o meu carro.
Gritos, protestos, resmungos, Valdir não ligava. Enquanto o cobrador
telefonava para a viação, abriu as duas portas e desceu pela da
frente, sentou-se na calçada e acendeu um cigarro, conformado.
Olhava as volutas de fumaça subindo, diáfanas e alegres, tão
diferentes da fumaça suja e impenetrável do viaduto ali adiante.
Alguns homens tentavam, a pé, cruzar a fumaça. Corriam como loucos,
desapareciam na escuridão. Gisele olhava em desespero para o
horizonte sombrio, chorando, quase.
– Meu Deus, eu não posso faltar, eu não posso ser mandada embora,
e agora, meu Deus.
– Se você for, eu vou junto.
Era uma senhora de meia idade, baixinha, de óculos, saia. Sorriram
uma para a outra.
– Vamos.
Caminharam os primeiros passos da subida, acelerando conforme o
calor, a fumaça aumentavam. Estavam correndo já. Os olhos, a
garganta ardiam, o rosto coberto por um dos braços. Gisele sentia a
visão se enegrecer, um entorpecimento dos membros, vertigens de
cair. Ângela – era esse o nome da senhora – encontrou e segurou
sua mão. Chegaram à outra ponta da ponte de mãos dadas, e se
abraçaram, cabelo e roupas impregnadas de fumaça e suor. Gisele
chorou um pouquinho porque os olhos ardiam demais.
O caminhão dos bombeiros não conseguia chegar até lá dentro da
comunidade. Passavam mangueiras pressurizadas por entre, por cima das
casas. Moradores, em grupos, ajudavam os profissionais, jogando água
na base do fogo, como instruídos, resfriando as paredes das casas
próximas, para evitar que o fogo se espalhasse. A fumaça branca do
vapor da água sobe, devagar, tímida ainda.
Há moradores tentando salvar seus pertences poucos, com a ajuda de
vizinhos. Tiram os botijões primeiro, para evitar explosões. Trazem
tevês e móveis, roupas e fogões, para o campo de futebol que há
no centro da comunidade. Uns vigiam, outros procuram ajudar, outros
observam a desgraça, impotentes.
José chega devagar, trazendo não mais que uma sacola de pano na mão
esquerda. Tem os olhos marcados e a pele curtida, e usa uma camisa de
botão passada a ferro, que já fora branca. No meio do campo, senta
numa cadeira branca de espaldar alto, com detalhes dourados, muito
bonita, que não é sua. Senta-se, e a fumaça escura que espalha, as
chamas que cobrem as casas, refletem nos seus olhos negros vazios.
O congestionamento já se formou, mas só agora o viaduto é
interditado. Alguns motoristas, de longe, percebem de onde vem o
problema, outros escutam no rádio, e tomam caminhos alternativos.
Outros são pegos de surpresa, mas justo aqui, justo o viaduto, justo
na hora do rush, justo comigo. Quem estava a pé telefonava para o
trabalho se explicando, caminhava para a outra ponte distante,
procurava ônibus que fossem por vias paralelas, um táxi, talvez.
“Mas táxi não voa, dona”, seu Luís dizia para a passageira
inconformada, “Táxi não voa, é esperar que ande um pouco, eu
entro por ali, pego a paralela e vamos pelo outro viaduto. Mas meu
táxi não voa, madame.”
Quem não ajuda não atrapalha, eles dizem, e os moradores que não
estavam envolvidos no esforço do combate e resgate eram conduzidos para fora da comunidade. “Mas meus filhos, moço, eu
preciso achar meus filhos”, as crianças estão todas lá fora,
senhora, os que a gente for achando vamos mandando para lá. “Mas
meu marido, cadê meu marido”, depois, senhora, depois, ou ele está
ajudando a gente ou já está lá fora. “Mas meu avô, minha neta,
meu sobrinho, a minha gata, meu Deus.” Lá fora, senhora, lá fora,
ajuda a gente por favor, lá fora.
Um homem andava com cuidado sobre um telhado frágil, se esgueirando
atrás de uma gatinha preta, apavorada. Ela recua devagar, os pelos
das costas arrepiados, os olhos furiosos, os dentes à mostra. A gata
dá um passo atrás e falseia; o homem a agarra de um golpe, ela se
prende pelas unhas às telhas, arranha, não quer morrer. Ele
consegue passar o animal para outro homem, que aguarda lá embaixo,
com um cobertor grosso para se proteger.
Seu José ainda está no campo, olhando sem ver a luta das chamas com
a água, da fumaça branca do vapor contra a fumaça negra do
incêndio, a luta dos homens e mulheres por suas casas, por suas
vidas. Uma repórter de TV e seu câmera, que não deviam estar ali,
o encontram e fazem perguntas que ele não entende. Um homem grande,
de uns 40 anos, toca suavemente no ombro dos dois, falando baixo e
firme:
– Deixem o coitado em paz, é a segunda vez que ele perde tudo no
incêndio.
As chamas cedem, devagar. A fumaça branca, vitoriosa, engole a
fumaça preta, sobe em voltas resolutas, triunfadoras, deixando lá
embaixo o cenário de uma guerra que ninguém venceu. Onde havia
casas, agora era cinza e escombros, carvão e plásticos retorcidos,
pedaços de telha e algumas bonecas meio derretidas, sem pernas, sem
braços, de olhos azuis e mortos.
Mães encontram seus filhos, mulheres encontram maridos, avós
abraçam netos, donos acham seus bichos. Seu José, sentado ainda na
cadeira branca que não é sua, não tem ninguém.
Alguns tem pouso com gente da família. Partem, pois moram longe os
parentes, e pedem aos vizinhos que olhem por suas coisinhas, seus
pertences. Os que ainda têm suas casas na comunidade e tiverem um
sofá, um pedaço de piso em que um colchão caiba, os cederão a
quem pedir. Daiana oferece sua cama à amiga Letícia, e dormem as
duas, uma na cabeceira, outra aos pés, cobertas por um lençol cor
de rosa das princesas, que a mãe ganhara da patroa. Os outros e os
seus colchões, suas bolsas de roupa servindo de travesseiro, irão
para a rua, dormir ao relento.
Não choverá. A noite será quente novamente, e o guincho metálico
dos trilhos do trem os acordará na madrugada azul, bem antes que o
sol vermelho e cruel aponte no horizonte a leste.